Foi a grande asserção do padre António Alves Pinto da Costa na homilia da
Igreja da Misericórdia de Santa Maria da Feira neste 21.º domingo do Tempo
Comum no Ano C.
Na verdade, o Evangelho desta dominga (Lc 13,22-30) mostra-nos Jesus
confrontado com a questão do número dos que se salvam, respondendo que a porta
é estreita, mas que o banquete do Reino é para todos. Porém, não há entradas
garantidas, nem reservas feitas, pelo que urge a opção pela porta estreita e o
seguimento de Jesus no dom da vida e no total amor aos irmãos.
Continuamos a percorrer o caminho de Jerusalém com Jesus e com os
discípulos, sendo o interesse central do evangelista Lucas descrever, nesta
viagem, os traços do crente genuíno e apontar o caminho do Reino à comunidade
cristã, herdeira e paladina do projeto de Jesus.
O texto é constituído por materiais de distintas procedências, ora
agrupados por razões de índole temática. Eram ditos do Senhor, proferidos em
contextos distintos, sobre a entrada no Reino, que Mateus apresenta sob formas
e em contextos diferentes e que Lucas aproveita para vincar a diferença entre a
teologia dos judeus e a de Jesus acerca da salvação, tema nuclear da pregação
do Senhor e da pregação apostólica.
Na perspetiva da catequese lucana, as palavras de Jesus são uma reflexão
sobre a salvação com base numa pergunta colocada na boca de alguém: “Senhor,
são poucos os que se salvam?”
A temática da salvação era muito discutida em ambiente rabínico. Os
fariseus sustentavam que a salvação era reservada ao Povo eleito e só a ele; e,
nos círculos apocalípticos, defendia-se que muito poucos estavam destinados à
felicidade eterna. No entanto, Jesus falava de Deus como o Pai cheio de
misericórdia, cuja bondade acolhia a todos, especialmente os pobres e os
débeis.
Jesus não responde diretamente à pergunta, pois, mais do que falar em
números a propósito da salvação, importa definir os pressupostos de pertença ao
Reino e criar nos discípulos as condições para a decisão consentânea. Ora, na ótica
de Jesus, entrar no Reino implica esforçar-se por “entrar pela porta estreita”.
A imagem da porta estreita significa a renúncia aos fardos que engordam o homem
e o impedem de viver a lógica do Reino. São eles o egoísmo, o orgulho, a
riqueza, a ambição, a sede de poder e de domínio. De facto, tudo o que impede o
homem de embarcar na lógica de serviço, de entrega, de amor, de partilha, de dom
da vida, impede a adesão ao Reino.
Para explicitar melhor este ensinamento, o evangelista põe na boca de Jesus
uma parábola em que o Reino é descrito, na linha da tradição judaica, como o
banquete em que os eleitos estarão lado a lado com os patriarcas e com os
profetas e em cuja mesa se sentarão todos aqueles que acolheram o convite de
Jesus, aderiram ao seu projeto e aceitaram viver, no seguimento de Jesus, a
vida de amor, de doação e de serviço. Não haverá critérios com base na raça, na
geografia, na etnia, que barrem a alguém a entrada no banquete do Reino: o que
é decisivo é a adesão a Jesus. E quem não acolher deliberadamente a proposta de
Jesus ficará autoexcluído do banquete do Reino, ainda que se considere muito
santo e tenha pertencido, institucionalmente, ao Povo eleito.
Jesus fala a judeus e sugere que não é pelo facto de pertencerem a Israel que
têm a entrada no Reino assegurada. Porém, a parábola aplica-se aos discípulos
que não queiram despojar-se do orgulho, do egoísmo, da ambição, para percorrerem,
com Jesus, a via do amor e do dom da vida.
Já no texto que foi assumido como 1.ª leitura (Is 66,18-21), um profeta não
identificado dá-nos conta da visão da comunidade escatológica: uma comunidade
universal, a que acederão todos os povos da terra. E os pagãos serão chamados a
testemunhar a Boa Nova e convidados para o serviço de Deus, sem qualquer
discriminação baseada na raça, na etnia ou na origem.
Os capítulos 56-66 do livro dito de Isaías (conhecidos como Tritoisaías) são atribuídos comummente a
vários autores, vinculados ao Deuteroisaías
e que apresentaram a sua mensagem nos fins do século VI e princípios do século
V a.C., em contexto pós-exílico.
Há, então, dentro do antigo reino de Judá, uma comunidade heterodoxa, que
junta regressados do Exílio, judeus que ficaram no país após a catástrofe de
586 a.C., estrangeiros que se estabeleceram em Jerusalém durante o Exílio e
outros que, após o regresso dos exilados, vieram oferecer mão-de-obra. Neste
ambiente, levanta-se a questão se os estrangeiros, cada vez mais numerosos, se podem
integrar no Povo de Deus. Ora, a comunidade regressada do Exílio sente-se
ameaçada por inimigos internos (os que ficaram no país e não entendem o zelo
dos retornados) e por inimigos externos (sobretudo os samaritanos), pelo que
tende a fechar-se. E Esdras e Neemias – os líderes desta fase – favoreceram uma
política xenófoba, proibindo até os casamentos mistos.
Os textos do Tritoisaías abordam o problema dos estrangeiros, manifestando
uma vasta gama de atitudes, que vão desde o apelo ao aniquilamento das nações
que se obstinam no mal até à admissão de estrangeiros no Povo de Deus. Contudo,
domina a ótica universalista, aberta e tolerante para com os outros povos.
Todas as nações são chamadas a integrar o Povo de Deus. E é nessa perspetiva
que o hagiógrafo compõe a visão de caráter escatológico que o texto em causa nos
apresenta: no mundo novo que virá, todos são convocados. Primeiro, Deus virá iniciar
o processo de reunião das nações; depois, dará um sinal e enviará missionários,
escolhidos de entre os povos estrangeiros, para anunciarem a glória do Senhor –
mesmo às nações mais distantes; em seguida, as nações responderão ao sinal e
dirigir-se-ão para o monte santo de Jerusalém (Jerusalém é, na teologia
judaica, o umbigo do mundo, o lugar onde Deus reside no meio do Povo e donde
irromperá a salvação), trazendo como oferenda ao Senhor os israelitas dispersos
no meio das nações; por fim, o Senhor escolherá de entre os que chegam – os regressados
da diáspora e os pagãos que acolheram o convite do Senhor para integrar a
comunidade da salvação – sacerdotes e levitas para O servirem.
Naquele contexto político, era difícil a visão tolerante sobre as outras
nações. Dizer que todos os povos são convocados por Deus e que Deus a todos
oferece a salvação era algo de escandaloso para judeus; é inaudito dizer que
Javé escolherá de entre eles missionários, para os enviar às nações; e é inconcebível
que Deus escolha, entre os pagãos, sacerdotes e levitas que entrem no espaço
reservado do Templo (onde pagão que entrasse era réu de morte) para o serviço
do Senhor.
Não obstante, não falta ao profeta a coragem e o desassombro para proclamar
o desígnio do Senhor, que faz maravilhas em quem e com quem muito bem entende,
cabendo-nos acolher o dom da bondade e a graça do auxílio de que necessitamos,
bem como tornar-nos profetas e arautos do mesmo Senhor.
***
Talvez seja oportuno, nesta hora de refugiados e de imigrantes, reforçar a
aprendizagem da tolerância, do acolhimento, do respeito pelas suas culturas, e
da integração na nossa sociedade, partilhando com eles – venham de onde vierem
– a nossa cultura e os nossos desígnios e aproveitando a sua capacidade de trabalho
cooperante e a sua força de viver.
Por outro lado, urge precavermo-nos para que a fé pessoal e a sua expressão
comunitária não definhem e não se amoldem a situações antievangélicas. Também a
comunidade ou o grupo de comunidades a que se dirigia a Carta aos Hebreus
perdera já o entusiasmo inicial e arrastava-se numa fé instalada, cómoda e sem
grandes exigências; e, em tempo de tribulações e de perseguições, corria o
risco da apostasia.
Assim, no trecho (Heb 12,5-7.11-13), assumido como 2.ª leitura da liturgia
desta dominga, o hagiógrafo, tendo apelado aos
crentes a que se esforçassem, como atletas, para chegarem à vitória, a exemplo
de Cristo, incita-os agora a aceitar a correção e a repreensão de Deus como
atos pedagógicos de Pai preocupado com a felicidade dos filhos.
A temática fundamental gravita em torno do sentido do sofrimento e das
provações que os crentes têm de suportar. A mentalidade religiosa popular via no
sofrimento um castigo de Deus para o pecado do homem, mas o autor da Carta aos
Hebreus ensina que o sofrimento não é castigo, mas medicina e pedagogia, que
Deus utiliza para nos amadurecer e ensinar a viver e nos demonstrar a sua solicitude
paternal. Como sinal do amor de Deus o sofrimento é prova da nossa condição de
filhos de Deus. E, além de nos mostrarem o amor de Deus, as provações
aperfeiçoam-nos, transformam-nos e levam-nos a mudar a vida. Por essa transformação,
fazemo-nos interiormente capazes da santidade de Deus. Por isso, quando chegam,
as provações devem ser vistas como parte do projeto salvador, portadoras de paz
e de salvação e motivo de agradecimento.
Citando Is 35,3, o autor da Carta aos Hebreus exorta os crentes a confiarem
e a vencerem o temor que desalenta e paralisa.
Parece que nos deslocamos, em relação ao que nos é proposto pelos outros
dois textos. Todavia, as ideias da Carta aos Hebreus são outra forma de abordar
a questão da porta estreita, mas aberta a todos. E o crente, enfrentando com
coragem os sofrimentos e as provações, vê neles sinais do amor de Deus que
educa, corrige, mostra o sem sentido de certas opções e nos prepara para a vida
nova do Reino. Por isso, há que ir por todo o mundo anunciar a boa nova, de
modo que todos os povos louvem e aclamem o Senhor, pois é firme a sua misericórdia
para connosco e a sua fidelidade permanece para sempre (cf. Salmo 117). E fica
a certeza de que Jesus é o caminho, a verdade e a vida; ninguém vai ao Pai
senão por Ele (cf. Jo 14,6).
2022.08.21 – Louro de Carvalho
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