A Solenidade
da Epifania do Senhor está umbilicalmente conexa com o Natal. Com efeito, não
fazia sentido conceber a encarnação do Verbo de Deus sem o horizonte da sua
revelação a todos os povos do Mundo, a maior parte dos quais era considerada
pagã e tida, pelos Israelitas, como afastada da salvação.
A revelação
do mistério do Natal inscreve, na perceção do desígnio divino, a dimensão da
universalidade. Por um lado, o anúncio do Messias Senhor é feito pelo anjo, em
primeira mão, aos pastores, grupo considerado marginal, rude e pobre; por outro
lado, o coro angélico canta “glória a Deus nas alturas ou nos céus (in excelsis ou in altissimis, expressões latinas; en hypsístois, expressão grega) e paz aos homens na terra (in
terra, expressão latina; epì gê, expressão grega) (cf Lc 2,8-14; 25-32), o que aponta à pluralidade. O cântico de Simeão
vê, no menino apresentado no Templo, a Salvação preparada por Deus à vista de
todos os povos, luz para se revelar às nações e, obviamente, glória do povo de
Israel (cf Lc 2,25-32).
Porém, desta
feita, a liturgia celebra a manifestação de Jesus a todos os homens. O Menino
do presépio é uma luz que se acende na noite do Mundo e atrai a si todos os
povos da terra. Essa luz encarnou na nossa História e no nosso Mundo, iluminou
os caminhos dos homens, conduziu-os ao encontro da salvação e da vida
definitiva.
A primeira
leitura (Is 60,1-6) faz de
Jerusalém o local aonde chegará a luz salvadora de Deus, que transfigurará o
rosto da cidade, iluminará o regresso a casa dos exilados na Babilónia e
atrairá os povos de todo o Mundo.
Os capítulos 56-66 do Livro de Isaías apresentam profecias
de diversos autores pós-exílicos, que redigiram os textos ao longo de um arco
de tempo relativamente longo (entre os séculos VI e V a.C.). A cidade que os
Babilónios deixaram em ruínas, em 586 a.C., começa a reerguer-se. As marcas do
passado veem-se nas pedras calcinadas da cidade; os filhos e filhas de
Jerusalém regressados do exílio babilónico são em número reduzido; a pobreza
obriga a que a reconstrução seja lenta e modesta; os inimigos espreitam e a
população está desanimada. Porém, sonha-se com o dia em que Deus voltará à sua
cidade a trazer a salvação. E Jerusalém voltará a ser a cidade bela e
harmoniosa, o Templo será reconstruído e Deus habitará para sempre no meio do
seu Povo.
O trecho em apreço é a glorificação de Jerusalém, a
cidade da luz, a “cidade dos dois sóis”: o sol nascente e o sol poente. Com
efeito, pela sua situação geográfica, no alto das montanhas da Judeia, a cidade
é iluminada desde o nascer do dia, até ao pôr do sol.
A Jerusalém imersa na obscuridade é, de súbito,
acordada pelo troar do grito da sentinela que anuncia a aurora. O sol, que
aparece atrás das montanhas, a oriente, ilumina as pedras brancas do casario. A
cidade está em reconstrução, mas é transfigurada pela luz matutina. É como se,
tirados os vestidos negros de viúva, se vestisse de branco, qual noiva
preparada para acolher o seu amado, revestida da veste da salvação, envolta no
manto da justiça e adornada com as suas joias.
O profeta/poeta, divisando esta transformação,
sente-se inspirado e sonha com a Jerusalém nova, iluminada pela luz salvadora
de Deus. Quando a luz de Deus se levantar sobre Jerusalém e a iluminar,
novamente, a cidade, que parecia viúva triste, sem marido (porque Deus já não
reside no Templo, destruído e queimado) e abandonada pelos filhos (exilados),
vestir-se-á de alegria, como a jovem resplandecente no seu vestido de noiva e
adornada com belíssimas joias. Os filhos, exilados em terra estrangeira, regressarão
em triunfo (“trazidos nos braços”), devolvendo a alegria e a vida à cidade.
Além disso, a luz salvadora de Deus atrairá homens e mulheres de todas as etnias
e nações, que convergirão para Jerusalém, inundando-a de riquezas (nomeadamente
o incenso, para o serviço do Templo) e cantando os louvores de Deus.
Este anúncio acende a esperança nos corações cansados
e abatidos. Todos ficarão à espera do dia festivo em que começará a brilhar a
luz salvadora e transformadora. Mateus liga esta profecia à vinda de Jesus,
primeiro, a Belém, e, mais tarde, a Jerusalém, onde se realizará a epifania
total, no alto do Calvário, e donde irradiará o grupo dos discípulos para todo
o Mundo, não sem que, antes, acorra a Jerusalém, no Pentecostes, gente de todos
os confins da Terra então conhecida.
***
No Evangelho
(Mt 2,1-12), vemos a
concretização da promessa isaítica: ao encontro de Jesus vêm uns magos do Oriente,
que representam todos os povos da terra. Atentos aos sinais da chegada do
Messias, os magos procuram-No, com a esperança até O encontrar, reconhecem
n’Ele a salvação de Deus e aceitam-No como “o Senhor”. A salvação rejeitada por
Jerusalém torna-se o dom que Deus oferece a todos os homens, sem exceção.
O belo episódio da visita dos magos ao Menino de
Belém, narrado no evangelho de Mateus, rapidamente se tornou popular entre os
cristãos. E a piedade do povo foi-o embelezando com acrescentos que, na maior
parte dos casos, não encontram eco no texto mateano.
O relato encaixa no género do midrash
haggádico, método de leitura e de exploração do texto bíblico utilizado
pelos rabis de Israel, que incluía o recurso a histórias fantasiosas para
ilustrar um ensinamento. Mateus, mais do que a visita de personagens importantes
ao Menino do presépio, pretende apresentar Jesus como o enviado de Deus Pai,
que vem oferecer a salvação de Deus aos homens de toda a Terra.
Na base da inspiração mateana, estará a crença
generalizada, na região do Crescente Fértil, de que a criança que nascia tinha
a sua estrela e de que uma nova estrela pressagiava um acontecimento mudaria a
História humana. É provável que o evangelista se tenha inspirado, para esta
narrativa, num texto do livro dos Números onde o profeta Balaão, “o homem de
olhar penetrante” (Nm 24,15), anuncia
“uma estrela que sai de Jacob e um cetro flamejante que surge do seio de
Israel” (Nm 24,27), anúncio que teve,
para os teólogos de Israel, claro sabor messiânico.
Além disso, Mateus faz uma referência ao rei que
governava a Palestina, aquando do nascimento de Jesus: Herodes, “o Grande”, falecido
no ano 4 a.C., cerca de dois anos após o nascimento de Jesus. Embora notável
pelas grandes obras que realizou, foi cruel e despótico, pronto a matar para
defender o seu trono.
A análise dos detalhes do relato confirma que a
preocupação de Mateus é catequética.
Antes de mais, o hagiógrafo insiste no facto de Jesus
ter nascido em Belém de Judá. Para se entender esta insistência, é de recordar
que Belém era a terra natal do rei David e que era a Belém que estava ligada a
família de David. Afirmar que Jesus nasceu em Belém é ligá-Lo aos anúncios
proféticos que falavam do Messias como o descendente de David, que havia de
nascer em Belém e restaurar o reino de seu pai.
Depois, vem a referência à estrela que apareceu no céu
e guiou os magos a Belém. A interpretação desta referência como histórica levou
a cálculos astronómicos complicados para concluir que, no ano 6 a.C., uma conjunção
de planetas explicava o fenómeno da estrela refulgente mencionada por Mateus;
outros falavam de um cometa que, ao tempo, teria sulcado os céus do antigo
Médio Oriente. Todavia, é inútil procurar nos céus a estrela ou o cometa em
causa, pois Mateus não está a narrar factos históricos, no sentido hodierno.
Simplesmente nos diz que o Menino de Belém é a “estrela de Jacob” de que falava
o anúncio profético de Balaão (cf Nm 24,17)
e que se concretiza, com o seu nascimento, a chegada aluz salvadora, focada na
primeira leitura, que brilhará sobre Jerusalém e atrairá à cidade santa os povos
de toda a Terra.
Quanto às figuras dos magos, é de referir que a palavra
“mágos” (talvez de origem persa) abarca vasto leque de significados e é
aplicada a personagens diversas: mágicos, feiticeiros, charlatães, sacerdotes
persas, propagandistas religiosos. Aqui, poderá designar astrólogos
mesopotâmios, em contacto com o messianismo judaico. Em todo o caso, representam,
nesta catequese, os povos estrangeiros referidos na primeira leitura, que se
põem a caminho de Jerusalém com as suas riquezas (ouro, incenso e mirra), para
encontrar a luz salvadora de Deus que brilha sobre a cidade santa. Jesus é, no
senso de Mateus e da Igreja primitiva, essa luz.
Além da catequese sobre Jesus, o relato recolhe, paradigmaticamente,
duas atitudes repetidas ao longo do Evangelho: Israel rejeita Jesus, enquanto os
magos do Oriente (pagãos) O adoram; Herodes e Jerusalém ficam perturbados ante
da notícia do nascimento do menino e planeiam a sua morte, enquanto os pagãos
sentem grande alegria e reconhecem em Jesus o salvador.
Assim, Mateus anuncia que Jesus será rejeitado pelos
seus, mas será acolhido pelos pagãos, que integrarão o Povo de Deus. O
itinerário dos magos reflete a caminhada dos pagãos para encontrar Jesus:
atentos aos sinais, percebem que Jesus é a luz que traz a salvação, põem-se a
caminho para O encontrar, perguntam aos judeus – conhecedores das Escrituras –
o que fazer, encontram Jesus e adoram-No como “o Senhor”. É possível que grande
número de pagano-cristãos da comunidade de descobrisse, neste relato, as etapas
do seu caminho em direção a Jesus.
***
A segunda
leitura (Ef 3,2-3a.5-6)
apresenta o desígnio libertador de Deus como realidade que atingirá toda a Humanidade,
congregando judeus e pagãos na mesma comunidade de irmãos – a comunidade de
Jesus.
Paulo, apóstolo como os Doze, também foi recebedor da
revelação do mistério, o mistério que o apóstolo dos gentios desvela aos
crentes da Ásia Menor. Insiste que, em Cristo, chegou a salvação para os
homens, a qual não se destina, exclusivamente, aos judeus, mas a todos os povos
da Terra, sem exceção. Paulo é, por chamamento divino, o pregoeiro desta novidade,
pelo que se fez o grande arauto da boa nova de Jesus entre os pagãos. Agora,
judeus e gentios são membros do mesmo e único corpo (o corpo de Cristo ou a Igreja),
partilham o mesmo desígnio que os faz, em igualdade de circunstâncias com os
judeus, filhos de Deus; e todos partilham a promessa de Deus a Abraão (cf Gn 12,3), cuja realização Cristo levou a
cabo.
***
A imagem de Deus como luz que se acende na nossa vida,
a iluminar as vias que temos de palmilhar, aquecendo os corações abatidos e
transformando o pessimismo e o derrotismo em esperança e em vida nova, leva-nos
a ultrapassar a sensação de que o Mundo onde peregrinamos se tornou lugar
sombrio, com o ódio a poder mais do que o amor, com a guerra a impor-se aos
esforços de paz, com o egoísmo a ser mais apreciado do que a comunhão. De facto,
quando parecemos perdidos em beco sem saída, a luz de Deus vem iluminar o mapa
dos caminhos que devemos percorrer para encontrar Vida.
Ligamos a vinda da luz de Deus a Jerusalém com o
nascimento de Jesus. O plano de libertação que Jesus veio trazer aos homens é a
luz que vence as trevas do pecado e da opressão e que dá ao Mundo um rosto mais
brilhante de vida e de esperança. Mas precisamos de acolher essa luz e de dar
testemunho dela, tornando-nos também luz.
Na catequese cristã dos primeiros tempos, a Jerusalém
nova, que já não precisa de sol nem de lua, porque é iluminada pela glória de
Deus, é a Igreja – a comunidade dos que aderiram a Jesus e acolheram a luz
salvadora que Ele veio trazer. Por isso, é importante que as nossas comunidades
cristãs deixem brilhar a luz libertadora de Jesus e que ninguém ouse
substituir-se a ela, como importa que ninguém se deixe imobilizar pelo
comodismo, nem pelas desavenças provindas da diversidade que deveria ser fonte
de enriquecimento pessoal e comunitário.
Segundo Paulo, a salvação de Deus e revelada em Jesus
não se destina só a Jerusalém, mas a todos os povos, sem distinção de raça, de
cor, de cultura ou de estatuto social. Todos os homens e mulheres são filhos e
filhas queridos de Deus. A todos Deus ama, todos fazem parte da família
universal. Por isso, temos de ver em cada pessoa, para lá das diferenças e
particularismos, um irmão ou uma irmã e apreciar a beleza de pertencer a uma
família onde as diferenças não dividem, mas são valor acrescentado. Com efeito,
a fraternidade implica o amor sem limites, a partilha, a solidariedade, bem
como a responsabilidade pela sorte de todos os nossos irmãos e irmãs.
A Igreja, corpo de Cristo, é a comunidade dos que
acolheram o mistério, é o espaço privilegiado da revelação do desígnio salvador
de Deus em oferta a todos os homens. É a oferta que não podemos desbaratar, mas
que devemos acolher e cultivar, para que frutifique.
Há que atentar nas atitudes das várias personagens que
Mateus apresenta em confronto com Jesus, a “luz salvadora” enviada por Deus: os
magos, Herodes, os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo. Estas
distintas personagens assumem atitudes diversas, que vão da adoração (os magos),
à rejeição total (Herodes), passando pela indiferença (os sacerdotes e os
escribas: nenhum se preocupou em ir ao encontro do Messias que eles conheciam
bem dos textos sagrados). Importa que reflitamos sobre com qual destas
personagens nos identificamos. Será inconsequência e hipocrisia haver “cristãos
praticantes”, envolvidos nas atividades da comunidade cristã e,
simultaneamente, a passar-lhes ao lado as propostas de Jesus.
Os magos, como “homens dos sinais”, sabem ver na
estrela o sinal da vinda da luz libertadora de Deus. Talvez hoje, dada a
pressão da vida nos coloca, não tenhamos tempo para olhar para o céu, à procura
dos sinais de Deus. Todavia, a aventura da existência terá mais sentido, se
arranjarmos tempo para parar, para meditar, para falar com Deus, para escutar
as suas indicações, para tentar ler os sinais que Ele vai pondo ao longo do
nosso caminho.
O relato mateano vinca a desinstalação dos magos: descobriram
a estrela e, imediatamente, deixaram tudo para procurar Jesus. O risco da
viagem, a incomodidade do caminho, o confronto com o desconhecido, nada os
impediu de partir. Hoje, muitos cristãos estão instalados e não decidem sair da
sua zona de conforto, para responderem aos apelos de Jesus, sobretudo os do Jesus
presente nos irmãos que necessitam da nossa ajuda e do nosso cuidado.
Os magos representam os homens de todo o Mundo que vão
ao encontro de Cristo, que acolhem a libertação que Ele traz e que se prostram
diante d’Ele. São a imagem da Igreja – a família de irmãos, constituída por
gente de muitas cores e raças, que adere a Jesus e que O reconhece como o Senhor.
Porém, vergonhosamente, em muitas realizações eclesiais, Cristo é expulso do
centro, que é ocupado por alguns líderes que dizem representar a Igreja. Ora,
não se representa a Igreja, sem se praticar, a sério, o cristocentrismo.
Os magos, depois de encontrarem Jesus e de O reconhecerem
como o Senhor, “regressaram ao seu país por outro caminho”. Também, hoje,
encontro com o Menino do presépio deve ter sido um momento de confronto que nos
leva a reequacionar a nossa vida, os nossos valores e opções, e a enveredar por
um caminho novo, mais simples, mais humilde, mais fraterno, mais humano.
De facto, celebrar a Epifania implica não nos pormos
no lugar de Cristo, assumirmos indevido protagonismo na comunidade, mas ser cristocêntricos.
E a Igreja não pode ser autorreferencial, mas colocar Jesus Cristo acima e
antes de tudo. Só assim pode servir verdadeiramente os homens.
2024.01.07 – Louro de Carvalho
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