O debate é europeu, mas fez caminho no Governo e no
grupo parlamentar do PS. Na verdade, a espiral inflacionista, gerada com a guerra
na Ucrânia, e as suas circunstâncias, designadamente o disparo dos custos das
matérias-primas e da mão-de-obra, bem como a escassez de materiais, induziu a
proposta da revisão dos prazos e das metas, bem como a de eventual reforço
financeiro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
Portugal, cujo PRR tem estado em escrutínio teórico da
parte do Presidente da República, o qual vem urgindo o cumprimento de prazos, e
monitorizado pelo competente organismo criado pelo governo, receberá a verba
adicional de 1 600 milhões de euros, não prevista de início, pelo que tem
de ajustar o plano de modo que tal verba não venha ser absorvida pela inflação.
Há indicadores a avaliar: o fator tempo, ou seja, se
se justifica um prolongamento na execução do PRR para lá de 2026, e a questão
do eventual reforço financeiro ou a revisão das metas, como observava Nuno
Fazenda, deputado socialista e presidente da subcomissão de acompanhamento dos
Fundos Europeus e do PRR. Portugal não quis liderar o debate que já começou em
Bruxelas, lançado por alguns países, como a Polónia, que admitiu dificuldades
em cumprir as metas e prazos do PRR, mas, em entrevista ao Público e à Rádio Renascença,
a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, considerava ser preciso olhar
para as metas, para os prazos e para os preços.
Sublinhando que pode estar em causa, por exemplo, não
se pode executar o mesmo face ao preço dos materiais, Nuno Fazenda aponta como
um dos exemplos de metas que podem ter de ser revistas é o das 26 mil casas que
o governo se propôs fazer para famílias mais necessitadas até 2026. São, como
outras, metas a rever face ao custo das matérias-primas e da mão-de-obra.
Há, porém, outros riscos com a chegada de tanto dinheiro,
como a corrupção, tema que tem sido levantado por Marcelo a pedir mais escrutínio
e transparência na execução dos fundos. E Nuno Fazenda admite o risco como em
todas as atividades, mas recorda que o país até figura bem na tabela europeia,
sendo um dos que tem menos irregularidades na execução dos fundos. Não obstante,
defende que “as estruturas de gestão e controlo têm de ser reforçadas” com mais
pessoal e meios tecnológicos. A subcomissão a que preside fez audições, por
exemplo, à Agência para o Desenvolvimento e Coesão (ADC) e à Estrutura de
Missão Recuperar Portugal e prometeu coordenar-se com as comissões e entidades
intervenientes nos fundos, destacando a iniciativa legislativa para propor
medidas que melhorem a gestão dos fundos.
A Comissão Europeia (CE), que solicitou aos
Estados-membros que revissem os seus PRR face aos atuais constrangimentos e os
acompanha neste processo, já veio a terreiro declarar que a barreira temporal
de 2026 é de todo inultrapassável, não dizendo o mesmo de outras metas e até do
eventual reforço financeiro.
Face à posição de Bruxelas e aos apelos de Marcelo Rebelo de Sousa, uma das
palavras de ordem da rentrée do governo é “urgência”, no caso, para acelerar a
execução de obras do PRR. Quatro meses depois da pressão pública do chefe de
Estado, que recebeu na altura os partidos políticos para sinalizar a
preocupação com os atrasos na execução do PRR, o Executivo vai apresentar alterações
legislativas, que passam por nova alteração ao Código dos Contratos Públicos
(CCP) para a criação de um novo regime especial com vista à adjudicação de uma
obra desde a conceção à execução num só concurso, a mexidas nos licenciamentos
ambientais e a aceleração de procedimentos administrativos. Com efeito, se a
execução do PRR já era difícil, mais ficou com a guerra na Ucrânia, apertando
prazos, dificultando o acesso a matérias-primas e encarecendo as existentes e
aumentando a dificuldade de encontrar mão-de-obra.
Apesar de a CE ter admitido a revisão de metas intermédias para o
desembolso das tranches do PRR, estão milhões em risco. Por isso, há que mexer
nas diversas leis que possam criar entropias e entraves e criar um pacote de
simplificação administrativa, que será conhecido em setembro.
A proposta do Governo com mais impacto é a alteração ao CCP. Na
anteproposta de lei, que esteve em consulta pública até 16 de agosto, está previsto
“novo regime de conceção-construção especial”, ou seja, um novo modelo que
permite que em apenas um concurso seja adjudicada uma obra desde o planeamento
à construção, reduzindo o número de concursos para uma só empreitada e, como
consequência, uma compressão dos prazos totais.
O apressar das obras é o objetivo. E esta alteração possibilitará “a
eliminação de dispêndios de tempo e recursos desnecessários”. Não é a primeira
vez que o Governo tenta implementar um tal regime, mas tem esbarrado com várias
críticas, nomeadamente do Tribunal de Contas (TdC), que alertava para o
aumentava dos riscos de conluio. Agora, o governo não irá tão longe como
previsto e diz que esta não é uma proposta fechada, querendo trabalhar com a
Ordem dos Arquitetos (OA), uma das entidades que tem apresentado mais dúvidas e
críticas.
O Governo não se concentra nas questões de transparência dos contratos,
tema que suscitou um veto presidencial em 2020. E, ultrapassadas as dúvidas
presidenciais, foca-se em acelerar os concursos para responder à exigência de
Marcelo, que pedia transparência e celeridade para evitar que ao PRR fosse
associada a ideia de corrupção. Na prática, o governo quer aplicar o modelo a mais
casos, apesar de o regime vigente se manter para obras de especial complexidade
técnica, e que tenha maior impacto nas obras de habitação pública com
financiamento do PRR, um braço do plano português a cargo do Ministério das
Infraestruturas e Habitação que vale mais do que os €2,7 mil milhões. E quer
que os critérios de adjudicação de uma obra avaliados pelos júris dos concursos
sejam objetivos e que os critérios de valorização estética e funcional, de
caráter subjetivo, sejam discutidos já com o vencedor do concurso no âmbito do
contrato. Contudo, cria uma salvaguarda para garantir a qualidade arquitetónica
das obras: o vencedor terá de apresentar três propostas e, caso nenhuma seja
adequada, o adjudicatário pode cancelar o concurso.
Esta revisão do CCP faz ainda ajustes à legislação, depois de procedimento de
infração da CE, desde uma limitação dos ajustes diretos e acrescenta mudanças
ao abrigo da Agenda do Trabalho Digno, para mexer só uma vez no CCP.
Esta medida junta-se à legislação excecional de revisão de preços de
empreitadas de obras públicas. A pari,
está em consulta pública a anteproposta de lei para a eliminar licenças,
autorizações, atos e procedimentos desnecessários, simplificando a atividade
das empresas e incentivando o investimento pela redução dos encargos administrativos
e dos custos de contexto. E haverá mais alterações a procedimentos
administrativos.
***
A Ordem dos Engenheiros (OE), que
está ao lado do governo, envia-lhe propostas de alteração, pois quer ver
melhorado o texto para o regime especial de aceleração das obras do PRR. Os
engenheiros, observando que há “espaço
para algumas melhorias no texto”, entregaram proposta de alteração em
três pontos: preço-base das obras; regras para o novo modelo de
conceção-construção; e “trabalhos complementares” que sejam necessários em cada
obra.
A OE reconhece que o texto do governo concretiza
medidas que promovem a transparência e a celeridade, sem prejudicarem a
qualidade”. Mas deixa também críticas e alertas. No comunicado oportunamente
divulgado, lê-se que “há muito” a OE tem defendido a importância de impedir a prática de preços abaixo do
mercado, o dumping salarial e social,
pelo que considera que as empresas públicas devem estabelecer preços-base para
os concorrentes. O texto do governo
sugere-o, mas não com caráter obrigatório, o que para a OE é fundamental.
Também os engenheiros escrevem que o regime de “conceção-construção
colaborativa” deve cingir-se a “obras de especial complexidade ou em que o
prazo de investimento público assim o exija”. No entanto, a grande crítica tem
a ver com a salvaguarda que o Governo cria para garantir a qualidade das obras:
os critérios de valorização estética e funcional, que são subjetivos, só são
discutidos depois de haver vencedor (para que as obras acelerem), mas com a
obrigação de este apresentar três
propostas de projeto. Ora, para a OE, a ideia não só não acelera os processos
como cria barreiras a que as empresas se candidatem. Qualquer
outra interpretação, segundo a OE, é de quem não tem experiência na
apresentação de propostas, pois querem-se propostas de “grande
objetividade, elevada exigência conceptual, garantia de qualidade” e isso “nunca se compadece com a obrigatoriedade
da apresentação de três diferentes estudos prévios”. Aqui tem razão a
OE.
Por fim, a OE refere como “muito vagos” os conceitos referentes aos
“trabalhos complementares” das obras, o que abre espaço a aumento da litigância,
problema estrutural na contratação pública. Sugere, por isso, uma delimitação
do que pode ser tido como trabalho complementar “altamente
inconveniente ou que provoque um aumento considerável de custos”.
Pela segunda vez que o governo tenta criar um regime especial para acelerar
as obras ao abrigo do PRR, encalha no parecer da Ordem dos Arquitetos (OA).
A OA diz, em comunicado, que o governo pretende alargar de tal modo o
modelo especial que “não existe exceção, mas antes a possibilidade de o
encomendador, de forma livre, arbitrária, generalizada e definitiva, recorrer
ao regime de conceção-construção”.
Para os arquitetos, um dos problemas da proposta “especialmente gravosa” é
que põe de lado o trabalho “de dezenas de milhares de projetistas (arquitetos e
engenheiros) em prol de construtoras de maior dimensão e de maior capacidade
técnica e financeira”.
Esta era já uma crítica em 2020, quando o governo tentou criar um mecanismo
semelhante, que deixou cair depois de várias críticas, incluindo a do TdC. A OA
suaviza as palavras ao dizer que se fecham “as janelas à transparência e livre
concorrência”, mas acusa a proposta de não dar um “passo em frente no que toca
ao bom uso dos dinheiros públicos e combate à corrupção”.
O objetivo do governo é acelerar prazos para a execução das obras do PRR,
visto que tem tudo de estar em marcha até fins de 2026, o que os arquitetos compreendem,
mas que não pode ser “sinónimo de irresponsabilidade na contratação pública e
no bom uso dos recursos públicos”.
A proposta, que não está fechada, será debatida com a OA para conhecer a
luz do dia em setembro, juntamente com os restantes projetos de simplificação
de procedimentos e licenciamentos.
***
Teremos PRR revisto e exequível ou se forças de bloqueio (nomeadamente o
TdC) o encravam.
2022.08.24 – Louro de Carvalho
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