Era expectável que Estados soberanos
funcionassem como reguladores das relações económicas e arbitrassem o
cumprimento das leis emanadas pelo poder soberano, que reside no povo, o qual entrega
o seu exercício a representantes livremente escolhidos, sem abdicar de ter a
palavra em matérias particularmente relevantes e em períodos de crise grave. Porém,
não é assim na maior parte dos casos, já que o poder económico, dos grandes grupos
empresariais, o poder financeiro, especulativo e sem rosto, e o poder político
autocrático, a falar em nome do povo e pelo bem da nação, deixam que seja a
cegueira do mercado a impor as regras sob o signo da inevitabilidade.
Muitos exemplos poderiam aduzir-se, mas basta-nos
atender ao que se passa atualmente.
Quando os preços dos combustíveis sobem, o
facto repercute-se, de imediato, na carteira dos consumidores, mas, quando
baixam, a repercussão ou é tardia ou não é significativa.
Mal foram decretadas sanções económicas à
Rússia por causa da guerra na Ucrânia, começou nova subida de preços, como se
de nova e sucessiva pandemia se tratasse, e a insuficiência de produtos
petrolíferos e de estruturas de produção e distribuição de energia elétrica fez
soar os alarmes da poupança energética (voluntária e/ou forçada) e da escalada
da subida de preços, com a concorrência a contradizer-se, o governo a disparar
cautelas e os reguladores a falar chinês.
Quando a crise atingiu a banca, os Estados mobilizaram-se
e endividaram-se para a salvar. Os supervisores e reguladores decretaram juros
diretores em taxas negativas, o que não se repercutiu nas taxas dos créditos
pessoais e quase não se repercutiria nas dos créditos à habitação, se não
houvesse uma diretiva dos bancos centrais nesse sentido. Entretanto, os dinheiros depositados a prazo
quase ficaram à taxa zero, criaram-se as taxas de manutenção das contas à ordem
e as comissões bancárias por serviços prestados cresceram.
Agora que o Banco Central Europeu (BCE) e a
Reserva Federal Americana (FED) aumentaram as taxas diretoras dos juros, a
decisão repercute-se nos créditos pessoais e nos créditos à habitação, mas não
nos juros dos depósitos. E crescem acima de 10% as comissões bancárias face a 2021, quando houve confinamento e menor
atividade económica, mas também em relação a 2019, antes da pandemia. Isto,
apesar do travão que o Parlamento colocou a alguns desses encargos.
A Caixa Geral de Depósitos (CGD), o Banco Comercial Português (BCP), o
Santander Portugal (SP) e o Banco BPI encaixaram 1 078 milhões de euros nos
primeiros seis meses de 2022, quando, em igual período de 2021, estava em 953,7
milhões, uma subida de 13%. O valor no primeiro semestre de 2019 estava em 905
milhões de euros, um ganho de 19%.
Os banqueiros, em conferência de imprensa, no início de agosto, avançaram
várias justificações para tais subidas, estribando-se a grande maioria na
recuperação económica, que levou a mais transações e operações bancárias
sujeitas a tal custo. E não julgam que haja propriamente uma subida. Com
efeito, comparando com o primeiro trimestre de 2021, em que “tudo o que estava
associado a transações de cartões era praticamente inexistente, e havia o
efeito das moratórias, em que não se podia cobrar créditos a empresas”, diz Pedro Castro e Almeida, líder do Santander, “voltamos ao padrão normal, o
padrão de 2019”. Porém, a explicação é insuficiente, pois, mesmo face ao
primeiro semestre de 2019, há subida de dois dígitos. Os bancos subiram as
comissões, apontando-as como a alternativa para a obtenção de proveitos fixos,
enquanto os juros estavam em mínimos históricos e não havia vendas de dívida
pública para encaixar ganhos.
Ainda há meses, a associação de defesa do consumidor (DECO) apontava o
aumento de 47% das comissões na última década. Sem conseguirem juros nos
créditos concedidos e apesar de quase não remunerarem os depósitos, os bancos
elevaram as comissões pelos serviços que prestam, o que levou o Parlamento a
travar algumas comissões, designadamente no processamento de crédito e nas
transferências MB Way, que entrou em vigor no início de 2021. Não obstante, nos
dois últimos anos, continuou a haver crescimento de resultados nesta rubrica
das instituições bancárias.
Sobre a decisão do BCE de subir os juros, tendo já decretado a passagem de zero
para 0,5%, e as comissões não virem a descer, Miguel Maya, do BCP, disse tratar-se
de um “processo de normalização”, não de “subida de juros para patamares que
são fora da normalidade”, ou seja, para a taxa zero, que é “uma anormalidade”
em relação ao que é “política monetária normal”.
João Pedro Oliveira e Costa, do BPI, frisou que os encargos sobre os
serviços são “um tema ditado pela concorrência”, anotando a entrada de novos
operadores, o que tem contribuído para a pressão em algumas comissões. Assim, contas
e serviços associados, fundos e seguros de capitalização, créditos, seguros – todos
estes campos têm vindo a render aos bancos. E Paulo Macedo, presidente do banco
público, disse que as comissões “subirão sobretudo pelo crescimento da
atividade”, um “crescimento por via do consumo”, em que “há unanimidade nacional
que se quer estimular”.
Além da margem financeira, é sobre as comissões que o Governo espanhol quer
aplicar o novo imposto sobre os lucros extraordinários, os “lucros caídos do
céu”. Os banqueiros têm mostrado oposição (um gosto para Pedro Sanchez), mas,
em Portugal, os líderes dos principais bancos têm dito que já sofrem impostos
extraordinários, um deles implementado na pandemia (o adicional de
solidariedade) e que não faz sentido sofrer novo embate, antes deveriam começar
a reduzir.
***
Entretanto, em 2022, os bancos portugueses orgulham-se dum semestre de
lucros.
A CGD obteve um lucro de €486 milhões no primeiro semestre, mais 65% do que
no período homólogo de 2021. A grande causa é a inversão de imparidades e
provisões antes constituídas, refletindo risco menor do que o esperado na
covid-19. Também o câmbio do kwanza e do metical face ao euro ajudou a mais
rendimento nas operações em Angola e Moçambique. A venda da sede da sucursal francesa
deu €23 milhões. E a alienação da Esegur, parceria com o Novo Banco (NB), foi
concretizada, mas o encaixe é registado no terceiro trimestre. E, como o Estado
receberá no máximo 50% dos resultados, os dividendos chegarão quase aos €200
milhões, cabendo ao Ministério das Finanças decidir o que fazer aos bancos no
Brasil e em Cabo Verde.
A Polónia continua a marcar, pela negativa, os resultados do BCP e os maus
números vindos do Bank Millennium impediram um maior aumento de lucros do banco.
O resultado líquido cresceu seis vezes, para os €74,5 milhões, mas está entre
os mais magros na banca privada. O banco polaco acionará o plano de
recuperação, mercê das decisões judiciais sobre os créditos indexados ao franco
suíço, concedidos até 2008, mas o líder do BCP exclui a necessidade de aumento
de capital por parte da casa-mãe, bem como a uma operação do género em Portugal.
No SP, não há
novo plano de rescisões, como o do 2021 com o despedimento coletivo. Foi o que
assegurou Castro e Almeida. Em junho, havia 4696 funcionários, menos mil que há
um ano, mas não há intenção de baixar esse número. Graças a isso, os custos
operacionais do banco deslizaram, mas o produto bancário cedeu, pelo que foi a
rubrica de imparidades e provisões a dar contributo favorável na comparação
homóloga. O lucro quase triplicou, situando-se em €241,3 milhões. Os rácios de
capital continuam perto de 20%, mesmo com os mais de €1,5 mil milhões de
resultados distribuídos aos acionistas em três meses.
No NB, os
últimos resultados de António Ramalho, de saída, chegaram aos €267 milhões,
quase o dobro do período homólogo. A evolução é explicada, em boa parte, pela
venda da carteira de imobiliário de logística. O rácio de capital mais
exigente, o CET 1, que subiu um ponto percentual, ficou em 11,8%, sendo que,
por estar abaixo de 12%, pode ser acionado o mecanismo que permite pedir mais
capital ao Fundo de Resolução. Porém, a venda da sede em Lisboa e dos hotéis e
ativos geridos pela sociedade de capital de risco ECS permitirão compor a
solidez sem tal necessidade. Em todo o caso, há litígios no tribunal arbitral
por decidir, sendo que o novo presidente executivo, Mark Bourke, à espera do Ok
do supervisor para o cargo, disse que as respostas só virão em 2023. O que
deverá vir também é a entrega a novo tribunal arbitral do tema da injeção de
€209 milhões, pedida pelas contas de 2021, que não foi feita.
O BPI quer vender
a operação em Angola, por pressão do BCE e por vontade do acionista CaixaBank.
Porém, esta foi a que mais contribuiu para os lucros de €201 milhões no
primeiro semestre. Foram €100 milhões, mais 9% que no semestre homólogo, com o
moçambicano BCI a dar mais 87% do que há um ano. A atividade nacional rendeu um
resultado estagnado de €85 milhões. Excluindo os fatores extraordinários
registados no primeiro semestre de 2021, o lucro em Portugal teria um aumento
de 23%.
Quanto ao
Banco Montepio, do grupo mutualista (ora de boa saúde, com lucros), é preciso
recuar a 2010 para encontrar um tão bom primeiro semestre. Após os prejuízos de
€33 milhões entre janeiro e junho de 2021, o banco obteve um lucro de €23,3
milhões, valor justificado com mais proveitos, menos custos e recuo nas
imparidades. O conjunto de exposições não produtivas (NPE), em que se insere o
crédito malparado, baixou, mas ainda representa 7,7% da carteira. Os rácios de
capital do Montepio, que tem sido um dos problemas, melhoraram, em parte graças
ao Finibanco Angola. Um banco que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa queria
salvar (ou dominar) e que integra a entidade proprietária, mas em fraca
minoria, está a reerguer-se!
***
A desenfreada subida de preços é atribuída à inflação e esta à guerra na
Ucrânia, que gera tão grande mal-estar como anteriormente a epidemia, cujo
ambiente ainda persiste.
Como adverte Maria José Bijóias Mendonça, a culpa, se não morre solteira, casa
com tudo e com todos, incluindo o povo, que falha na escolha dos seus
representantes. E tal promiscuidade é ocasião para a engorda das fortunas dos
líderes de megaempresas nos setores agrário, petrolífero, farmacêutico, tecnológico,
de armamento, sendo os ilegítimos lucros destes grupos os verdadeiros culpados
pelo disparo dos preços dos alimentos, dos combustíveis, da energia, das
comunicações.
Foi obscenamente mutilado o poder de compra da população mundial e mais de
240 milhões de pessoas correm o risco de pobreza extrema e enfrentarão o
flagelo da fome. Contudo, a riqueza dos poucos, os mais abastados, subiu mais
nos últimos dois anos do que nos 23 anteriores. E os 10 homens mais ricos do
mundo possuem mais de 40% do que o resto da Humanidade. Assim, o homem mais
rico à face da Terra, que engrossou a sua fortuna sete vezes desde 2019, pode
desbaratar 99% e continuará no top dos mais ricos.
Mais do que à escassez da oferta, a abstrusa subida da inflação deve-se ao
desmedido lucro das grandes empresas e à especulação financeira. E permanece
atual a máxima de que “o Povo paga a crise”, pois, não obstante esses milhares
de milhões de lucros, em muitas empresas, suprimem-se salários e os pagamentos
a fornecedores, dobram-se os trabalhos e espezinham-se os direitos dos
trabalhadores; os contribuintes veem aumentados os impostos e as contribuições;
e os consumidores pagam mais pelos produtos que adquirem. Ademais, as margens
de lucro são combinadas entre os “monstros” das diversas áreas de negócio.
E o poder regulador do Estado? O Estado limita-se a tirar de um lado para
colocar noutro: aumenta a carga fiscal, distribui subsídios e simula regulação.
Nos grandes não se mexe: podem morder…
2022.08.09 – Louro de Carvalho
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