A decisão do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), o principal órgão
judicial da Organização das Nações Unidas (ONU), revelada a 26 de janeiro, não
conclui que Israel cometeu genocídio, em Gaza, mas que não há bases para
excluir esse facto.
O “Tribunal do Mundo”, com sede em Haia, nos Países Baixos, sustenta que há
motivos de preocupação e adverte as autoridades israelitas a que mudem as suas
práticas, o que deixa o primeiro-ministro israelita ainda mais isolado, como reconhece
David Simon, diretor do programa “Estudo do Genocídio”, em Yale. “Se Israel
desafiar o TIJ, a opinião pública – e em alguns casos, o direito –, estará a
pressionar os governos para que reduzam o apoio a Israel. E, claro, dará mais
impulso ao movimento de oposição a Netanyahu.”
***
Depois de, em novembro de 2023, o presidente sul-africano,
Cyril Ramaphosa, ter anunciado que o seu país tinha pedido ao Tribunal Penal
Internacional (TPI) que investigasse os abusos de Israel na sua ação militar na
Faixa de Gaza, o executivo da África do Sul apresentou, a 29 de dezembro, ao
TIJ o pedido urgente para avaliar a acusação contra o Estado israelita de
crimes, incluindo de genocídio, na Faixa de Gaza.
Dado o “dano contínuo, extremo e irreparável sofrido pelos
palestinos em Gaza”, Pretória também pediu que o tribunal decretasse medidas de
emergência, incluindo ordenar que Israel cesse, imediatamente, as operações
militares, bem como todos os “atos genocidas” descritos no pedido.
No pedido de 84 páginas apresentado ao TIJ, Pretória
enfatizou a obrigação de todos os Estados Partes – onde se incluem a Africa do
Sukl e Israel – da Convenção de 1948, de tomar “todas as medidas razoáveis ao
seu alcance, para prevenir o genocídio”. Como tal, instou o tribunal a
reconhecer que Israel violou esta obrigação.
Cyril Ramaphosa voltou a defender a causa, a 9 de janeiro,
afirmando que “o povo da Palestina hoje está a ser bombardeado, os Palestinianos
estão a ser mortos e há ‘apartheid’ em Israel”. “Tínhamos o dever de nos
levantar e apoiar os Palestinianos”, salientou o também presidente do partido
no poder, durante as celebrações do 112.º aniversário do Congresso Nacional
Africano (ANC, no poder desde 1994), na capital da província de Mpumalanga.
O presidente sul-africano sustentou que a África do Sul “é um
ponto de referência para o Mundo, em questões de direitos humanos”, e que tem o
dever de denunciar os ataques contra Palestinianos na Faixa de Gaza. “Algumas pessoas
dizem que é arriscado, somos um país pequeno, somos uma economia pequena, mas
defendemos princípios”, declarou, citado pela imprensa sul-africana.
Os Estados Unidos da América (EUA) opuseram-se, qualificando
a ação de “contraproducente e completamente desprovida de base factual”, mas a
causa é apoiada por outros países. Porém, o executivo sul-africano tem sido
historicamente forte apoiante da causa palestiniana e o ANC tem frequentemente
associado a causa à sua luta contra o regime segregacionista do ‘apartheid’
(1948-1994), na África do Sul.
Por seu turno, ainda a 29 de dezembro, Israel condenou e
rejeitou a alegação de genocídio formulada, que classificou de “repugnante”,
tendo dois dias depois o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, acusado as
autoridades sul-africanas de espalharem “mentiras”.
Um coletivo de 15 juízes do TIJ começou, a 15 de janeiro, a
avaliar o pedido apresentado pela África do Sul contra o Estado israelita, que
acusa de genocídio na Faixa de Gaza, e que o líder sul-africano voltou a
defender. A audiência que começou, nesse dia, com a África do Sul a apresentar
os seus argumentos perante os juízes, diz respeito às medidas provisórias, e
Israel, que participa no processo, apresentou a contestação e defesa no dia
seguinte.
***
A África do Sul não tinha de provar que estava em curso em Gaza um
genocídio; tudo o que tinha de demonstrar é que o TIJ tem competência para
avaliar o assunto, recorrendo a argumentos tão contundentes como o número de mortos
e a deslocação forçada de Palestinianos, em Gaza.
O TIJ concluiu que, numa primeira análise, vários atos cometidos em Gaza
podem estar abrangidos pela Convenção do Genocídio. A vitória para os
Palestinianos não é total – pois não houve indicação do cessar-fogo imediato –,
mas este primeiro veredicto é desconfortável para Israel. Durante vários
minutos, a juíza presidente, Joan Donoghue, referiu-se à linguagem inflamada
usada por autoridades israelitas, que “comprova a intenção” do país de cometer
genocídio. E citou Israel Katz, que, em outubro, quando era ministro das
Infraestruturas israelitas, escreveu, na rede social X: “Vamos combater a organização terrorista Hamas e destruí-la.
Toda a população civil de Gaza tem ordens para sair imediatamente. Nós
venceremos. Eles não receberão uma gota de água ou fornecimento de gás até que
saiam.”
Joan Donoghue mencionou ainda a utilização da expressão “animais humanos”
pelo ministro da Defesa de Israel: Yoav Gallant anunciou um “cerco completo” a
Gaza e disse que Israel estava a lutar contra “animais humanos”. Admitiu, por
isso, que o povo palestiniano atende aos critérios necessários para ser
considerado como grupo vulnerável, de acordo com os termos da convenção do
genocídio. “Os palestinianos parecem constituir um grupo nacional, étnico,
racial ou religioso distinto e, portanto, um grupo protegido, ao abrigo do
artigo 2.º da Convenção sobre o Genocídio”, entendeu a presidente do coletivo
no TIJ.
No final, uma conclusão indigesta para o governo israelita: Israel deve
tomar todas as medidas ao seu alcance para impedir a prática de quaisquer atos
de genocídio, prevenir e punir o incitamento direto e público à prática de
genocídio, assim como tem de permitir, imediatamente, a prestação de serviços
básicos e assistência humanitária, urgentemente necessários, em Gaza, impedir a
destruição e garantir a preservação de provas relacionadas com as acusações da
África do Sul.
A decisão no atinente às medidas provisórias significa que o TIJ acredita que
é plausível que Israel estará a cometer genocídio, o que é importante, pois o
tribunal não rejeitou o caso como estando fora da sua jurisdição, e, ao
preparar o terreno para a audiência do mérito do caso, sustentou, claramente,
que se aplica o crime de genocídio, mas não impôs o cessar-fogo imediato. Neste
aspeto, a decisão dececiona.
A juíza presidente observou, a 26 de janeiro, que Gaza é uma região
“extremamente vulnerável”, e que a situação “catastrófica” pode deteriorar-se
antes de o tribunal emitir a decisão final sobre o caso – o que pode demorar
anos. Não pediu o fim imediato das hostilidades, mas concluiu que uma ordem que
provoque danos intencionais aos civis “pode constituir um crime”.
Tendo considerado os termos das medidas provisórias solicitadas por
Pretória e as circunstâncias do caso, o tribunal considera que as medidas
indicadas não precisam de ser idênticas às solicitadas e que, no respeitante à
situação atual, Israel deve, de acordo com as suas obrigações ao abrigo da
Convenção sobre o Genocídio, em relação aos Palestinianos em Gaza, tomar todas
as medidas ao seu alcance, para impedir a prática de todos os atos no âmbito do
artigo 2.º da Convenção.” Ou seja, Israel deve tomar medidas para evitar “infligir
deliberadamente ao grupo [Palestinianos] condições de vida calculadas para
provocar a sua destruição física, no seu todo ou em parte”.
A decisão não é o fim. Sinaliza o fim da impunidade pela violência contra
os Palestinianos em Gaza e a vontade do tribunal de se pronunciar no decurso do
genocídio, em vez de esperar para contar os mortos. Assim, ao ordenar a Israel
que evite o genocídio em Gaza, o TIJ mudou o discurso internacional,
transferindo o foco para Israel e para a sua responsabilidade de prevenir o
genocídio. O tribunal considerou alguns elementos da petição suficientemente
convincentes para justificar uma investigação mais aprofundada sobre as
alegações de genocídio e o apelo a algumas das medidas preliminares que a
petição pede.
Seria surpreendente se o tribunal considerasse todo o conteúdo da queixa convincente
ou se apelasse à implementação de todas as medidas solicitadas. As medidas
preliminares centram-se em ações que o Estado de Israel pode tomar, bem como em
medidas que podem servir de alerta aos Estados que estão a ajudar Israel, bem
como aos que possam estar a ajudar o Hamas. Também os terceiros interferentes
indiretos podem correr o risco de violação do direito internacional.
O caso é diferente, quando se trata de demonstrar que houve práticas genocidas.
Para o provar, será necessário investigar sobre a intenção de Israel em várias
ações. No atinente a questões como o incitamento ou a omissão de processar
indivíduos que possam ter agido num genocídio não será difícil provar. Mas,
para concluir que toda a campanha em Gaza e elementos substanciais dela
constituem genocídio, será necessário obter um grande ónus de prova no
respeitante à cláusula ‘empreendida com a intenção de destruir’. Não obstante,
existem amplas evidências de violações de cada artigo da Convenção sobre
Genocídio. É, pois, de acreditar que Israel voltará ao TIJ e que os líderes que
ordenaram o genocídio serão levados a julgamento.
No relatório de 1999, a Comissão das Nações Unidas para o Esclarecimento
Histórico concluiu que o Exército guatemalteco tinha cometido atos genocidas.
As acusações e condenações de alguns autores intelectuais do genocídio e dos
que deram ordens para cometer 626 massacres de aldeias maias, desaparecimentos
forçados e outros crimes contra a Humanidade, demoraram mais de uma década. As
rodas da justiça são lentas.
Reagindo à decisão, Benjamin Netanyahu elogiou o TIJ por ter “rejeitado com
justiça” o caso da África do Sul, apesar de ter imposto várias condições a
Israel. Optou por se referir ao facto de o tribunal não ter ordenado a
suspensão das hostilidades. Porém, comentou a acusação de genocídio,
definindo-a como “não apenas falsa, mas ultrajante”. “Como qualquer país,
Israel tem o direito inerente de se defender. A tentativa vil de negar a Israel
este direito fundamental é uma discriminação flagrante contra o Estado judeu, e
foi justamente rejeitada”, declarou.
“Na véspera do Dia Internacional em Memória do Holocausto, prometo,
novamente, como primeiro-ministro de Israel: nunca mais”, acrescentou,
apontando, mais à frente, que a guerra foi declarada “contra os terroristas do
Hamas, não contra os civis palestinianos”.
O primeiro-ministro assegurou que o país continuará a “facilitar a
assistência humanitária” e a dar o seu melhor “para manter os civis fora de
perigo, mesmo que o Hamas utilize os civis como escudos humanos”. São promessas
vãs, por um lado, pois Israel pode ignorar a decisão do TIJ e continuar a operação
genocida; por outro, visto que, devido a esta questão, Israel já tem relações
estranhas com grande parte dos países, poderá não arriscar o incumprimento
Se houver verdadeira justiça, o Estado israelita ficará isolado. Sem o seu isolamento
económico e político, continuará a desencadear horrível violência contra o povo
palestiniano. E os Estados devem também ser avisados: o apoio à operação
genocida israelita pode levar a serem acusados de cumplicidade no genocídio. A
responsabilidade recai sobre todos os Estados para que permaneçam do lado da
justiça e tomem medidas económicas e políticas que obriguem Israel a concordar
com um cessar-fogo imediato e com a retirada completa de todas as terras
palestinianas. Israel devia iniciar um processo político sustentável que
satisfaça as aspirações do povo palestiniano em termos de liberdade e de direitos.
Israel ainda recebe apoio substancial dos EUA, da Europa e de vários outros
países. Porém, se Israel desafiar o TIJ, a opinião pública e o direito
pressionarão os governos para que reduzam o apoio a Israel. Espera-se que
decisão do TIJ informe, e até inflame, o debate político, debate já controverso
e que, provavelmente se tornará ainda mais polémico.
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Para o
constitucionalista Vital Moreira, com quem se concorda, a decisão do TIJ, além
de ter aceitado investigar o genocídio em Gaza, indicando vários indícios, e de
ter ordenado a Israel importantes medidas cautelares – sobretudo em ordem à
proteção de civis –, inclui um grande triunfo para a causa palestiniana, pois
reconhece que “os Palestinianos
parecem constituir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso distinto e,
portanto, um grupo protegido, ao abrigo do artigo 2.º da Convenção sobre o Genocídio”,
atribuindo-lhes “identidade nacional própria”, o que consubstancia o direito ao
próprio Estado, que Israel lhes nega. E constitui advertência contra Israel e
contra os seus apoios políticos e militares, a começar pelos EUA, o Reino Unido
e a União Europeia (UE), coniventes politicamente com “a sangueira que vitimiza
centenas de palestinos inocentes”. O atual silêncio de Washington e de
Bruxelas revela-se “comprometedor”.
2024.01.27 – Louro de Carvalho
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