No passado dia 27 de agosto, celebrou-se um consistório (assembleia de
cardeais) extraordinário, na Basílica de São Pedro, em Roma, para a criação de
20 novos cardeais (dos quais 16 serão eleitores, por não terem 80 anos) e para o
voto sobre algumas causas de canonização.
Entre os cardeais ora criados contam-se: Dom Virgílio do Carmo Silva,
arcebispo de Díli (Timor-Leste), Dom Leonardo Ulrich Steiner, arcebispo de Manaus
(Brasil), Dom Paulo Cezar Costa, arcebispo de Brasília (Brasil), e Dom Filipe
Neri António Sebastião do Rosário Ferrão, arcebispo de Goa e Damão (antigo Estado
da Índia) – ligados ao mundo da lusofonia.
Francisco, 85 anos, tem lidado com dores persistentes no joelho, pelo que
entrou na celebração em cadeira de rodas e permaneceu sentado praticamente todo
o tempo.
Na homilia da Celebração da Palavra, que enquadrou a cerimónia, depois de
proclamado um passo do Evangelho de Lucas (Lc 12,49-50), a alocução do Sumo
Pontífice gravitou em torno da asserção do Senhor, bem no centro do Evangelho
lucano: “Vim lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!”.
O fogo é a
chama poderosa do Espírito de Deus, “Amor apaixonado que purifica, regenera e
transfigura tudo” e que se revela plenamente no mistério pascal de Cristo, abrindo
Ele, como coluna ardente, caminho da vida através do mar escuro do pecado e da morte.
Há também o fogo das brasas, que se encontra no Evangelho de João, no relato da
terceira e última aparição do Ressuscitado aos discípulos. Este fogo foi aceso
por Jesus, junto da praia, enquanto os discípulos puxavam dos barcos a rede
cheia de peixes. É fogo, suave e escondido; dura muito tempo; é usado para
cozinhar; e cria ambiente familiar de fruição, maravilha, emoção e intimidade.
Foi esta
dupla imagem do fogo que o Santo Padre expôs como guia de vida dos cardeais e
como pauta da oração por eles. Com efeito, Jesus chama a segui-Lo na rota da
sua missão, missão de fogo para os que, na Igreja, foram tirados do meio do
povo para um especial ministério de serviço. A imagem do fogo, qual tocha acesa
que o Senhor nos entrega, significa que Ele comunicar-nos a sua coragem apostólica, o seu zelo pela salvação de cada
pessoa, sem excluir ninguém, e quer comunicar-nos a sua magnanimidade sem limites, sem
reservas, sem condições, porque a misericórdia do Pai arde no seu coração. E,
neste fogo, há a luz da misteriosa tensão, própria da missão de Cristo, entre a
fidelidade ao seu povo e a abertura a todos os povos, sem exceção, com destaque
para a saída às periferias ainda desconhecidas. Este fogo, que torna incansáveis
os apóstolos, é o que Jesus veio lançar sobre a terra e que o Espírito Santo
acende no coração, nas mãos e nos pés daqueles que O seguem.
Também o
Senhor nos comunica o fogo das brasas, da mansidão, da ternura, da fidelidade, da
proximidade. É o fogo do estilo
de Deus, que ilumina e arde de modo especial na adoração, quando, em silêncio
perto da Eucaristia e saboreamos a presença humilde, discreta do Senhor.
Ora, um
cardeal ama a Igreja sempre com o mesmo fogo espiritual, nas grandes questões e
nas pequenas, no encontro com os grandes do mundo e com os pequenos, grandes
diante de Deus.
Porém, só Jesus
conhece em pleno o segredo da humilde magnanimidade do fogo, desta força
branda, desta universalidade atenta ao detalhe. É o segredo do fogo de Deus,
que desce do céu, iluminando-o de um extremo ao outro e que lentamente cozinha a
comida das famílias pobres, dos migrantes ou dos sem-abrigo. Jesus quer
acendê-lo novamente nas margens das nossas histórias diárias de alegria e de compromisso.
A cada um de nós chama pelo nome, olha nos olhos e pergunta se pode contar com
cada um de nós. Rica lição para os novos cardeais!
Depois da alocução papal, Francisco pediu orações pelo bispo de Wa (Gana),
Richard Kuuia Baawobr, que integra a lista de novos cardeais, hospitalizado
quando chegou a Roma, no dia 26.
A seguir, proclamou os novos cardeais indicando o título ou diaconia atribuídos.
Os novos cardeais fizeram a profissão de fé segundo a fórmula do Símbolo dos Apóstolos e cada um prestou
o juramento de fidelidade a Cristo e ao Evangelho e de obediência cooperante ao
Papa, bem como de total comunhão com a Igreja por palavras e por obras, fazendo
o necessário anúncio e guardando todo e qualquer segredo que lhe seja confiado
na nova missão. Depois, o Papa concedeu a cada novo cardeal o anel de sinete, o
chapéu vermelho, conhecido como barrete cardinalício, e o título ou diaconia, conforme
se trate de cardeal presbítero ou de cardeal diácono. E cada um se ajoelhou
para receber o barrete cardinalício, de acordo com a ordem de criação.
O anel entregue aos cardeais visa o reforço do “amor pela Igreja”; e a
atribuição de uma igreja de Roma a cada cardeal simboliza a participação na
solicitude pastoral do Papa na cidade.
A criação do novo cardeal e o título ou diaconia ficam documentados na
respetiva bula.
***
Este foi o oitavo consistório do atual pontificado, após os realizados a 22
de fevereiro de 2014, a 14 de fevereiro de 2015, a 19 de novembro de 2016, a 28
de junho de 2017, a 28 de junho de 2018, a 5 de outubro de 2019 e a 28 de
novembro de 2020. Nos dias 29 e 30, os cardeais participam na reunião convocada
por Francisco, para reflexão sobre a nova constituição apostólica para a Cúria
Romana (serviços centrais de governo da Igreja Católica), a Praedicate evangelium (Pregai o Evangelho), que termina, com a Missa, às 17,30 horas, na
Basílica de São Pedro.
Este consistório extraordinário para instituir 20
novos cardeais e o subsequente encontro de dois dias revestem-se de vários
condimentos que os tornam especiais e sobre eles concentra-se o interesse de
quem segue de perto a vida e o rumo da Igreja Católica.
É rara e atípica a altura do ano, pois os consistórios têm habitualmente
lugar em junho, em fevereiro ou em novembro. O mês de agosto costuma ser quase
inativo no ritmo da Cúria Vaticana e mesmo de Roma, mas não o é com Francisco. E, desta vez, o Papa coloca os purpurados ante uma
das grandes reformas do pontificado: a Constituição Praedicate Evangelium, promulgada a 19 de março, solenidade de São José, esposo da Virgem Santa
Maria, e em vigor desde 5 de junho, domingo de Pentecostes. É a reforma sobre
“a Cúria Romana e o seu serviço à Igreja no mundo” que está em questão, tendo
sido um dos principais pontos do “caderno de encargos” que Francisco recebeu
dos que o elegeram. Por outro lado, generalizou-se a ideia
de que o consistório e o encontro de dois dias que permitem que os cardeais se
escutem, se conheçam e conversem uns com os outros, tem ar de pré-conclave. A
imagem da cadeira de rodas, reveladora da dificuldade de locomoção do Bispo de
Roma, que o obrigam a reduzir, em especial, as viagens pastorais pelo mundo,
serviram a quem não o aprecia ou o detesta, para insistir que ele poderia
anunciar a sua resignação. Até a viagem do dia 28 para abrir o
Perdão Celestino, ritual que vem de finais do séc. XIII, da autoria do Papa
Celestino V, tem servido como premonição da resignação, visto que Celestino V
tinha sido o último pontífice a resignar até Bento XVI.
O ruído da hipotética resignação, criado à volta dos preditos encontros,
pode levar a subestimar a importância da cimeira com os cardeais, que é um
acontecimento que se eleva acima da espuma dos dias, na atualidade e no futuro
da Igreja. A Praedicate Evangelium
procura arrumar a casa, com soluções sempre reformáveis e questionáveis, mas coloca
a estrutura, os serviços e as pessoas da Cúria em sintonia com os caminhos pastorais
da Igreja, prestando serviço ao Papa e aos bispos de todo o mundo. A limitação
do número de mandatos dos titulares de cargos e a abertura desses cargos a fiéis
leigos são algumas das inovações já no terreno.
Não admira que as soluções encontradas concitem dúvidas, resistências e
perplexidades. E não é de estranhar que haja questões de natureza
teológico-pastoral que os cardeais queiram debater. O historiador italiano Alberto
Melloni, autor e coordenador de uma história do Concílio Vaticano II, escrevia,
na sua coluna da edição do dia 24 de agosto no jornal La Repubblica, sobre as ambiguidades e riscos que podem estar
contidas na medida que abre os cargos a leigos, a qual tanto pode significar
assunção de responsabilidades a partir da base, a condição batismal, como o
reforço do poder discricionário do Papa. Outro aspeto que se entrosa com o papel
da Cúria é o caminho da sinodalidade em curso, que o Papa e um significativo número
de cardeais levam para a agenda do debate. Seria incompreensível que, ensejo
como este, não se conjugassem os diferentes eixos e frentes que têm pautado o
pontificado de Francisco.
Sinais de tensão afloraram na imprensa italiana, com notícias de
que os cardeais seriam apenas informados sobre o caminho feito e sobre os
fundamentos das opções na reforma da Cúria, sem possibilidade de perguntas e de
debate sobre as suas preocupações. Mas essas informações carecem de fundamento pelo
que se conhece da metodologia de trabalho nos dois dias.
Dos 21 cardeais previstos para criação neste consistório, um desistiu,
poucas semanas depois da nomeação, devido a informações sobre encobrimento de
abusos sexuais. Dos restantes 20, quatro já têm mais de 80 anos e 16 serão
eleitores do próximo papa. Onze do total provêm de dioceses que não são
tradicionalmente sedes cardinalícias e três trabalham em dicastérios da Cúria.
Dois – os arcebispos de Marselha e de Brasília – são ordinários de dioceses que
nas últimas décadas já tiveram cardeais. Entre os que vêm de dioceses e países
improváveis, merece referência o novo cardeal de Timor-Leste.
Nos perto de dez anos de pontificado, Francisco nomeou 94 cardeais; quase
metade (48 por cento) foram os primeiros bispos das respetivas dioceses. Estes
números, que não encontram paralelo em papados anteriores, asseguram uma
diversidade de experiências como nunca houve no Colégio Cardinalício. Porém, é
muito provável que muitos deles não se conheçam entre si, até porque as
oportunidades de encontro foram diminutas, sobretudo por causa da pandemia, razão
acrescida para tornar este encontro promovido pelo Papa ainda mais importante.
O site católico The Pillar apresentou, a 23 de agosto, um
quadro da evolução do colégio de cardeais desde 1880 até 2020, com dados pormenorizados por idade, procedência, tipo
de sé a que estavam ligados, número de católicos por cardeal, entre outros
critérios. Terá sido o trabalho mais completo, mais atualizado e mais relevante
para se perceber o alcance do próximo conclave.
Enfim,
um evento que põe a Igreja Católica nas pantalhas da exposição ao mundo, crente
ou não!
2022.08.28 – Louro de Carvalho
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