No dia 5 de janeiro, o Partido Socialista (PS), que detém a maioria na Assembleia da República
(AR), logrou confirmar, sozinho, como era de prever, os diplomas que alteram os estatutos de
ordens profissionais vetados, em dezembro, pelo Presidente da República (PR), com a oposição
a acusar o governo de “falta de respeito” e de “total incompetência”, no processo de revisão de
estatutos das ordens.
A votação ocorreu, depois de os documentos relativos à alteração aos estatutos das ordens dos
engenheiros, dos arquitetos, dos médicos, dos enfermeiros, dos advogados e dos solicitadores e
agentes de execução e ao regime jurídico dos atos de advogados e solicitadores, terem sido
reapreciados, no dia 3, na AR. Assim, a maioria de deputados do PS reconfirmou os diplomas
enquanto o Partido Social Democrata (PSD), o Chega e o Partido Comunista Português (PCP)
votaram contra. A Iniciativa Liberal (IL) e o Bloco de Esquerda (BE) abstiveram-se. O partido
Pessoas-Animais-Natureza (PAN) votou contra em todos estes diplomas, exceto no relativo à
Ordem dos Advogados (OA), em que optou pela abstenção.
Em 13 do outubro, os decretos, que fazem parte de um conjunto de alterações aos estatutos de
ordens profissionais, já haviam sido aprovados pela maioria socialista.
No debate do dia 3, os partidos da oposição consideraram que o processo de revisão de estatutos
das ordens dos médicos e dos enfermeiros “não dignificou o trabalho do parlamento”, acusando
o governo de “falta de respeito” e de “total incompetência”.
A oposição questionou o PS sobre a urgência da urgência do processo legislativo de alteração dos
estatutos das ordens, com o PSD a acusar os socialistas de mentirem à AR, sobre as consequências
de não aprovar rapidamente as alterações.
***
Depois do veto do PR, o PS só tinha uma forma de garantir a promulgação dos diplomas em
causa: confirmá-los, sem proceder a qualquer alteração textual. Com efeito, se ousasse alterar o
texto, na suposta tentativa de o melhorar, poderia embater com novo veto do chefe de Estado ou
com a suscitação da apreciação da sua constitucionalidade. E, como a AR será dissolvida a 15 de
janeiro, o objetivo a alcançar com a promulgação dos referidos diplomas ficaria gorado.
Portanto, o PS voltou a levar os diplomas das ordens profissionais à AR, para serem reafirmados,
sem qualquer alteração aos textos. E a oposição uniu-se para criticar processo “atabalhoado”, feito
à margem da “contestação” das próprias ordens e “sob chantagem” dos fundos do Plano de
Recuperação e Resiliência (PRR).
Assim, por iniciativa do partido da maioria parlamentar, o PS, engenheiros, arquitetos, médicos,
enfermeiros, advogados, solicitadores e agentes de execução são os profissionais cujas ordens
viram os seus estatutos a serem reconfirmados na AR, tal como sucedeu ao regime jurídico dos
atos de advogados e solicitadores, ao todo sete diplomas. O objetivo era ultrapassar os vetos do
PR às leis que alteram as regras que regem estas profissões, que foram aprovadas já com o
primeiro-ministro formalmente demitido, e antes de o PR dissolver a AR, ato presidencial previsto
para 15 de janeiro.
Para que Portugal receba parte da tranche do PRR, que ficou pendurada na última avaliação feita
em dezembro, Portugal tem de ter aprovadas e em vigor as alterações às ordens. Porém, nem isso
impediu a chuva de críticas da oposição. Da esquerda à direita, todos acusaram a maioria de
utilizar o “rolo compressor”, para reafirmar alterações feitas de forma “atabalhoada”, “à pressa”
e com a “contestação” das ordens em causa. “Esta iniciativa atabalhoada é uma tentativa de
amordaçar as ordens. Isto para satisfazer o objetivo único de controlo político que o PS quer
deixar como marca”, atirou Paulo Moniz, do PSD.
Mesmo com os vetos presidenciais, o chefe de Estado deixou tempo e espaço para o PS reafirmar
as alterações às ordens, ao atrasar a dissolução da AR para 15 de janeiro e ao escrever, nos textos
de veto que a sua decisão não punha em causa o compromisso com Bruxelas. E foi isso que o PS
fez. Sem convencer nenhum partido da oposição, reapresentou os diplomas, sem alteração aos
textos, e votou-os sozinho.
De acordo com o socialista Luís Soares, que se contradisse no discurso, a insistência “não tem
nada a ver com o PRR, mas com recomendações internacionais”. Nisto, contradisse também a
informação do primeiro-ministro. “Temos um governo progressista, sem receios e que não cede
a pressões”, respondeu face às críticas vindas de todos os grupos parlamentares. Contudo, a
seguir, admitiu estar uma fatia do PRR (de 800 milhões de euros) condicionada pela aprovação
destes diplomas, para zurzir no maior partido da oposição. “É conhecido e público que há uma
tranche que não foi transferida por esta lei não ter sido promulgada. O PSD não está preocupado?
Como maior partido da oposição devia ter mais responsabilidade”, atirou o socialista, vincando:
“Só por má-fé, desconhecimento ou ignorância é que se pode dizer que o PRR não significa nada.”
Apesar de o repto ter sido lançado ao PSD, a resposta surgiu da bancada comunista. “Se está em
causa o PRR, a responsabilidade é vossa. Porque é que não legislaram bem? Porque é que não
corrigiram as questões colocadas pelas ordens? Existem respostas aos problemas colocados pelos
profissionais? Nem uma”, respondeu João Dias, do PCP, que é enfermeiro, cuja ordem viu o seu
estatuto alterado.
Outro dos argumentos mais utilizados pela do PS, foi a introdução de estágios remunerados no
acesso a estas ordens, “para combater a precariedade no acesso às profissões”, disse Hugo Costa.
E a oposição retorquiu, aduzindo que as críticas não estavam na remuneração dos estágios, mas
na definição dos atos próprios das profissões – uma das preocupações assinaladas pelo chefe de
Estado, com que justificou o veto a vários dos diplomas. “Os arquitetos assinaram uma petição
sobre a importância dos atos próprios”, lembrou Nuno Carvalho, do PSD. E José Soeiro, do BE,
defendeu que deveria ter existido “maior ponderação” sobre o novo regime dos atos próprios.
“Estamos condenados a revisitar estes diplomas na próxima legislatura. Oxalá que exista uma
composição [da AR] que respeite mais o Parlamento e os seus tempos próprios”, atirou.
Todos os partidos da oposição recorreram à palavra “atabalhoado” para classificar o modo como
o PS conduziu as alterações aos estatutos das ordens. “Este foi um processo atabalhoado, feito em
contrarrelógio sobre a chantagem de ficar sem fundos do PRR. Foi tudo menos o que um processo
legislativo deve ser”, defendeu José Soeiro. O PCP reiterou as críticas de outubro de 2023, quando
o PS apresentou pela primeira vez os diplomas. “O PS insiste em impor ao país as suas vontades.
Desde o início, foi um processo desrespeitoso e insultuoso para as ordens e para a autonomia das
mesmas”, disse o comunista Bruno Dias. Rui Tavares, considerando que a reafirmação dos
diplomas é “grande falhanço”, defendeu que as reformas devem ser feitas com “transparência” e
“por inteiro”. Inês Sousa Real, do PAN, considerou a reapreciação do PS “teimosia” que “ignora
as críticas” dos profissionais. “O PAN não acompanha de todo e estamos ao lado das ordens.”
À direita, as críticas foram similares. “Foi um processo feito com os pés, quiseram legislar
sozinhos, o rolo compressor tornou a estrangular as ordens”, vincou Bruno Nunes, do Chega.
Apesar de se tratar de diplomas diferentes, cada um com direito a debate, a IL optou por um único
comentário. Com recurso a provérbios populares – para mostrar a “sensatez da sabedoria popular”
– João Cotrim Figueiredo acusou o executivo de António Costa de legislar de forma “pouco
democrática” (Não foi o executivo que legislou, mas a AR), através de “processo errático que não
satisfez ninguém”, por reafirmar, no Parlamento, decretos vetados pelo PR, sem alteração. “Pedir
ao PS que faça reformas é o mesmo que mandar o sapateiro tocar rabecão. Nós [IL] não temos
arrepios quanto a reformas nem as deixamos a meio”, disse o ex-líder liberal, explicando que a
referência ao sapateiro não tinha como propósito atingir Pedro Nuno Santos.
***
A confirmação dos diplomas vetados obrigará, nos termos constitucionais, o PR a promulgar as
alterações aos estatutos dessas profissões reguladas, embora a bancada socialista tenha admitido
revisitar estas leis na próxima legislatura, aliás, como elas próprias estabelecem.
Foi, como se viu, com uma tempestade de críticas da oposição que decorreram os debates acerca
dos sete diplomas que aprovam os estatutos das ordens e sobre os quais recaiu o veto presidencial.
Todavia, o PS assumiu ter condições para a sua confirmação, reconhecendo a suspensão da
transferência de uma tranche do PRR, por falta de atempada promulgação dos decretos.
No respetivo debate, o socialista Hugo Costa referiu ser público que “há uma tranche [do PRR]
que não foi transferida [para Portugal]” porque a legislação “não foi promulgada”, embora não
tenha acrescentado outras apreciações sobre a decisão do Presidente da República.
O deputado respondia a Nuno Carvalho, do PSD, que lembrou que o PS “pôs uma corda ao
pescoço” do Parlamento, ao exigir a aprovação dos diplomas até meados de outubro e que não
explicou quais as consequências de isso ainda não ter acontecido.
Apesar das muitas críticas dos partidos da oposição às alterações introduzidas pelos socialistas
aos estatutos das ordens profissionais e ao regime jurídico dos atos de advogados e solicitadores
– sete dos quais vetados – só o Chega se comprometeu a reverter a legislação, caso viesse a ser
confirmada, como realmente foi, a poucos dias da dissolução da AR. O PS admitiu revisitar as
leis em causa, na próxima legislatura, e o PAN também mostrou disponibilidade para voltar à
legislação, tal como o PSD já tinha expressado essa intenção.
Com duras críticas ao teor dos decretos aprovados no Parlamento só pelo PS, o Presidente da
República vetou os diplomas relativos aos estatutos das ordens dos solicitadores e dos agentes de
execução, das ordens dos engenheiros, arquitetos, advogados, enfermeiros e médicos, além do
regime jurídico dos atos de advogados e solicitadores.
***
O PR, além do que escreveu a justificar os referidos vetos, seguiu as indicações dos respetivos
bastonários, que ouviu previamente, quando teria sido mais sensato ouvir a Autoridade da
Concorrência, pois, em grande parte, a questão reside no “monopólio” exercido por muitas das
ordens, quanto à definição de atos próprios (exclusivos) e ao ditame sobre a formação, em que
devem ter papel relevante, mas não proeminente (condicionando o número de formandos).
O presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (e bastonário da Ordem dos
Economistas) declarou que a revisão do regime jurídico das ordens visou destruir o seu papel na
sociedade. Porém, o constitucionalista Vital Moreira (blogue “Causa nossa”) contrapõe que a
revisão visou três “propósitos explícitos bem conseguidos”: “(i)separar organicamente a função
de supervisão e de disciplina profissional das ordens da sua função de representação e defesa de
interesses profissionais; (ii) atenuar a atávica tentação das ordens para o protecionismo
profissional anticoncorrencial, limitando a entrada na profissão e ampliando o respetivo exclusivo
profissional; e (iii) reforçar os meios de exercício da supervisão e da disciplina profissional”. Isto,
sem “eliminar as duas funções mais visíveis que as ordens profissionais têm, abusivamente”, que
são “a representação e defesa corporativa das respetivas profissões e a sua intervenção, como
‘grupos de pressão’ oficiais, no debate público sobre as políticas públicas afins”.
Segundo a Constituição e a lei-quadro, a criação de ordens profissionais, como diz Vital Moreira,
só se justifica, verificados dois requisitos: ser necessário “regular a entrada numa profissão e
disciplinar o seu exercício”, para “assegurar a liberdade profissional e a concorrência na prestação
de serviços” (princípio da necessidade); e não poder o Estado exercer apropriadamente essa
função (princípio da subsidiariedade). Nenhum destes requisitos se verifica, por exemplo, na
ordem dos economistas, cujos estatutos “não exigem a inscrição para o exercício da profissão de
economista” e preveem a inscrição de estudantes, que, por definição, não exercem a profissão.
É a vida!
2024.01.06 – Louro de Carvalho
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