Celebra-se, a 6 de agosto, quarenta dias antes da festa da Exaltação da Santa Cruz,
a 14 de Setembro, a festa da Transfiguração
do Senhor. Com efeito, situada antes do anúncio da Paixão e da Morte de
Cristo, a transfiguração prepara os apóstolos para a compreensão do mistério
pascal de Jesus, pois é uma teofania (“Este é o meu Filho predileto”) e uma
revelação da vontade divina (“Escutai-O”), bem como uma antecipação do
esplendor que encherá o dia da Páscoa. Por isso, o apóstolo, ao ver Jesus na condição
de Servo, não poderia ignorar a condição divina do Mestre.
A festa da Transfiguração do Senhor, celebrada no Oriente desde o século V,
passou a celebrar-se no Ocidente a partir de 1457.
A teofania da transfiguração tem precedentes no Antigo Testamento (Dn 7, 9-10.13-14). Em visão
noturna, Daniel, vê a história do ângulo de Deus. Sucedem-se impérios e opressores,
mas Deus não falha. É o juiz último a avaliar as ações dos homens e a intervir
para resgatar o povo. Aos reinos terrenos contrapõe-se o Reino que o Ancião
confia ao misterioso “filho de homem” que vem sobre as nuvens, que é um
verdadeiro homem, mas de origem divina.
Não se trata já do terreno Messias davídico que havia de restaurar o Reino
de Israel, mas da sua transfiguração sobrenatural. É o Filho do homem que vem
inaugurar um reino novo que, embora se insira no tempo, “não é deste mundo” (Jo
18,36). Triunfará sobre os poderes terrenos, orientando a história para a sua
realização escatológica.
Com a figura bíblica deste Filho do homem se identificou Jesus, muitas
vezes, na sua pregação e particularmente ante o Sinédrio, que o condenou à
morte.
Da teofania da transfiguração nos dão conta Pedro e os companheiros
(cf 2Pe 1,16-19), reconhecendo-se portadores
de uma graça maior que a dos profetas, porque ouviram a voz celeste que
proclamava o seu Mestre como o Filho, o muito amado do Pai. Não obstante, não
menosprezavam a Palavra do Antigo Testamento, a qual se apresenta com todo o
vigor e fulgor como “uma lâmpada que brilha num lugar escuro”, até ao dia sem
fim, em que Jesus Cristo virá na sua glória. Na verdade, Jesus transfigurado
sustenta a nossa fé e acende em nós o desejo da esperança nesta caminhada. A
“estrela da manhã” já brilha no coração de quem espera vigilante.
Contudo, é do Evangelho de
Lucas (Lc 9, 28b-36) que se toma o texto para a liturgia da festa.
Num propósito de orar (Lucas
faz questão de nos apresentar a vertente orante de Jesus), o Mestre subiu ao
monte acompanhado de Pedro, João e Tiago.
Enquanto orava, modificou-se-lhe
o aspeto do rosto e tornaram-se de fulgurante brancura as suas vestes. E dois
homens – Moisés e Elias – aparecendo rodeados de glória, conversavam com Ele e
falavam da sua morte, que ia acontecer em Jerusalém. Pedro e
os companheiros, que estavam a cair de sono, despertando, viram a glória de
Jesus e os dois homens que estavam com Ele.
Quando Moisés e Elias iam
separar-se de Jesus, Pedro disse: “Mestre, é bom estarmos aqui. Façamos três
tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias”. Não sabia o que dizia.
Enquanto dizia isto, uma
nuvem os cobriu e, ao entrarem na nuvem, ficaram atemorizados. E
da nuvem veio uma voz que disse: “Este é o meu Filho predileto. Escutai-O.”
Quando a voz se fez ouvir,
Jesus ficou só. Os discípulos guardaram silêncio e, naqueles dias, nada
contaram a ninguém do que tinham visto.
A Transfiguração, com o cenário do monte (perto de Deus) e da nuvem (representação
simbólica de Deus), confirma a fé dos apóstolos, professada por Simão Pedro em
Cesareia de Filipe, e ajuda-os a ultrapassar a sua oposição à perspetiva da
paixão anunciada por Jesus, pois quem quiser ser seu discípulo, terá de
participar nos seus sofrimentos. Ao mesmo tempo, é um primeiro resplendor da
glória divina do Filho, chamado a ser Servo sofredor para salvação dos homens.
Na oração, Jesus transfigura-se e deixa entrever a sua identidade sobrenatural.
Moisés, o legislador, e Elias, o profeta, são protagonistas de um êxodo muito
diferente nas circunstâncias, mas idêntico na motivação: a fidelidade absoluta
a Deus. A luz da Transfiguração clarifica interiormente o seu caminho terreno.
Quando a visão está para terminar, Pedro quer parar o tempo, mas fica envolto
com os companheiros na nuvem. É a nuvem da presença de Deus, do mistério que se
revela permanecendo incognoscível. Mas Pedro, Tiago e João recebem dele a luz
mais resplandecente: a voz divina proclama a identidade Jesus, Filho e Servo
sofredor (cf Is 42,1).
Pedro não sabia o que estava a dizer. Com efeito, não podia o discípulo
parar ou condicionar o desígnio traçado pelo Pai para o Filho, nem Moisés e
Elias eram iguais a Jesus. Sempre que Pedro tentava explicitamente condicionar
o futuro do Mestre, sofria dura repreensão. Por outro lado, se é certo que
Moisés representava o apogeu da Lei e Elias o da Profecia, é Jesus que, embora
as assuma na sua integridade, tem o poder de as reformular e reorientar segundo
a nova medida do amor. Moisés e Elias vinham simplesmente em homenagem a Jesus.
Jesus toma à parte os seus prediletos, Pedro, Tiago e João, para os fazer
rezar mais longa e intimamente. Estes representam particularmente os
pontífices, os religiosos, as almas chamadas à perfeição, mas constituem um
desafio para todos.
Para rezar, Jesus prefere a solidão, a montanha onde reina a paz, a calma,
onde pode ver-se a grandeza da obra divina sob o céu estrelado nas belas noites
do Oriente.
A transfiguração é visão do céu, é graça extraordinária para os três
apóstolos. Porém, não nos devemos agarrar às graças extraordinárias, que são,
por vezes, o fruto da contemplação. Pedro agarra-se a isso e engana-se. A visão
desaparece numa nuvem. Assim, temos a lição da entrega à oração habitual, à
contemplação, mas sem desejar graças extraordinárias, aceites se Deus as enviar
por sua iniciativa.
O fruto desta festa é o crescimento da fé. Os apóstolos testemunham que
viram a glória do Salvador. “Não são fábulas que vos contamos”, diz Pedro (2Pe 1,16),
fomos testemunhas do poder e da glória do Redentor. Ouvimos a voz do céu sobre
a montanha gritando-nos no meio dos esplendores da transfiguração: “É o meu
Filho, o muito amado, escutai-O”. E Paulo encoraja-nos a esperança recordando a
lembrança da glória do Salvador manifestada na transfiguração e na ascensão: “Veremos
a glória face a face e seremos transfigurados à sua semelhança” (2Cor 3,18). E,
noutra passagem, diz: “Esperamos o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, que
transformará o nosso corpo terrestre e o tornará semelhante ao seu corpo
glorioso” (Fl 3,21).
Mas este mistério é sobretudo propício para aumentar o nosso amor por
Jesus. Nosso Senhor manifestou-nos naquele dia toda a sua beleza. O seu rosto
era resplandecente como o sol. Os apóstolos, testemunhas da transfiguração,
estavam totalmente inebriados de amor e de alegria. “Que bom é estar aqui”,
dizia Pedro. “Façamos aqui a nossa tenda”.
A beleza de Cristo transfigurado, contemplada pelo pintor Rafael,
inspirou-lhe a obra-prima da arte cristã. Nosso Senhor falava da sua Paixão com
Moisés e Elias: nova lição de amor por nós. O Coração de Jesus, mesmo na sua
glória, não pensa senão em nós e nos sacrifícios a fazer por nós. Lições de
penitência, de reparação, de compaixão. O Salvador teve de sofrer tanto para
nos resgatar e continua a sofrer na pessoa dos pobres, dos doentes e dos
deserdados da sorte e dos homens, para quem o poder, o prestígio e o lucro são
tudo.
“Este é o meu Filho, o muito amado: Escutai-O.” A voz do Pai celeste
diz-nos: “Escutai-O”, palavra cheia de sentido, como todas as palavras divinas.
Deus dá-nos o seu divino Filho por guia, por chefe, por mestre. “Escutai-O”
fala nas leis do Evangelho e nos conselhos de perfeição. Fala nas regras dos
religiosos, nos regulamentos de vida dos cristãos seculares, na voz dos
Pastores e na de todos e todas que servem o Evangelho da Palavra, da Vida, da
Caridade, da Compaixão.
“Escutai-O” espera a resposta merecida e adequada. Não basta promessa: “hei
de escutar”, mas a disposição habitual da escuta: “escuto, escuto sempre; fala,
Senhor, o teu servo escuta”. Escuta no começo de cada ação, para saber o que se
deve fazer e como se deve fazê-lo.
Valeria a pena saber o que pensava e sentia o papa São Paulo VI no dia 6 de
agosto de 1978, quando entregou, naquela data já longínqua, a alma ao Pai celeste
em Castelgandolfo!
2022.08.06 – Louro de Carvalho
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