A ofensiva
militar lançada, a 24 de fevereiro, pela Rússia na Ucrânia causou já a fuga de quase
17 milhões de pessoas de suas casas – mais de seis milhões de deslocados
internos e mais de dez milhões para os países vizinhos –, de acordo com os mais
recentes dados da Organização das Nações Unidas (ONU), que classifica esta
crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) e considera que, na Ucrânia, há cerca de 16 milhões de pessoas
necessitam de assistência humanitária.
A
invasão russa – que o Presidente russo, Vladimir Putin, justificou com a
necessidade de “desnazificar” e desmilitarizar a Ucrânia para segurança da
Rússia – foi severamente condenada pela generalidade da comunidade
internacional, que está a responder com o envio de armamento para a Ucrânia e com
a imposição à Rússia de sanções económicas e políticas que atingem praticamente
todos os setores, da banca à energia e ao desporto.
A
ONU confirmou que 5.327 civis morreram e 7.257 ficaram feridos na guerra, que
já vai no seu 162.º dia, sublinhando que os números reais deverão ser muito
superiores e só serão conhecidos quando houver acesso a zonas cercadas ou sob
intensos combates.
É claro que os holofotes do mundo incidem sobre a
desmedida ambição da Rússia como a culpada de todas as mortes de civis, em que
se incluem crianças, esquecendo as ambições e os erros do Ocidente,
nomeadamente a excessiva dependência, a que se habituaram porque a ciaram, dos produtos
russos, a extensão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e da
União Europeia (UE) a leste e a imposição de sanções com efeito de ricochete.
Entretanto,
a Amnistia Internacional (AI), que já tinha descoberto a careca às autoridades
russas no atinente aos crimes humanitários por elas cometidos na Ucrânia, veio
alertar, a 4 de agosto, que a atuação das forças ucranianas coloca em perigo a
população civil, quando estabelecem bases militares em zonas residenciais e, a
partir daí, lançam ataques contra os russos, que facilmente produzem efeitos
mortíferos ou afins em civis ucranianos.
Num
comunicado adrede divulgado, aquela organização de direitos humanos ressalva
que esta atuação não justifica de modo algum os ataques indiscriminados da
Rússia, que mataram mais de cinco mil civis, de acordo com as Nações Unidas. No
entanto, considera que as forças armadas ucranianas
põem civis em perigo, quando montam bases e operam sistemas de armas “em zonas
habitadas por civis, incluindo em escolas e em hospitais, para repelir a
invasão russa que começou em fevereiro”. São táticas que violam o direito internacional e tornam zonas civis em
objetivos militares contra os quais os russos retaliam.
O resultado é a morte de civis e a
destruição das infraestruturas.
A este respeito,
Agnès Callamard, secretária-geral da AI, declarou que “estar numa posição
defensiva não isenta as forças armadas ucranianas de respeitar o direito internacional
humanitário”.
Na sua investigação
sobre os alegados crimes de guerra cometidos pela Rússia, o grupo concluiu que
aconteceram em algumas zonas de Kharkiv, mas descobriu também que as forças armadas
ucranianas lançavam ataques a partir de zonas residenciais habitadas e tinham
ocupado edifícios civis em 19 cidades e localidades nas regiões de Kharkiv,
Mikolayv e Donbas.
Entre abril
e julho, a AI entrevistou sobreviventes, testemunhas destes ataques, e analisou
imagens recolhidas por satélites para avaliar as acusações. E, nos casos que documentou, não concluiu que os militares ucranianos
instalados em infraestruturas civis tenham pedido aos cidadãos que evacuassem
os edifícios em volta.
***
De
imediato, Kiev veio a terreiro rejeitar as acusações da AI sobre perigos
infligidos a civis.
Efetivamente,
o chefe da diplomacia ucraniana,
Dmytro Kuleba, afirmou, no dia 4 de agosto, estar “indignado” com as acusações “injustas”
avançadas pela Amnistia Internacional, que denunciou terem as forças de Kiev
também colocado civis em perigo no conflito em curso com Moscovo.
“Estou indignado, como todos, com o
relatório da Amnistia Internacional. Considero-o injusto” – afirmou o ministro
dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, num vídeo publicado no Facebook.
No mesmo vídeo, Dmytro Kuleba lançou também acusações à AI, criticando a
ONG por “criar um falso equilíbrio entre o opressor e a vítima, entre o país
que está a destruir centenas e milhares de civis, cidades, territórios, e o
país que se está a defender desesperadamente”. E apelou:
“Parem de criar esta falsa realidade,
onde todos são um pouco culpados de alguma coisa, e comecem a relatar
sistematicamente a verdade sobre o que a Rússia realmente representa hoje”.
Momentos antes destas declarações de
Kuleba, já o conselheiro presidencial ucraniano, Mykhailo Podoliak, tinha
reagido ao relatório desta ONG, assegurando que “as vidas das pessoas” são “a
prioridade” e que as populações das cidades próximas das frentes de combate
estavam a ser retiradas. E acusou a AI de participar numa “campanha de
desinformação e propaganda” para servir os argumentos do Kremlin.
No mesmo dia, foi notícia que o presidente
ucraniano, Volodymyr Zelensky, veio dizer que é “simplesmente repugnante” que “ex-líderes
de poderosos Estados com valores europeus trabalhem para a Rússia, que está a lutar contra
esses valores”, numa aparente referência aos comentários do
ex-chanceler alemão Gerhard Schröder de que o Kremlin queria uma “solução
negociada” para a guerra.
O líder do país devastado pela guerra
proferiu essas declarações no seu discurso diário no dia 3 de agosto, após a
publicação de uma entrevista na imprensa alemã, na qual Schröder pediu
negociações com o presidente russo, Vladimir Putin.
“A boa notícia é que o Kremlin quer um acordo negociado”, disse o
ex-chanceler de 78 anos, antecessor de Angela Merkel, após confirmar que se
encontrou com Putin em Moscovo, na semana passada, e pediu a Berlim que reconsiderasse a sua
posição sobre o gasoduto Nord Stream 2, que está concluído, mas foi bloqueado
pelo governo alemão no período que antecedeu a invasão da Ucrânia pelas tropas
da Rússia.
***
A invasão da Ucrânia pela Rússia
levou a uma enorme pressão pública na Alemanha para que Schroeder volte as
costas a Putin e corte os seus laços com os gigantes da energia da Rússia. Assim,
o chanceler alemão Olaf Scholz, que é do Partido Social-Democrata, tal como
Schroeder, instou repetida e publicamente o ex-líder a desistir das suas
ligações à Rússia. E, em maio, o parlamento alemão decidiu retirar as regalias
de Schroeder, incluindo um escritório e funcionários pagos concedidos que lhe
foram concedidos como ex-chanceler.
Schroeder, chanceler da Alemanha
entre 1998 a 2005, condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia como
injustificada, mas disse que o diálogo devia continuar.
Na verdade, se o diálogo não se
retoma, a guerra continua a destruir, a matar e a fazer reféns, deslocados e
refugiados.
Contudo, o país invadido habitou-se a
ter o apoio incondicional dos países do Ocidente, que disponibilizaram a
Zelensky tempos de antena extraordinários nos seus parlamentos em regime de videoconferência,
apesar de o Presidente ucraniano ter, algumas vezes, criticado estes países por
um apoio insuficiente ou por um apoio prometido, mas que não chegava.
É um mau hábito, quando a diplomacia tem
de ser cautelosa para ser eficaz e quando se estranha que o pensamento único em
prol do país invadido sofra varias exceções. Com efeito, em ambiente de guerra,
muito embora a culpa maior seja do invasor (não há equilíbrio de responsabilidades
e de culpas), há de assumir-se, no entanto, que os erros de guerra estão dos
dois lados. Portanto, face aos alertas da AI, as autoridades ucranianas não têm
como deixar de rever as suas estratégias e táticas de guerra defensiva e de contra-ataque.
Continua a ser válido o que pregava o
padre António Vieira, em 1668, nos aniversário da rainha D. Maria Francisca de Saboia:
“É a guerra
aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto
mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade
terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, as cidades, os castelos, e
talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela
calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que ou não
se padeça ou não se tema, nem bem que seja próprio e seguro: – o pai não tem
seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu
suor; o nobre não tem segura a sua honra; o eclesiástico não tem segura a
imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos
sacrários, não está seguro.”
Enfim, não
está segura a verdade factual, a liberdade de expressão e a liberdade de
reunião!
2022.08.04 – Louro de Carvalho
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