Trabalhar a partir de casa, com recurso aos meios informáticos e ligação à
Internet, era excecional modalidade de prestação de serviço que, embora já com antecedentes,
alguns agentes económicos começaram a implementar na década de 90 do século XX.
Recordo-me de, sendo diretor pedagógico da Escola Profissional de Sernancelhe, participei
num colóquio organizado pela Associação das Mulheres Empresárias em Portugal (AMEP),
no Hotel Lamego (na cidade de Lamego) em que os peritos convidados enfatizavam as
vantagens do teletrabalho, não só em termos apriorísticos, mas também com exemplos
práticos.
Com o advento da pandemia de covid-19, por causa do SARS CoV-2, o
teletrabalho foi amplamente incrementado, tornando-se obrigatório, sempre que possível,
durante alguns períodos de tempo e em alguns setores, os que ofereciam alguma
compatibilidade com este enquadramento do trabalho. É verdade que, em muitos
setores da atividade, incluindo alguns departamentos da administração pública,
o teletrabalho, mormente na forma de teleatendimento, constituiu uma vergonhosa
subtileza para afastar os cidadãos do acesso aos serviços que a lei e o
bem-estar os obrigavam a frequentar. Por outro lado, a implementação do regime
de teletrabalho levantou problemas que o tempo e a determinação política, nem sempre
clara e pronta, ajudaram a resolver. Tais problemas eram, por exemplo, sobre
quem era o responsável logístico e monetário pela aquisição, instalação e usos dos
equipamentos, sobre as formas normais e abusivas de controlo do serviço, sobre
a comparência ou não nas instalações da empresa-serviço, sobre horário de
trabalho, respeito pelos tempos de descanso, folga e refeições, sobre a manutenção
do direito ao subsídio de refeição e à proteção contra acidentes em serviço, sobre
a obrigatoriedade ou não deste regime e sobre a vinculação ou não à empresa-serviço,
entre outros.
Parece que esta pandemia terá os dias contados, mas o teletrabalho persiste,
não como obrigatório, mas por acordo entre empregador e trabalhador, obedecendo
aos normativos que regulam as relações laborais e, em especial, o regime de
trabalho à distância. Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), recém-publicados,
mostram que, no segundo trimestre deste ano, 958,6 mil trabalhadores, 19,6% do
total da população empregada – repartidos quase meio por meio entre homens e
mulheres (respetivamente, 49,4% e 50,6%) – exerciam funções a partir de casa,
com recurso a tecnologias de informação e comunicação (TIC), ou seja, em
teletrabalho.
Várias empresas apostaram num regime híbrido, isto é, combinaram o trabalho
presencial e o remoto, mas um terço (33%) destes profissionais trabalhou 100%,
ou seja, sempre a partir de casa. Trata-se sobretudo de profissionais com ensino
superior, perto de metade com 45 ou mais anos, concentrados, principalmente na Área
Metropolitana de Lisboa (AML) e na região Norte.
Na verdade, A AML lidera no teletrabalho, pois lá residiam 41,8% dos
profissionais que entre abril e junho se encontravam neste regime, uma liderança
que não surpreende mercê do peso da região no emprego total (é a segunda com
maior número de pessoas empregadas) e mercê da concentração do teletrabalho nos
setores dos serviços. E a região Norte, que lidera em termos de emprego total,
fica na segunda posição no universo de profissionais em teletrabalho, com 30%.
Os números ora referidos de trabalhadores identificados pelo INE como estando
em teletrabalho no segundo trimestre de 2022 não são comparáveis com o dos
contabilizados em trimestres anteriores, porque foi alargado o conceito usado para
calcular a população em teletrabalho. Deixam de ser consideradas apenas as
pessoas que trabalharam maioritariamente em casa, passando a ser contabilizadas
todas as que referiram ter trabalhado a partir de casa, qualquer que seja a
frequência com que o tenham feito. Seja como for, os valores numéricos e percentuais
falam por si: 75% dos profissionais em teletrabalho neste segundo trimestre tinham
formação a nível do ensino superior. Este é, pois, um dos fatores mais
importantes na caraterização do universo das pessoas que se mantêm em trabalho remoto,
depois deste regime laboral ter entrado nas empresas com a pandemia. Os dados mostram
que, tendo em conta o universo total da população empregada no país com
formação superior, 40,8% estiveram em teletrabalho entre abril e junho. E seguem-se
os trabalhadores com qualificações a nível do ensino secundário e do pós-secundário
que representam 19,6% dos teletrabalhadores. Apenas 5,2% das pessoas em
teletrabalho tinham escolaridade abaixo deste nível de qualificação, ou seja, o
9.º ano de escolaridade.
Assim, os dados indiciam que baixas qualificações não se coadunam com o teletrabalho,
o que é de admirar, pois é comum dizer-se que os adolescentes têm muito jeito,
uma competência quase inquestionável para liderar com as novas TIC, a menos que
tal competência se direcione só para jogos, música e conversação de lana caprina. Porém, do total da
população empregada no segundo trimestre, com escolaridade até ao 9.º ano, só
3,1% estiveram em trabalho remoto.
Em linha com o nível de qualificações, ressalta que os “especialistas das
atividades intelectuais e científicas” representam a maior fatia dos
trabalhadores remotos (59,9% do total). No ranking de
profissões com maior peso no teletrabalho, destacam-se também os “técnicos e profissionais
de nível intermédio” (15,5%), a que se seguem os “representantes do poder
legislativo e de órgãos executivos, dirigentes, diretores e gestores executivos”
(10,8%). E ainda se diz que os nossos políticos são incompetentes!
A desagregação por setores de atividade dos profissionais em teletrabalho
mostra o claro domínio dos serviços: 86,7% dos profissionais trabalhavam no setor
terciário, cabendo a maior fatia à “educação” (incluindo as instituições do
ensino superior), com 22% do total de teletrabalhadores. Pudera! Tiveram, entre
outras ações, de fazer reuniões não presenciais, apoiar remotamente alunos que
tinham de faltar à escola, apresentar relatórios às direções escolares e aos diversos
serviços ministeriais, muitas das provas de aferição foram realizadas por via eletrónica.
Logo a seguir vêm as “atividades de informação e comunicação”, com 14,6% do
total, e as “atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares”, com
13%.
A maioria que está em teletrabalho (79,3%) é de trabalhadores por conta de
outrem (TCO), mas o peso destes no teletrabalho é inferior ao que atingem na
população empregada no país (84,5%). Já os trabalhadores por conta própria
valem 20,2% do universo de teletrabalhadores – um peso superior aos 14,7% que
têm no total do emprego no país. Os profissionais seniores (com 45 e mais anos)
representam quase metade (49,1%) dos trabalhadores em regime remoto. Contudo
esta também é a faixa etária dominante no mercado de trabalho, representando
51,3% do total da população empregada no segundo trimestre deste ano. A segunda
faixa etária mais representativa no teletrabalho é a dos 35 aos 44 anos, que
representa 27,1%. O peso desta faixa etária no trabalho remoto é até superior
ao peso que tem no total do emprego no país, onde fica pelos 24,6%.
Com a pandemia a perder força, muitas empresas encetaram um regresso ao
trabalho presencial adotando modelos híbridos, combinando trabalho presencial e
remoto. Os dados indicam que dos cerca de um milhão de pessoas que trabalharam
em casa no segundo trimestre do ano, 27,6% o fizeram regularmente, mediante um
sistema que concilia trabalho presencial e em casa. Porém, uma parcela ainda
maior (33%) trabalhou sempre em casa, ou seja, em regime não presencial. É de
relevar o facto de um em cada quatro trabalhadores (25,2%) que trabalharam em
casa, indicarem que desempenham funções fora do horário de trabalho. E o INE
revela que, tendo em conta o total da população empregada que indicou ter
trabalhado em casa no período analisado, o número médio de dias por semana
trabalhados em casa, foi de quatro.
Os ganhos de produtividade são uma das principais vantagens apontadas ao
trabalho remoto. Contudo, o estudo “Personality traits, remote work and
productivity” (Traços de personalidade, trabalho remoto e produtividade), dos
economistas Nicolas Gavoille e Mihails Hazans, realça que não há relação
linear. Os ganhos dependem dos perfis pessoais e dos traços de personalidade
dos trabalhadores envolvidos. Com efeito, analisada a produtividade de 1700
teletrabalhadores, com base em cinco perfis distintos – os extrovertidos, os
conscientes, os amáveis, os emocionalmente estáveis e os disponíveis para novas
experiências –, os dados documentam a existência de relação direta entre as
caraterísticas pessoais dos profissionais, a sua produtividade e a sua predisposição
para continuar a trabalhar remotamente. Perfis conscientes e disponíveis estão
positivamente associados a maior produtividade quando em trabalho remoto, sobretudo
no caso das mulheres. Já nos perfis extrovertidos, a preferência pelo
teletrabalho é negativa e tem impacto negativo na produtividade. Assim, a
investigação conclui que uma política transversal pré-formatada de trabalho
(com regras iguais para todos os profissionais), impondo o modelo remoto ou
presencial, “não maximiza nem a produtividade da empresa, nem a satisfação dos
trabalhadores”.
E este ponto não é irrelevante. Nos últimos meses, ancorados nas
dificuldades de contratação em vários setores, os trabalhadores ganharam poder
negocial e ditam as regras de contratação, exigindo maior flexibilidade na
gestão do trabalho e a possibilidade de o desempenhar em sistema remoto. Muitos
despediram-se face à recusa do empregador ou à imposição do regresso ao
escritório. Mas já se questiona, com a conjuntura económica a degradar-se,
nomeadamente na Europa e nos Estados Unidos, e com a possibilidade da recessão
no horizonte, se esse poder negocial dos trabalhadores se manterá e se a
possibilidade de teletrabalho continuará a ser fator-chave na decisão de
mudança de emprego. Alguns observadores admitem o risco, mas sustentam que dependerá
da evolução do cenário económico. Para já, não há sinais da perda do poder negocial
dos candidatos e, a acontecer, “não será uma tendência generalizada no mercado”.
Dependerá do perfil dos candidatos, da escassez (ou não) de profissionais e de dificuldades
de contratação, devendo os candidatos continuar a ditar as regras em muitos
casos.
***
O Código do Trabalho,
na redação que lhe deu a Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro, em vigor a partir a
1 de janeiro de 2022, estabelece, particularmente nos artigos 165.º a 171.º, o
novo regime jurídico do teletrabalho. Um dos principais objetivos é garantir
a igualdade de tratamento dos trabalhadores desse regime com o dos outros. Assim,
como quem está a trabalhar em regime presencial, quem trabalha remotamente deve
ter contrato, horário de trabalho, formação, salário e oportunidades de
progressão na carreira. Qualquer trabalhador tem direito ao
teletrabalho, desde que tal venha a ser acordado entre empregador e trabalhador.
Adicionalmente, fica estipulado que não pode ser negada a realização de
teletrabalho às vítimas de violência doméstica, a pais com filhos de idade até três
ou oito anos e a cuidadores informais.
O
teletrabalho é extensível a pais com filhos até aos 8 anos de idade quando
ambos os progenitores reúnem condições para a atividade em regime de
teletrabalho, desde que exercido por ambos em períodos sucessivos de igual
duração num prazo máximo de 12 meses, e no caso de famílias monoparentais ou de
situações em que só um dos progenitores reúne condições para o exercício da
atividade em regime de teletrabalho.
***
Em
suma, respeitando os contextos, observando as normas legais e não deixando de
zelar pelos superiores interesses da empresa-serviço, o teletrabalho pode ser
um fator de humanização, da articulação família-trabalho e da relação trabalho-valorização
pessoal, social e profissional.
2022.08.17
– Louro de Carvalho
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