A jornalista Fernanda Câncio vincou, a 20 de agosto, no Diário de
Notícias, a alegada divergência entre o discurso papal sobre o
imperativo de expor a verdade e compensar as vítimas e algumas concordatas
assinadas sob a égide de Francisco, que impõem que a justiça avise a
hierarquia de investigações contra clérigos, barricam arquivos e (caso de
Angola) restringem a responsabilidade civil e criminal à pessoa física dos
eclesiásticos condenados, para evitar pagar indemnizações.
De toda a denúncia, informação ou inquérito relativo a membro do clero ou a
religioso, por motivo de comportamento incompatível com as leis
civis ou penais do país, as autoridades judiciárias darão conhecimento ao
respetivo bispo, antecipadamente e de maneira confidencial. Se esses
procedimentos respeitarem a bispo ou a alguém com estatuto similar
no Direito Canónico, a Santa Sé será também informada, através da
Nunciatura Apostólica. Este é o teor do artigo 9.º do acordo-quadro
assinado entre o Benim, pequeno país de 12,5 milhões de habitantes da África
ocidental, e a Igreja Católica (IC), através da Santa Sé (distinta do Estado do Vaticano), a 21 de outubro de 2016, três anos após a eleição de Francisco e
quando por todo o mundo se sucediam processos criminais e inquéritos sobre
abusos sexuais por membros da IC.
Esta intromissão no processo judicial, que não se vê, por exemplo, nem na
celebrada com Portugal em 2004 (segundo alguns penalistas, seria
inconstitucional), nem em outras assinadas por países europeus, está, em
diferentes graduações, presente em recentes acordos da Santa Sé com vários
países africanos – República Centro-Africana (2016), República do Congo (2017),
Angola e Burquina Faso (2019) – e com Timor-Leste (2015), países pobres e sem
poder reivindicativo.
Só três dos acordos – Timor-Leste, Angola e Burquina Faso – ressalvam que o
aviso à hierarquia só pode dar-se se não implicar prejuízos para as finalidades
do procedimento, isto é, se não prejudicar a investigação (o de Angola refere
também a necessidade de não haver prejuízo para o segredo de justiça). E só o
do Burquina Faso e o da República Centro-Africana excetuam os casos de
flagrante delito. É no acordo com este último país que se vai mais longe
nas garantias em caso de investigações com clérigos católicos como objeto,
estabelecendo o “foro privilegiado”, que se aplica, na generalidade dos
países, às mais altas figuras do Estado: no caso de bispo ou de padre a
exercer jurisdição equivalente, é necessária a autorização prévia do
Procurador-Geral e a Santa Sé será logo informada via Nunciatura Apostólica.
O desígnio de limitar a independência do poder judicial e o escopo da sua
ação no atinente à Igreja não se atém ao aviso: inclui a exclusão de
acesso às instalações, arquivos e registos da entidade, como se fosse em
território estrangeiro, com o estatuto de embaixada, a que as autoridades não
acedem sem convite ou autorização; o direito de recusa de testemunho para os
seus membros, alegando sigilo profissional; e a isenção indemnizatória para a
instituição, que recusa, em dois dos países em causa, assumir qualquer
responsabilidade face às vítimas. Entretanto, é de recordar que o acordo com o
Benim foi assinalado pelo papa, em janeiro de 2019, na alocução ao corpo
diplomático, aludindo ao abuso de menores, que denominou de “uma das pragas do
nosso tempo, que tristemente envolve também alguns membros do clero”, “um dos
mais vis e hediondos crimes concebíveis”, que gera “danos irreparáveis para a
vida”. Por isso, assegurou que a Santa Sé e a Igreja trabalham para
combater e prevenir esses crimes e o seu encobrimento, visando chegar à verdade
dos factos e assegurar justiça aos menores que sofreram a violência sexual
agravada pelo abuso de poder. Porém, segundo a jornalista, não ressalta o
trabalho para combater e prevenir o crime de abuso sexual e o do seu
encobrimento e assegurar justiça às vítimas. Ao invés, quanto mais
recente é o instrumento legal, mais as disposições neles constantes avançam no
sentido de dificultar o trabalho das autoridades judiciárias ou de outras
instâncias de investigação (em países, como a Irlanda e a Austrália, o
governo nomeou comissões para investigar os abusos cometidos no seio da IC) e
de impossibilitar a assunção de responsabilidade pelas dioceses.
É nos acordos do Burquina Faso e de Angola, ambos de 2019, que surge a
deliberação de furtar a IC a responsabilidades civis (indemnizações) e
criminais (por encobrimento, por exemplo) nos casos em que os seus membros
sejam condenados.
Essa responsabilidade relativa aos delitos civis e aos crimes cometidos por
eclesiásticos é meramente pessoal. As sanções resultantes dos mesmos só podem
ser impostas às pessoas físicas que os cometeram, pelo que só essas responderão
com os seus bens pessoais aos danos materiais, imateriais ou morais ligados ao
delito ou ao crime. É o que impõe o acordo com Angola.
O acordo do Burquina Faso ressalva desta desresponsabilização geral os
casos de cumplicidade comprovada: “Em todos os casos, a responsabilidade penal
e os efeitos civis que decorrem dos processos são sempre pessoais e, salvo
cumplicidade comprovada, não implicam nem a instituição a que pertence o
faltoso nem os seus responsáveis hierárquicos”. Assim, apenas as pessoas
físicas que cometeram a infração penal “respondem, com os bens pessoais, pelos
correspondentes danos materiais, imateriais ou morais".
Na verdade, a IC tem sido obrigada a pagar avultadas
indemnizações às vítimas dos crimes dos seus membros, tendo várias
dioceses entrado em falência devido a tais reparações, em que o direito se tem
fundado sobretudo na prova, obtida nos arquivos, de que a hierarquia, tendo
conhecimento de denúncias, não as valorizava ou tentava calar e descredibilizar
as vítimas ou, ciente de que o clérigo ou religioso em causa era problemático,
se limitava a mudá-lo de paróquia ou de país “muitas vezes para países do
terceiro mundo, onde a capacidade de denúncia e reação de eventuais novas
vítimas seria menor. Já em 2003, um relatório do Procurador-Geral de Boston, em
resultado da investigação inspirada pelas reportagens do jornal The Boston
Globe sobre abuso sexual por membros daquela diocese, concluía que a
vitimização sexual de crianças por membros da IC era generalizada e conhecida
pela hierarquia. Seguiram-se escândalos em catadupa. Em 2018, o Relatório
da Pensilvânia (de 14 de agosto desse ano), analisando sete décadas de abuso
sexual por sacerdotes católicos daquele Estado americano descrevia o modus
operandi da hierarquia face às denúncias de abuso: nunca falava,
nos registos escritos, de violação nem de abuso, usando expressões mais suaves,
como “contacto inapropriado”; para inquirir de denúncia, escolhia padres sem
experiência na condução destes inquéritos; se um padre acusado era retirado,
nunca se informava das razões a comunidade; e nunca se informavam as
autoridades policiais ou judiciais, mandando-se, quando muito, para centros da
Igreja para serem avaliados.
O atinente à alegada inviolabilidade dos arquivos, que a Santa Sé garante
nos acordos, vê-se no acordo com a República Centro-Africana: “Assegura a
inviolabilidade dos locais de culto: igrejas, capelas, oratórios, cemitérios e
suas dependências, em particular os presbitérios, os conventos e os arquivos
eclesiásticos. A força pública pode aceder a estes lugares por convite da
Autoridade eclesiástica competente ou, ainda, depois de notificação da mesma
Autoridade, para executar um mandado judiciário contra pessoas acusadas de
delitos cometidos no território do Estado.”
Restringir a execução de mandados nesses locais aos que se refiram a “pessoas
acusadas de delitos cometidos no território do Estado” pode ser interpretado
como querendo dizer que eventuais crimes cometidos nesses lugares não estão
abrangidos pela autoridade do dito Estado, mas pela IC – reivindicação que esta
tem apresentado, sob outras vestes, noutras paragens. No acordo do Burquina
Faso, “pertence exclusivamente à Autoridade eclesiástica a fixação livre das
leis e regulamentos e todos os atos jurídicos nos domínios da sua competência”,
deixando dúvidas sobre quais serão esses domínios. Há situações, como na
Argentina, em que a IC afirma não ter de se submeter ao Estado constitucional
de Direito, recusando cumprir ordens de tribunal.
Nenhum dos textos analisados tem disposições tão extremas como o da
República Centro-Africana, mas a inviolabilidade dos arquivos está em todos,
exceto no de Timor-Leste.
Refira-se que, no âmbito do segredo profissional eclesiástico, a
Concordata de 2004 com Portugal vai mais longe, assumindo a disposição da de
1940, proibindo até a pergunta: “Os eclesiásticos não podem ser perguntados
pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham
tido conhecimento por motivo do seu ministério.” (artigo 5.º).
É curioso, segundo Câncio, verificar que acordos tão recentes recuperam
disposições que se encontram num acordo com 68 anos – o celebrado em 1954 com a
República Dominicana, país com religião oficial católica –, tornando-as ainda
mais favoráveis à Igreja Católica.
No acordo com a República Dominicana, assinado durante a ditadura de Trujillo
Molina e cuja constitucionalidade tem sido posta em causa, encontra-se a
imposição de tratamento especial para religiosos católicos em caso de detenção
ou prisão: “O eclesiástico ou religioso será tratado com o respeito devido ao
seu estado e grau. Em caso de condenação de um eclesiástico ou religioso, a
pena cumprir-se-á, quando seja possível, num local separado do destinado aos
leigos, a menos que o Ordinário do sítio tenha reduzido o condenado ao estado
de leigo.”
Foi em 2019, ano no qual a Santa Sé assinou os acordos com o Burquina Faso
e Angola, que teve lugar no Vaticano, em fevereiro, a reunião “histórica”
dedicada à questão do abuso sexual de menores, que juntou 114 presidentes de
conferências episcopais. Aí, o cardeal Reinhard Marx, da Alemanha, admitiu
que os arquivos da Igreja no país sobre abusos sexuais foram destruídos ou nem
foram criados. E, em dezembro, o papa, que afiançou, no final da dita
reunião, que “a Igreja não procurará jamais dissimular ou subestimar
qualquer um desses casos”, anunciava, num conjunto de medidas que alteravam a
lei canónica, o fim do segredo pontifício nos casos de violência sexual e de
abuso de menores e de adultos vulneráveis cometidos por membros do clero.
À primeira vista, a orientação contradiz as disposições sobre
inviolabilidade dos arquivos que se encontram nas concordatas recentes. E
Fernanda Câncio aproveita para fazer um levantamento dos casos denunciados na
Argentina e criticar a forma com a hierarquia naquele país tem utilizado a
concordata, eximindo-se às decisões dos tribunais.
Depois, a jornalista menciona a carta que um grupo de relatores da
Organização das Nações Unidas (ONU) dirigiu, em abril de 2021, ao cardeal
Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, alegando que a IC está
vinculada aos tratados internacionais que assina. A carta verbera a IC, em
cujas complexas definições jurídicas as autoridades católicas costumam
acobertar-se, à imagem do que sucede no mundo da finança com a criação de
empresas fantasma para evadir responsabilidades e identidades, por dizer uma
coisa e fazer outra.
***
A jornalista fez bom trabalho de análise. Porém, não pode insinuar que a
territorialidade (em que a justiça não tem acesso a arquivos) seja privilégio
da Igreja, pois é prerrogativa dos Estados com quem outro Estado tem relações.
Não é o facto de os países do Terceiro Mundo serem pobres que leva a mais
cautelas, mas talvez a insegurança. Ademais, os acordos são firmados por
Estados em pé de igualdade, sendo todas as cláusulas devidamente discutidas.
Embora os crimes em causa sejam hediondos e a IC deva pedir desculpas,
devem ser tratados nos termos saudáveis do direito penal, como: garantias de
defesa; proteção das vítimas; consulta entre Estados; observância da
prescrição; medidas adequadas e proporcionadas. Sei que o objetivo de muitos
não é a reparação, mas a indemnização. Ora, não há culpa coletiva e a IC vive
dos contributos dos fiéis. Por isso, não é justo que a comunidade pague por
erros das pessoas físicas. Só deve recair a indemnização sobre quem comete o
crime e os seus cúmplices, por exemplo o encobridor deliberado. O resto é
abusivo e pode ser demagógico.
2022.08.20 – Louro de Carvalho
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