No Domingo da Palavra de Deus, a ideia-força que o
Papa deixou aos fiéis é que “não podemos prescindir da Palavra de Deus, da sua
força suave que – como num diálogo – toca o coração, se imprime na alma e a renova
com a paz de Jesus, que nos desinquieta, em prol dos outros”. Ao mesmo tempo, a
Palavra – é “o próprio autor da beleza”, por quem nos devemos deixar conquistar.
Na verdade, a liturgia do 3.º domingo do Tempo Comum
no Ano B lembra que Deus nos chama e conta connosco, para sermos arautos da sua
Vida e da sua salvação, no Mundo; e desafia-nos a acolher o chamamento que,
nesse sentido, Deus nos dirige.
A primeira
leitura (Jn 3,1-5.10) é tirada do Livro de Jonas, livro de “ficção
didática” escrito, provavelmente, na segunda metade do século V a.C., entre 440
e 410 a.C., e que nos conta uma história edificante, com a finalidade de
ensinar e educar.
Estamos nos anos posteriores ao exílio babilónico, com
a política dos líderes judaicos (Esdras e Neemias, em especial) a favorecer o
nacionalismo e o fechamento do Povo de Deus aos outros povos. Vincava-se o
facto de Judá ser o Povo Eleito de Deus e se considerar que todos os outros
povos eram inimigos de Deus, pelo que deviam ser condenados e destruídos por
Deus.
Reagindo contra essa ideologia, o hagiógrafo apresenta
Javé como o Deus universal, cuja bondade e misericórdia se estendem a todos os
povos, sem exceção. A escolha de Nínive como destinatária da ação salvadora de
Deus não é casual. Sita na margem oriental do rio Tigre, era a capital do
império assírio, a partir de Senaquerib, e ficara na consciência dos habitantes
de Judá como símbolo do imperialismo e da crueldade contra o Povo de Deus. E é
esta cidade que Deus quer salvar. Por isso, chama Jonas e envia-o a Nínive a
pregar a conversão. Porém, a Jonas, como aos contemporâneos, não interessa que
Javé perdoe aos opressores, pelo que se escusa a cumprir o mandato. Em vez de
se dirigir para Nínive, no Oriente, toma o barco para Társis, no Ocidente.
Devido a uma tempestade, é atirado ao mar e engolido por um peixe. Mais tarde,
o peixe deposita-o em terra firme. Jonas é, de novo, chamado por Deus para a
missão em Nínive.
O trecho em apreço começa com Jonas a receber o
segundo mandato de Javé para ir a Nínive. Jonas, desta feita, aceita a missão,
vai a Nínive e anuncia aos Ninivitas a destruição da cidade. Contra todas as
expectativas, escutam-no e fazem penitência. Pela boa vontade dos Ninivitas e pelo
modo como acolhem o convite à conversão, Deus desiste do castigo.
A primeira lição é a da universalidade do amor de
Deus. Deus ama todos, sem exceção, e sobre eles quer derramar a sua bondade e
misericórdia. Deus ama até os maus, os injustos e opressores e oferece-lhes a
salvação. Deus não ama o pecado, mas ama os pecadores, cuja morte não quer, mas
deseja que se convertam e vivam.
A segunda lição é a da resposta ao desafio de Deus. Ao
descrever a imediatez e a radicalidade da fé dos Ninivitas em Deus e da sua
conversão, o hagiógrafo sugere que os pagãos, tidos por maus, prepotentes,
injustos e opressores são capazes de estar mais atentos aos desafios de Deus do
que o Povo eleito. Assim, denuncia a visão nacionalista e xenófoba, tal como desafia
o Povo a aceitar que Javé é um Deus misericordioso, que oferece o seu amor e a
sua salvação a todos. E pretende que os habitantes de Judá assumam a lógica de
Deus – lógica de bondade, de misericórdia, de perdão, de amor sem limites – e
não vejam, nos outros, inimigos a destruir, mas irmãos a amar.
A terceira lição tem a ver com chamamento de Jonas e
com o modo como ele responde a Deus. Deus, para intervir no Mundo, conta
connosco. Por isso, chama-nos e envia-nos. É através de nós que fala aos homens
e lhes aponta os caminhos da Vida. Se não aceitamos a missão, defraudamos o
plano de Deus e impedimos que a salvação de Deus chegue. O profeta – o que Deus
chama a ser sua voz no Mundo – não tem o direito de se demitir, quando Deus quer
precisar dele. E, quando ousa vencer os seus medos e comprometer-se na missão,
Deus faz coisas extraordinárias, apesar da fragilidade do mensageiro.
***
A segunda leitura (1Cor 7,29-31) mostra que os cristãos, na ótica paulina, devem ter em conta que “o tempo é breve”, ao terem
de optar. Na verdade, o cristão vive mergulhado na realidade terrena, mas não
vive para ela, pois, como é efémera, não deve ser absolutizada. O fundamental e
a pôr antes de tudo é a realidade eterna. E o cristão, embora estimando as
realidades do Mundo, pode renunciar a elas, em vista de um bem maior. O mais
importante deve ser o amor a Cristo e a adesão ao Reino. Tudo o mais, ainda que
importante, deve subjugar-se a isto.
Na catequese aos Coríntios, o apóstolo aplica estes
princípios à questão do casamento/celibato. O casamento é importante (o
casamento e o celibato são dons de Deus), mas não deixa de ser realidade
terrena e efémera, que não deve, por isso, ser absolutizada. Paulo nunca diz
que o casamento seja realidade má ou caminho a evitar, mas tem predileção pelo
celibato, pois, na sua ótica, leva vantagem enquanto caminho que aponta para as
realidades eternas: anuncia a vida nova de ressuscitados que nos espera e
facilita um serviço mais eficaz a Deus e aos irmãos.
Para se perceber melhor a lógica paulina, é preciso
considerar o ambiente escatológico das primeiras comunidades. Para os crentes a
quem a carta se destinava, a vinda definitiva de Jesus estava iminente, pelo
que se deviam relativizar as realidades transitórias, como o casamento.
***
O passo evangélico do dia (Mc
1,14-20) desenvolve-se em dois momentos: no primeiro,
Marcos resume a pregação inicial de Jesus (Mc
1,14-15); no segundo, apresenta os primeiros passos da comunidade dos discípulos
– a comunidade do Reino (cf Mc 1,16-20).
No resumo da parénese inicial, Marcos põe na boca de
Jesus as seguintes palavras: “Cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de
Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15).
Na expressão “cumpriu-se o tempo”, a palavra grega
utilizada por Marcos e que se traduz por “tempo” (“kairós”) refere-se a um
tempo distinto do tempo material (“chrónos”), o medido pelos relógios. A
expressão pode traduzir-se: “segundo o plano de salvação de Deus para o Mundo,
chegou a altura do cumprimento das suas promessas”. É o “tempo” do “Reino de
Deus”. A expressão – frequente no Evangelho de Marcos – leva-nos ao grande
sonho do Povo de Deus. A catequese de Israel referia-se, com frequência, a Javé
como o rei que, sentado no trono, governa o seu Povo. E, quando Israel passou a
ter reis terrenos, eram tidos como escolhidos e ungidos por Javé para governar
o Povo, em lugar do verdadeiro rei, que era Deus. O exemplo típico do rei/servo
de Javé, que governou Israel sob a vontade de Deus, foi David. A saudade deste
rei e do tempo ideal de paz e de felicidade marcará toda a História futura de
Israel. Em épocas de crise e de frustração nacional, quando reis medíocres
guiavam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o
regresso aos tempos gloriosos de David. Os profetas alimentarão a esperança do
Povo, anunciando o futuro, em que Javé reinará sobre Israel e restabelecerá a
situação da época de David. Essa missão, na perspetiva profética, será confiada
a um ungido que Deus enviará. Esse “ungido” (em Hebraico, “messias”; em Grego,
“cristo”) fará um tempo de paz, de justiça, de abundância, de felicidade
infindas – isto é, o tempo do “reinado de Deus”.
O “Reino de Deus” é, pois, uma noção que resume a
esperança de Israel no Mundo novo preparado por Deus. Esta esperança está viva no
coração de Israel, quando Jesus aparece a dizer: “O tempo completou-se e o Reino
de Deus aproximou-se”. As afirmações de Jesus, veiculadas pelos Sinóticos,
mostram que Ele tinha consciência de estar, pessoalmente, ligado ao Reino e de
que a chegada do Reino dependia da sua ação.
Jesus começa a construção do Reino, pedindo aos
conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o acolhimento da Boa Nova (evangelho).
Conversão é transformar mentalidade e comportamentos, assumir nova atitude,
reformular os valores que orientam a vida, reequacionar a vida, de modo que
Deus seja o centro da existência da pessoa e ocupe sempre o primeiro lugar. Na
ótica de Jesus, não é possível o Mundo novo tornar-se realidade, sem a pessoa renunciar
ao egoísmo e à autossuficiência e sem escutar Deus e a sua proposta. E crer não
é só aceitar um conjunto de verdades intelectuais, mas aderir à pessoa de
Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da
própria vida; é escutar a Boa Notícia de salvação e de libertação (evangelho)
que Jesus propõe e fazer dela o centro de toda a existência.
Depois de dizer qual a proposta de Jesus, Marcos
apresenta os primeiros discípulos. Pedro e André, Tiago e João são – na sua
versão – os primeiros a responder ao desafio do Reino.
A descrição da vocação destes discípulos – modelo da
vocação cristã – contém linhas de base a relevar. O chamamento parte de Jesus.
Não são os discípulos que O escolhem, mas é Ele que Se lhes dirige e os convida
a segui-Lo. É iniciativa soberana, que faz pensar no modo como Deus chamava os
profetas. Depois, o chamamento de Jesus é dirigido a pescadores da Galileia e
não a pessoas com nomes sonantes ou com qualificações excecionais. É com
pessoas assim que Jesus conta para construir o Reino de Deus. Além disso, o
chamamento é imperativo e decisivo: Ele passa e chama, sem explicar, sem
garantir e sem olhar se os homens aceitam ou não o desafio.
Mais: os discípulos são convidados a colocarem-se
atrás de Jesus (“Vinde atrás de mim”). É esse o lugar do discípulo. Deve seguir
o Mestre, percorrer o caminho que Ele vai traçando. É bem diferente dos
discípulos dos rabis judaicos, que frequentavam as aulas do mestre para
aprender e, depois, repetir a doutrina. Os discípulos de Jesus devem ir atrás
dele, aderir à sua pessoa, fazer com Ele experiência de vida, caminhar com Ele
até ao fim – até à cruz, até ao dom da vida.
Por sua vez, a resposta ao chamamento é total, imediata
e incondicional. Eles não pedem tempo para porem em ordem os negócios pendentes
ou para se despedirem da família: deixam toda a sua vida em suspenso e a vão
atrás de Jesus. É deste modo radical que o discípulo responde a Jesus.
A missão é de “pescadores de homens”. Trata-se da
metáfora conexa com a ideia semita de que o mar significava as águas abissais,
o caos, o horror do mal. Os discípulos, enquanto “pescadores de homens”, têm a
missão de salvar os homens do mar do sofrimento e da opressão em que estão
afogados. Devem anunciar, com gestos concretos, o Deus Pai bom e Amigo da Vida.
Ser “pescador de homens” é ser enviado do Deus que cura e que dá vida. É a
missão do de Jesus, a que os discípulos se associam. E é a missão da persuasão,
não da coação ou do engodo. A pesca é em rede: os peixes podem escapar-se e não
se lhes lança o isco nem o anzol. Porém, os pescadores estão atentos ao
movimento dos peixes no mar e tentam apanhá-los. A missão é da atração do
encantamento, da cativação (que não do cativeiro).
***
Francisco,
na homilia da missa do Domingo da Palavra de Deus sublinha a ordem de Jesus
lhes disse: “Vinde comigo”. E observa que, “deixando logo as redes,
seguiram-No. Realça, deste modo, a grandeza da força da Palavra de Deus, pois dela
“irradia a força do Espírito Santo”, “força que atrai a Deus”, como sucedeu aos
pescadores, deslumbrados com as palavras de Jesus, “força que envia aos outros,
como no caso de Jonas, que vai ter com quantos estão longe do Senhor”. A Palavra
não nos deixa fechados em nós, mas alarga o coração, fazendo inverter o rumo,
alterando os nossos hábitos, abrindo novos cenários, desvendando horizontes inesperados.
Segundo o
Pontífice, “a Palavra de Deus pretende operar isto em cada um de nós”, como o
fez com os primeiros discípulos que “deixam as redes e embarcam numa
maravilhosa aventura”.
A
Palavra “suscita a chamada de
Jesus” e “suscita a missão”,
fazendo-nos mensageiros e testemunhas de Deus num Mundo cheio de palavras, mas
sedento daquela Palavra, “que muitas vezes ignora”. Ora, “a Igreja vive deste
dinamismo: é chamada por Cristo, atraída por Ele, e é enviada ao Mundo, para
dar testemunho d’Ele”.
Se olharmos
para as testemunhas do Evangelho na História, veremos que, para todas, foi
decisiva a Palavra. Santo Antão, tocado durante a missa, por um trecho do
Evangelho, deixou tudo por amor do Senhor; Santo Agostinho “deu uma reviravolta
na vida, quando uma palavra divina lhe curou o coração”; Santa Teresinha do
Menino Jesus “descobriu a sua vocação, lendo as Cartas de São Paulo”; e São Francisco
de Assis, em oração, leu, no Evangelho, que Jesus envia os discípulos a pregar
e exclamou: “Isto eu quero, isto peço, isto anseio fazer de todo o coração!” São
vidas transformadas pela Palavra de vida, pela Palavra do Senhor. É caso para
nos interrogarmos porque é que isto não acontece a cada um de nós.
Muitas
vezes, ouvimos a Palavra como surdos: “Arrastados por mil palavras, passa-nos
por cima também a Palavra de Deus: ouvimo-la, mas não a escutamos; escutamo-la,
mas não a guardamos; guardamo-la, mas não nos deixamos provocar à mudança de
vida. Sobretudo lemo-la, mas não a rezamos.” Ora, é preciso não esquecer “as
duas dimensões fundamentais da oração cristã: a escuta da Palavra e a adoração
do Senhor”. Importa dar espaço à Palavra de Jesus rezada, para suceder connosco
como aos primeiros discípulos.
“Deixaram as
redes e seguiram-No.” Duas atitudes convergentes e mutuamente implicantes.
Deixaram o barco e
as redes, ou seja, a vida que levavam. Muitas vezes, custa-nos deixar as nossas
seguranças, porque ficamos presos nelas, como os peixes na rede. Mas a Palavra
cura das prisões do passado, reinterpreta a existência, e sara a memória ferida
inserindo nela a recordação de Deus e das suas obras em nosso favor. “Com a
narração das obras de Deus por nós, a Sagrada Escritura solta as amarras duma
fé paralisada e faz-nos saborear a vida cristã como ela é de verdade: uma
história de amor com o Senhor”, diz-nos o Bispo de Roma.
Os
discípulos seguiram atrás do
Mestre, deram passos em frente. A Palavra d’Ele, “liberta dos estorvos do
passado e do presente, faz amadurecer na verdade e na caridade, reanima o
coração, sacode-o, purifica-o das hipocrisias e enche-o de esperança. A Bíblia
assegura que a Palavra é concreta e eficaz, “como a chuva e a neve”, na terra;
“como o fogo”; “como o martelo que tritura a rocha”; como a “espada afiada que discerne
os sentimentos e intenções do coração”; “como um germe incorrutível que,
pequeno e escondido, germina e dá fruto”. E, citando o n.º 21 da Dei Verbum, o Papa considera: “É tão
grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna […] alimento da
alma, fonte pura e perene de vida espiritual.”
Por isso,
Francisco apela a que “o Domingo da Palavra de Deus nos ajude a regressar, com
alegria, às nascentes da fé, que brota da escuta de Jesus, Verbo do Deus vivo”
e que, “por entre as palavras que se dizem e leem continuamente sobre a Igreja,
nos ajude a redescobrir a Palavra de vida que ressoa na Igreja”. E
interpela-nos sobre que lugar reservamos para a Palavra de Deus em casa, se
temos a Bíblia e se a lemos; se temos o Evangelho no quarto, no bolso, na
bolsa, no telemóvel e se o lemos. Com efeito, “o Evangelho é o livro da vida, é
simples e breve, mas muitos crentes nunca leram um, do começo ao fim”. Alguns
têm-no só a adornar a estante ou a mesa.
***
Se calhar,
há muito a mudar nas nossas vidas!
2024.01.23 – Louro de Carvalho
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