Em
fevereiro de 2021, Rosa
Monteiro, Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, criou um Grupo
de Trabalho, que integra especialistas e serviços relevantes nesta matéria – de
que são exemplo a Procuradoria-Geral da República (PGR), o Instituto Nacional
de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), a Polícia Judiciária (PJ), o
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o Fundo de Emergência Internacional
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)
Portugal, bem como organizações da sociedade civil com serviços na área da
violência e do tráfico de seres humanos – para se debruçar sobre o fenómeno dos
casamentos infantis, precoces e forçados, fenómeno de particular complexidade e
invisibilidade que encontra agora “um espaço de discussão e que deverá culminar
num Livro Branco sobre práticas tradicionais nefastas, com contributos e
recomendações em matéria de prevenção e combate às mesmas”. O Livro Branco
deveria ser apresentado até dezembro do mesmo ano.
A governante
sustentava que “as políticas públicas são sempre melhores quando assentes em
conhecimento e em abordagens intersectoriais” e que, para compreender esta
realidade, importava auscultar quem trabalha no terreno, bem como analisar e
compreender de que forma a criminalidade conexa se interseciona com os
casamentos infantis, precoces e forçados e molda a forma como os/as
profissionais a interpretam e intervêm. Com efeito, é uma prática muitas vezes
imiscuída em contextos criminais que envolvem tráfico de seres humanos, rapto,
abusos sexuais, violência doméstica e até homicídio.
A 11 de
outubro do mesmo ano, Dia Internacional
das Raparigas, a mesma governante reforçava o compromisso e empenho do
Governo na prevenção e no combate às práticas tradicionais nefastas como os
casamentos infantis, precoces e forçados, que constituem uma violação dos
direitos humanos das mulheres e das raparigas e são obstáculo à plena
realização da igualdade entre mulheres e homens. Na verdade, as raparigas são
mais afetadas pelo fenómeno do que os rapazes por estarem particularmente
vulneráveis e expostas à violência na intimidade, ao tráfico para exploração
sexual, à gravidez indesejada, com riscos de morte materna e infantil e com
maior probabilidade de abandono escolar. E a efeméride foi assinalada com uma
campanha informativa produzida pelo predito Grupo de Trabalho que estudava as
formas de prevenção e de combate dos casamentos infantis, sensibilizando
profissionais dos serviços públicos e técnicos/as, com intervenção no terreno
com vista à desconstrução de mitos associados a estas práticas, bem como alguns
dos principais sinais de alerta a ter em conta.
É de referir
que, em Portugal, o casamento forçado é crime público nos termos da Lei n.º
83/2015, de 5 de agosto, que altera o Código Penal, estabelecendo, por exemplo,
a pena de prisão até 5 anos para “quem constranger outra pessoa a contrair casamento ou união
equiparável à do casamento” (artigo 154.º-B) e a “pena de prisão até 1 ano” ou a
“pena de multa até 120 dias” para os atos preparatórios do predito crime,
“incluindo o de atrair a vítima para território diferente do da sua residência
com o intuito de a constranger a contrair casamento ou união equiparável à do
casamento”. No entanto, a lei não é suficiente, pelo que se exige uma política de tolerância zero e a adoção de medidas
capazes de desafiar e desconstruir as assimetrias de poder que estão na base da
perpetuação destes fenómenos, munindo os/as profissionais das ferramentas
necessárias para identificar, sinalizar e denunciar, intervindo para capacitar
as populações nos seus territórios e apoiar as vítimas. Trata-se de
concretizar o desígnio coletivo pelos direitos das raparigas e das mulheres
pela escolha livre e esclarecida.
***
Entretanto, o referido Grupo de Trabalho ainda não apresentou o Livro Branco
previsto para dezembro de 2021. E, face à ausência das
suas reuniões, a secretaria de Estado da Igualdade e Migrações fixou um novo
prazo para a conclusão do trabalho: agosto de 2023. O documento deveria ter apresentado recomendações
ao nível da prevenção e combate ao flagelo.
Porém, como escreve
o Público de 20 de agosto, os
casos continuam a acontecer, não só na comunidade cigana, pois acontece também
entre cidadãos oriundos do Bangladesh (e outros imigrantes residentes em
Portugal), apesar de ter dimensões desconhecidas. Segundo as normas, só pode
apresentar-se no Registo Civil para contrair matrimónio quem tiver pelo menos 16 anos, mas com a
autorização dos pais ou de que os substitua legalmente. Esta possibilidade contraria
as recomendações da Organização da Nações Unidas (ONU), a qual defende que a
idade mínima para o casamento deve ser os 18 anos. Ora, este ponto não foi inscrito na lei, apesar de constar
no leque de propostas apesentadas
até agora pelo Grupo de Trabalho.
Já no
respeitante ao Livro Branco, o Governo atribui a inação à pandemia. Segundo o Público, que cita esclarecimentos da
secretaria de Estado, a crise
sanitária impediu o lançamento dos inquéritos necessários. Todavia,
o jornal contraria esta perspetiva, lembrando que, aquando da constituição do
Grupo de Trabalho (fevereiro de 2021),
a pandemia da covid-19 já existia, com o Governo a estabelecer o final do mesmo
ano como prazo para a conclusão dos trabalhos – apesar de já então se admitir
um prolongamento do prazo.
Rosa Monteiro, referida, lembra
que o grupo solicitou permissão para a entrega no primeiro semestre deste ano,
embora exista “já bastante
trabalho feito, conceitos, inquéritos a serviços públicos sobre o tema,
campanha”, tendo ficado “na pasta de transição”. E Alexandra Alves Luís, presidente
da Associação Mulheres Sem Fronteiras e membro do Grupo de Trabalho, sugeriu
que o facto de Ana Catarina Mendes e
a secretária de Estado, Isabel Almeida Rodrigues, não terem conhecimentos especializados na
área, ao invés do que sucedia com a anterior ocupante do cargo, explicará o
atraso: terem de reunir conhecimentos antes de avançar. Tal explicação não
colhe. Os governantes não são obrigados a conhecimento técnico. Mantêm-se os
funcionários nos departamentos governamentais. E o grupo manteve-se em missão.
Só a ineficácia administrativa!
***
A UNICEF trabalha em 64 países pela
erradicação do casamento infantil. Com efeito, quando uma menina é obrigada a
casar, enfrenta consequências imediatas e de longo prazo; diminui a
probabilidade de terminar a educação escolar, enquanto aumenta a probabilidade
de sofrer violência doméstica; é mais propensa a engravidar na adolescência; e
as jovens adolescentes têm maior propensão a morrer devido a complicações na
gravidez e no parto do que as mulheres na faixa dos 20 anos. Por exemplo, na Etiópia, a
maioria das jovens que se casaram na infância foram mães antes de completarem
20 anos e as noivas infantis foram menos propensas a receber cuidados
especializados na última gravidez e parto. Além disso, as adolescentes casadas
ali têm três vezes maior probabilidade de não frequentar a escola, do que os
seus pares solteiros. Há também enormes consequências sociais
e maior risco de perpetuar os ciclos intergeracionais da pobreza.
Enquanto a prevalência do casamento
infantil está a diminuir em muitos locais, o progresso no sentido de exterminar
esta prática continua muito lento. Para cumprir a meta estabelecida nos Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e erradicar esta prática até 2030, o
processo tem de ser muito acelerado. Se tal não se verificar até 2030, teremos
adicionalmente mais de 150 milhões de meninas que se casarão antes do 18.º
aniversário.
“Para muitos, o Dia dos Namorados é associado a romance, flores e propostas de
casamento”, afirmou Henrietta Fore, Directora Executiva da UNICEF. Contudo,
para milhões de meninas, o casamento não é escolha, mas um final indesejado
para a sua infância e futuro. A solução é simples: proibir o casamento
infantil, investir na educação e capacitar jovens, famílias e comunidades para a
promoção de mudanças positivas. Só então poderemos acabar com esta prática
devastadora até 2030 e proteger os 150 milhões de meninas em risco.
Estima-se que, em todo o
mundo, atualmente 650 milhões de
meninas e mulheres vivas se casaram antes
de completarem 18 anos. E estima-se em 12
milhões por ano o número total de meninas casadas na infância.
É no sul da Ásia que há o maior registo de
noivas infantis com um peso de mais de 40% (285
milhões ou 44% do global), seguida pela África Subsariana (115 milhões ou 18% do
global).
Ali, o risco de
uma menina casar durante a infância diminuiu em mais de um terço, de
quase 50% há uma década para 30% hoje, em grande parte impulsionado por
grandes avanços na redução da prevalência do casamento infantil na Índia.
Assim, a incidência do casamento infantil muda cada
vez mais do sul da Ásia para a África Subsariana,
devido ao progresso mais lento e a uma população crescente. Das mais recentes
noivas infantis, cerca de uma em cada 3 estão agora na África Subsariana, em
comparação com uma em cada 7, há 25 anos.
Na América
Latina e no Caribe, não há evidências de progressos, com níveis de casamento infantil tão
altos como há 25 anos.
O casamento
infantil (incluindo casamento formal e união informal
em que a menina começou a viver com um parceiro como se fossem casados) ocorre também
nos países ditos desenvolvidos. Nos Estados Unidos, a maioria dos 50 Estados tem exceção na lei a
permitir o casamento às crianças antes dos 18 anos. Na União Europeia, desde
2017, só quatro países não toleram exceções à idade mínima de 18 anos para
casar. Em Portugal, a idade mínima para
contrair casamento é 16 anos, mas com autorização dos progenitores
ou tutores, nos termos do n.º 1 do artigo 1612.º do Código Civil (o tribunal suprirá a falta de autorização, “se razões
ponderosas justificarem a celebração do casamento e o menor tiver suficiente
maturidade física e psíquica”, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo).
A prática do casamento infantil
diminui em todo o mundo. Na
última década, a proporção de mulheres que se casaram enquanto crianças baixou
em 15%, de uma em 4 (25%) para uma em 5 (21%), aproximadamente, ou seja,
evitaram-se cerca de 25 milhões de casamentos infantis. Entre as razões da
mudança, contam-se: o aumento das taxas de educação das meninas, os
investimentos pró-ativos dos governos com as meninas adolescentes, as fortes
mensagens públicas sobre a ilegalidade do casamento infantil e os danos que
originam.
Para eliminar o
casamento infantil até 2030, como inscrito na Agenda para o Desenvolvimento Sustentável, o progresso global teria de ser 12 vezes
mais rápido do que a taxa da última década. No entanto, há muito
caminho por fazer: a maior parte desses atos (antes da idade legal para
contrair casamento) não tem registo; é muito difícil mudar mentalidades; e é
complicado travar negócios tradicionais entre famílias ou grupos estabelecidos,
tal como é difícil travar o tráfico de crianças e a prostituição infantil. Mas
o caminho faz-se caminhando, embora se topem, por vezes, mais pedras do que
caminho.
2022.08.20 – Louro de Carvalho
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