Evitei
pronunciar-me sobre o fenómeno de abuso sexual de menores e de crimes
congéneres por parte de sacerdotes e de outros assíduos cooperadores em
atividades eclesiais ou em outras ações em que a Igreja está especialmente
envolvida. Só quando vi comentadores de bancada insurgirem-se contra a hipótese
de um sacerdote interpor recurso sobre decisão condenatória que o tribunal
comarcão lhe aplicou é que reagi pelo direito de qualquer arguido ao acesso a
todos os meios de defesa que a lei possibilita aos cidadãos a contas com a
justiça. Com efeito, a lei não exceciona este ou aquele crime, este ou aquele
arguido.
Passaram-se
anos e a procissão das denúncias de crimes e de encobrimentos passa sem olhar a
limites éticos, confundindo responsabilidades, crimes, penas, vítimas e
supostos agentes de crime.
Ora,
tal como a boa lei, também a boa prática se escuda na ética. E a ética implica
distinção de agentes, de objetos, de circunstâncias, de penas; postula a justa
medida e a proporcionalidade; abomina os chavões; e leva a julgar os
prevaricadores segundo as normas vigentes ao tempo da prática dos crimes, não
segundo normas posteriores.
A
hierarquia católica, atónita com a abundância de casos de abuso sexual de
crianças e de jovens por parte do clero, no que terão incorrido entidades, até
há pouco, acima de qualquer suspeita, perdeu o norte. Por conseguinte, disparou
contra delinquentes e contra encobridores metendo-os no mesmo saco de responsabilidades,
sem ter em conta que, na sociedade civil, pululam os abutres que se alimentam
do escândalo e não têm pejo em apontar os erros dos outros e esconder os seus e
os dos seus parentes e amigos. Acredita-se em mentiras de crianças que atestem
crimes.
Ao
impor que o bispo denuncie, sem mais, às autoridades civis o clérigo abusador,
desvaloriza a relação de saudável confiança que deve existir entre o bispo e o
clérigo. É verdade que muito do conhecimento é obtido fora de confissão, caso
contrário a denúncia esbarraria contra o sigilo sacramental inatacável. Porém,
os hierarcas sabem que, além do foro interno sacramental sigiloso, há o foro
interno sacramental igualmente sigiloso, cujos casos são tratados pela
Penitenciaria Apostólica. Por isso, se uma denúncia foi apresentada ao bispo
pela suposta vítima ou por seu familiar ou conhecido, a atitude prudente teria
sido recomendar que o denunciante a fizesse às autoridades civis. Ao bispo
incumbiria o acompanhamento vigilante do sacerdote e uma ação investigatória
interna com eventual suspensão preventiva. Só em último caso, quer houvesse
condenação judicial, quer não a houvesse, verificada a gravidade dos atos
praticados e a atitude contumaz do sacerdote é que deveria ser organizado
processo com vista à expulsão da clerezia.
Dizer
que o abusador sexual não é recuperável não assenta em ciência consistente, tal
como dizer que todo o delinquente é facilmente recuperável. Cada pessoa deve
ser avaliada segundo as suas circunstâncias, disposições e esforços. Aliás, a
hierarquia sabe, mas os detratores não o sabem, que é preciso castigar os
erros, mas recuperar os que erram; e que, por vezes, é preciso deixar crescer o
trigo e o joio em simultâneo, para que, ao arrancar joio, não se arraste parte
do trigo.
Todos
sabemos – os detratores da Igreja e da sua hierarquia fingem não o saber – os
códigos modernos não contemplam pena de morte, prisão perpétua, prisão por
tempo indeterminado ou por tempo excessivamente longo, como não admitem medidas
de irreversíveis consequências, como a castração ou a esterilização. Não
obstante, para clérigos abusadores, vulgo pedófilos (independentemente da idade
das vítimas e da classificação dos atos em causa), a pena apontada comummente é
deixarem de ser padres, porque não o merecem. Toda a gente devia saber que não
se merece ser padre: é-se padre por dom.
Outra
confusão que se faz é em torno do conceito de clérigo. Freiras e frades (sem
ordenação diaconal) não integram o clero. A distinção entre clero regular e
clero secular é medieval. Integram o clero os bispos (o papa é bispo, bispo de
Roma), os padres (presbíteros) e os diáconos. É certo que freiras e irmãos
leigos trabalham de perto com sacerdotes e a Cúria Romana tem um dicastério que
os junta aos religiosos que têm a ordenação sacerdotal. No entanto, não podem
confundir-se alhos e bugalhos. Os bispos sobre essas pessoas não têm jurisdição
funcional.
Passando
aos pecados e crimes dos clérigos na matéria em apreço, importa fazer distinções.
Fica, no entanto, expressamente dito e redito que a hediondez destes pecados é
mais que suficiente para os repudiarmos e condenarmos em qualquer pessoa, maxime em clérigos e em outras pessoas
especialmente consagradas a Cristo e à Igreja.
Porém,
o Código Penal dá uma ajuda na tipificação dos crimes e na graduação das penas.
Assim,
nos termos do art.º 171.º, “quem
praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a
praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”;
se esse ato “consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal
ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três
a 10 anos”; quem importunar menor de 14 anos, praticando perante ele atos
de caráter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou
constrangendo-a a contacto de natureza sexual ou
atuar sobre ele, por meio de conversa, escrito, espetáculo
ou objeto pornográficos ou o aliciar a assistir a abusos sexuais ou a
atividades sexuais, é punido com pena de prisão até três anos. E quem
praticar os atos puníveis com esta moldura penal com intenção lucrativa é
punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. Só estes crimes é
que configuram a pedofilia, termo que o código não usa. Por seu
turno, o art.º 173.º tipifica os crimes sexuais com adolescentes nos seguintes
termos: “Quem, sendo maior,
praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele
seja praticado por este com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com
pena de prisão até dois anos. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula,
coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou
objetos, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos.”
E o art.º 172.º, no âmbito do abuso de menores dependentes ou em situação
particularmente vulnerável, estabelece a moldura penal de um a oito anos
para quem praticar os atos referidos nos números 1 e 2 do art.º 171.º relativamente a menor entre 14 e 18 anos em relação ao qual exerça responsabilidades parentais
ou que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, ou abusando
de uma posição de manifesta confiança, de autoridade ou de influência sobre o
menor, ou abusando de situação de
particular vulnerabilidade do menor, como saúde ou deficiência. Para esses,
a moldura penal “até três anos estabelecida no art.º 171.º para “pena de prisão
até um ano”, mas quem os praticar intenção
lucrativa é punido com pena de prisão até 5 anos.
Em qualquer caso, é também punível a simples tentativa.
São, pois, muitas cambiantes que não cabem num veredicto-chapa, pelo que se deve ter, em cada caso, a paciência de esperar pela justiça e não produzir dogmas sobre a matéria..
Também
devemos considerar a tipificação das vítimas, pois nem todos os que se dizem
vítimas de abusos são os coitadinhos que a opinião pública adora. Há os
traumatizados, os débeis, os assustadiços, os colaborantes, os oportunistas e
os candidatos à indemnização, como há os tímidos e inibidos que, subitamente,
ganham coragem. Talvez haja também que reorientar as pessoas.
Posto
isto, lamento que tantas comunidades tenham sido palco de tantos crimes sexuais
com crianças (como prostituição, lenocínio e pornografia infantis) e que, tarde
e a más horas, a justiça formal se tenha abeirado destes casos. Repudio que se
faça dos lamentáveis casos ocorridos nas comunidades eclesiais hipócrita bode
expiatório das insuficiências da justiça humana. Considero abstruso que se
penalizem com perda de cargos e até do caráter clerical ditos encobridores (que
a crítica preferia que fossem bufos), os quais terão sido confidentes de
vítimas ou de afins que só pediam que outros não viessem a sofrer dos mesmos
males ou que que foram destinatários de denúncias que visavam o castigo do
delinquente e o anonimato da vítima – o que é injusto.
Condeno
que se queiram julgar os delinquentes por normas estranhas ao tempo em que
praticaram os crimes, como condeno que todos sejam julgados por crimes sexuais
da mesma relevância quando alguns se terão limitado a piropos excessivos, beijos,
toques demasiado ousados ou convites dúbios. E julgo que é ilegal a
determinação de pena igual para atos diferentes.
A
hierarquia, ao arredar, pura e simplesmente, os padres acusados de crimes
sexuais com crianças e adolescentes, nega a fé na recuperabilidade das pessoas
e quer pôr limites à misericórdia divina.
É
pertinente o apoio às verdadeiras vítimas, a oração por elas, a sua proteção e
a indemnização a que eventualmente tenham direito, mas desconfiar se esta for o
único fim em vista. Contudo, é dever da Igreja garantir aos seus colaboradores
a contas com a justiça os meios legais de defesa e de recurso. Depois, não se
pode fazer participação às autoridades de um facto que não resulte de flagrante
delito ou de denúncia com o mínimo de consistência e de transparência.
É
de anotar que os bispos não integram nenhuma das situações de funcionário (com
especial dever de participação de crimes às autoridades judiciais) constantes
do art.º 386.º do Código Penal.
Por
fim, sem me pronunciar sobre o que se passou na Alemanha, no Chile ou na
Irlanda, apesar de achar bem que as dioceses tenham as suas comissões de
proteção de menores, para contactos, investigação e julgamento, se necessário e
ainda oportuno, não percebo a existência da comissão independente, criada pela Conferência
Episcopal para investigar os casos ocorridos a partir de 1950. Se é para um
inquérito de vita et moribus, o
quadro temporal deveria ser mais alargado; se é para se fazer justiça, o
horizonte temporal é muito longo, pois os crimes prescrevem se não forem
julgados em determinado tempo, tal como as penas se não forem aplicadas em
tempo útil e as dívidas se não forem cobradas a tempo. Ademais, comissão
independente não reuniria com magistrados do Ministério Público (MP), nem com
os bispos, nem com o Presidente da República, como só havia de pronunciar-se no
termo do cumprimento da sua missão. É independente, mas tem magistrados do MP
em ligação com ela, quando tem na sua composição, médicos, advogados,
psicólogos, procuradores e juízes e assistentes sociais. Quer enganar quem?
Fala-se
do Papa Francisco? Entrou no jogo sem que o tivessem alertado para as
consequências. E chegaram a apontá-lo como encobridor. Foi altamente criticado
por ter questionado, no Chile, as provas das denúncias, pois elas têm de
assentar em provas. Produziu legislação adequada para o tratamento dos crimes
perpetrados na Estado Cidade do Vaticano, mas o Motu Proprio “Vos estis luz mundi”, para toda a Igreja, recolhe
sugestões das Conferências Episcopais ou organizações equivalentes. Não se
justifiquem com o Papa, pois a hierarquia (gente nova e gente idosa) está lá
metida! Bebem do veneno que ajudaram a produzir para se defenderem!
Todavia,
tais crimes merecem total repúdio. Quanto ao mais, tenho direito à opinião informada.
2022.08.07 – Louro de Carvalho
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