A ex-presidente da Comissão executiva (ex-CEO) da TAP Air Portugal intentou
ruidoso processo judicial contra o grupo empresarial, rejeitando a “justa
causa” para a sua demissão e sustentando que a saída se deve a motivos
políticos, na tentativa de “abafar a total falta de coordenação entre tutelas”,
nomeadamente na responsabilidade pela nomeação de Alexandra Reis para
Secretária de Estado do Tesouro, com responsabilidade pelo acompanhamento da
execução do Plano de Reestruturação (PdR). E repesca as audições na Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) à TAP, para reclamar a indemnização de 5,9
milhões de euros.
A defesa reage contra-ataque, encastelando irregularidades.
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Inês Arruda,
advogada da autora, alega que a narrativa construída pelas rés foi
destapada, pois a autora não decidiu, autonomamente, alterar a comissão
executiva e propor a Alexandra Reis um acordo. Ao invés, “teve
autorização do representante do acionista e agiu em conformidade com todas as
instruções que lhe foram sendo dadas”.
Devolve ao governo a acusação de que a ex-CEO desconhecia o Estatuto do Gestor Público (EGP) e a necessidade de ser a assembleia
geral a demitir Alexandra Reis: também os ministérios das Finanças e das
Infraestruturas pensavam que podiam exonerar ex-CEO com justa causa e com efeitos
imediatos, como sucede a membros do governo. E, vendo que não é assim, forjaram “uma alegada motivação para a demissão”, para “se furtarem a
pagar-lhe a indemnização prevista no EGP”,
atitude “inqualificável e, no mínimo, pouco escrupulosa”.
Segundo o processo, há “erro nos pressupostos de facto” da demissão da
ex-CEO. Por exemplo, a autora “não tem que ter conhecimentos para
lavrar o acordo” de renúncia celebrado com Alexandra Reis ou para
aferir da conformidade do mesmo face à legislação portuguesa aplicável, em tema
“controverso”, como é a “renúncia onerosa de administradores” (com compensação).
A causídica sustenta que as rés, TAP e TAP SGPS, “ignoram, propositadamente, a
intervenção do Ministério das Infraestruturas e Habitação” ao longo
do processo, o que é escandaloso, pois “reconhecer que o mesmo interveio
deixaria as rés sem argumentos”.
A ex-CEO fez o que “um gestor profissional criterioso faria” e o relatório da Inspeção-geral de Finanças (IGF) recomenda uma
“avaliação da atuação dos administradores envolvidos, quanto à
inobservância dos normativos aplicáveis”, não exoneração com justa causa
“em praça pública”. E alega que “as
deliberações unânimes não indicam factos concretos que permitam imputar à autora
as conclusões ali extrapoladas”. E, a haver ilegalidade, era sanável, pois foi
recuperado o montante que, alegadamente, não devia ter sido pago.
O processo vinca “a notória falta de fundamentação da
gravidade da ilegalidade”, pois recai sobre interpretação errónea do ato praticado:
chama-lhe demissão, ao invés de renúncia onerosa. É disso exemplo o
facto de a “decisão ter sido sustentada em assessoria
jurídica, no âmbito de enquadramento legal válido […], tomada com
transparência para com o Estado, com o chairman (Manuel Beja),
com o CFO (administrador financeiro, Gonçalo Pires) e com dois administradores
não executivos e acautelando interesses financeiros”. Para a
advogada, “não havendo culpa”, a ex-CEO só podia ser demitida “por mera
conveniência”, como prevê o artigo 26.º do EGP. Porém, ela “agiu com total boa-fé, convicta da legalidade do
ato e da razoabilidade do valor acordado”. Sem culpa, não existe juízo de
imputabilidade, pelo que não há “fundamento para demitir a autora nos termos e
com os fundamentos que constam das deliberações unânimes por escrito (DUE)”.
As DUE que formalizam a demissão imputam à ex-CEO o
desconhecimento das imperativas regras legais para a
cessação de funções de gestores públicos, mas as rés “não alegam quais as
normas em causa”. E a renúncia operou-se “nos termos que, nem a lei comercial,
nem o EGP vedam: acompanhada da atribuição de uma compensação”. Assim, não se tratou de (hipotético) “desconhecimento que possa ser
considerado especialmente censurável à luz do elevado padrão dos
deveres de cuidado legalmente exigidos a estes gestores públicos”.
O Ministério das Finanças desconhecia o processo que levou à renúncia de
Alexandra Reis até ser noticiado o valor da indemnização, há pouco menos de um
ano. E a demissão da ex-CEO é sustentada no “desconhecimento e omissão
continuada dos deveres de informação [às tutelas] e reporte sobre matérias
centrais ao funcionamento” da TAP. No processo, é lembrada a mensagem de Hugo
Mendes a Christine Ourmières-Widener: “O ministro aceita os valores, por favor
fecha tudo”. Ou, depois, na CPI: “O ponto é, não foi a CEO que, de
repente, se lembrou. Ela teve uma autorização do acionista, ou do representante
do acionista”.
Destaca-se a presunção do ex-ministro das
Infraestruturas e Habitação sobre a coordenação com a tutela das finanças, ao referir, na CPI, que, “quando deu à autora o
consentimento para avançar com a proposta de reestruturação e autorização para
fechar o acordo, pelo valor que resultava do email de 02/02/2021, estava
convicto de que o secretário de Estado, com poderes delegados, estava
coordenado com o secretário de Estado do Ministério das Finanças”.
A ação nota que a ex-CEO informou o presidente do conselho de administração
e o administrador financeiro: “O acionista das rés é o Estado.
E o Estado não é bicéfalo! Se existe uma descoordenação entre as
tutelas, e se uma das tutelas atua em nome e representação do acionista, não
pode depois o próprio Estado beneficiar dessa mesma descoordenação e prejudicar
terceiros de boa-fé.” Daí se conclui que a gestora “não
violou nenhum dos deveres que vêm mencionados na respetiva fundamentação da
demissão com ‘justa causa’”.
A advogada também desmonta o argumento da “desconsideração pela repartição
de competências entre órgãos sociais” da TAP, geradora de “intolerável quebra
das relações de integridade, lealdade, cooperação, confiança e transparência
com o acionista”, pois a autora continuou, durante mais de um mês, a
exercer funções de CEO, participando nas reuniões da Comissão Executiva,
em que votava, e tendo de lidar, diariamente, com temas urgentes.
“A acusação de que a autora é responsável pelas consequências negativas”
sobre a reputação e boa gestão das rés”, ou de que “as consequências negativas
sobre a reputação e boa gestão das rés” advêm do acordo com Alexandra Reis, “é
revelador de uma má-fé e de um total desrespeito pela autora e pelo seu
percurso profissional”, afirma o processo. “O que trouxe, eventualmente,
consequências negativas sobre a reputação e boa gestão das empresas públicas
foi a evidente falta de coordenação das tutelas”, a que a ex-CEO é alheia,
considera a causídica.
Concluindo, a destituição da ex-CEO “não se fundou em
justa causa” e há atuação ilícita e culposa da sociedade e “ataque
difamatória à honra ou reputação profissional” da administradora.
A demissão ocorreu na sequência da polémica indemnização de 500 mil euros
brutos paga a Alexandra Reis para renunciar ao cargo, tida como ilegal pela IGF. O
anúncio foi feito, a 6 de março, pelos ministros das Finanças e das
Infraestruturas, em conferência de imprensa. O Ministério das Finanças
justificou a demissão com a “violação grave, por ação ou por omissão, da lei ou
dos estatutos da empresa”, conforme previsto no artigo 25.º do EGP, o que não dá direito a qualquer
indemnização. O seu mandato de ex-CEO terminou, formalmente, a 12 de abril,
quase 22 meses depois de tomar posse. Além de Christine Ourmières-Widener,
também foi demitido o chairman (presidente
do conselho de administração), Manuel Beja.
***
Segundo
os advogados da Uría Menéndez Proença de Carvalho, a demissão da ex-CEO assenta
na violação grosseira dos estatutos da TAP, da legislação aplicável ao setor
público e dos deveres de cuidado e diligência a que estava obrigada, pelo que
não tem direito a compensação indemnizatória. O vínculo com a ex-CEO era precário,
podendo cessar a todo o momento, pois não foi assinado contrato de gestão com os
ministérios das Infraestruturas e Habitação e das Finanças, em violação do EGP (artigo 18.º) e não foi trabalhadora de nenhuma das empresas da TAP
(TAP SA e TAP SGPS), pois não foi celebrado contrato de trabalho.
O seu vínculo com a companhia era um Contrato de Administração
(Directorship Agreement), de 24 de junho de 2021, não ratificado em
Assembleia Geral ou por uma Comissão de Vencimentos. E o seu salário também estava à margem da lei. Tendo a TAP sido
classificada como empresa em “situação económica difícil” não podia ter aumentado o vencimento dos órgãos sociais (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º
353-H/77, de 29 de agosto). Ora, a ex-CEO passou a auferir a remuneração fixa anual
de 504 mil euros, quando a do antecessor era de 490 mil euros.
A TAP suspeita que a ex-CEO poderá ter cometido crimes
de “tráfico de influência, de oferta indevida de vantagem ou mesmo de
corrupção”. Em causa está a tentativa do seu marido, Floyd
Murray Widener, de vender à TAP uma “solução tecnológica que
permitia a validação de dados dos passageiros”, da empresa israelita Zamna,
onde assumiu funções três meses depois da tomada de posse da esposa (junho de
2021). Em dezembro de 2021, “havia já um projeto-piloto em curso” daquele
programa tecnológico, “à revelia do conselho de administração” da TAP, um “manifesto conflito de interesses”, com “graves
riscos reputacionais” à companhia. A contratação da Zamna foi travada pela
ex-administradora Alexandra Reis. E, sobre a conduta da ex-CEO, a defesa aponta,
ainda, a tentativa de despedimento de um dos motoristas da administração,
depois de este se ter queixado de ser solicitado em situações pessoais da
ex-CEO e dos familiares, onde “se incluíam, por exemplo, idas ao cinema e
jantares em restaurantes”.
Desde dezembro de 2019, Christine Ourmières-Widener é “fundadora, acionista e administradora da O&W Partners, com
sede em Londres”, “empresa de consultoria de viagens e aviação (travel & airline consulting)”. Porém, não “informou ou sequer solicitou qualquer autorização” à TAP e
aos acionistas para manter o cargo de administradora da O&W Partners, enquanto
líder da transportadora portuguesa. E exerceu cargos remunerados como
administradora da ZeroAvia e do MetOffice. Ora, a acumulação de cargos é
incompatível à luz do EGP, pelo
que a gestora “violou clamorosamente o regime de exclusividade”,
sendo motivo de demissão por justa causa. “Em rigor, a autora deveria ter sido imediatamente destituída, logo em 2021,
por violação do dever de exclusividade. O que desde logo afastaria qualquer
pretensão indemnizatória.”
O processo da ex-CEO contra a TAP refere um currículo “imaculado”,
“determinante para a sua contratação”. Porém, a defesa questiona os danos
reputacionais alegados por ela, contrapondo “que as duas experiências da autora como CEO de uma companhia aérea
foram tudo menos um sucesso”, referindo-se à sua passagem pela CityJet e
a Flybe, empresas que foram vendidas “por perto de nada” ou falidas. A
contestação fala em currículo “tumultuoso”, avaliação contrastante com os elogios
do ex-ministro das Infraestruturas, o responsável pela escolha da gestora para
a liderança da TAP, em 2021.
A defesa da contesta o papel decisivo da ex-CEO na recuperação da
companhia e no regresso aos lucros, que autora invoca no pedido de
indemnização. Os advogados alegam que o PdR é fruto do trabalho do
Conselho de Administração e da Comissão Executiva em funções, durante o triénio
2018-2020 (até 24 de junho de 2021), liderados por Miguel Frasquilho e,
na parte final, por Ramiro Sequeira. E “a melhoria dos resultados positivos da
TAP”, em comparação com o PdR, deveu-se, não às suas expertises de gestão, mas à recuperação antecipada e surpreendente da economia mundial e
à consequente recuperação da atividade das companhias aéreas precoce e
acelerada”. Por isso, “as reais causas do recente sucesso do grupo
TAP, não passaram, no essencial, pelo desempenho” da CEO.
A defesa recorre ao processo de saída de Alexandra Reis, que a IGF
considerou ilegal e nulo. Foi, de resto, a auditoria da IGF que serviu de base
à demissão com justa causa da ex-CEO.
A contestação alega que autora destituiu Alexandra Reis, por “animosidade
pessoal”, agudizada por esta última a ter afrontado “em duas situações
particulares”: tentativa de demissão do motorista e negócio com o marido da
CEO. A necessidade de criar o cargo de Chief Strategy Officer,
para o qual Alexandra Reis não teria perfil adequado, é apontada como “falso
pretexto”. Tal como a IGF, a defesa da TAP aponta que o acordo de cessação
viola o EGP, além de que a saída de
Alexandra Reis não foi aprovada em assembleia geral, como impõe a lei.
A defesa da TAP considera, pelos argumentos expostos, “que não assiste
qualquer razão à autora a respeito dos diversos prejuízos patrimoniais e não
patrimoniais que esta alega ter sofrido em razão da sua destituição enquanto
administradora” da TAP. Aponta que, não podendo o seu salário ultrapassar os
490 mil euros, “ficou em melhor situação do que aquela que a lei lhe permitia,
enquanto administradora das rés, sujeita ao exercício das suas funções
de administradora em regime de exclusividade”. E conclui que “ficou demonstrada a justa causa da destituição” da
ex-CEO, e que a conduta por si adotada no contexto da destituição de Alexandra
Reis como administradora, causou “impacto negativo na esfera reputacional” da
TAP.
De toda a forma, o pedido indemnizatório “no que respeita aos alegados
danos não patrimoniais causados revela-se absolutamente desadequado e desproporcional”.
***
Pasmo
ao ver a TAP – Conselho de Administração, Comissão Executiva e tutelas –
esperar por um processo judicial contra si, para vir lavar toda a roupa suja; e
não atuou antes, como era seu dever. Acusam a autora de crimes graves e não a
processaram judicialmente. Se violou o artigo 7.º do DL n.º 353/77, as rés são
cúmplices. Se quis correr com Alexandra Reis por incompatibilidades pessoais
(sem aval do Conselho de Admsintração ou da assembleia geral), se quis despedir
um motorista por recusar serviço particular e de família à ex-CEO e se fez
negócios com o marido, deveriam ter atuado de imediato, pela sanidade eficácia
e imagem da empresa pública e pelo prestígio do Estado. E, se foi gestora, em
simultâneo, de mais duas empresas, sem autorização da TAP, deveria ter sido
destituída de imediato.
Não
vale alegar que não houve contrato de gestão. Se isso é verdade, tanta culpa
tem a autora como as rés. E não se pode desligar, hipocritamente, a autora do
mérito dos lucros da TAP.
Tudo
isto devia ser objeto de processo administrativo e ou judicial contra a ex-CEO,
não em sede de defesa, no estilo de contra-ataque, pois não vale tudo.
Penso
que a ex-CEO devia ter sido destituída, pela assembleia geral e pela tutela,
não com base em avaliação pedida, genericamente, pela IGF (não recomendou a
destituição ex professo), mas com
base em processo dirigido contra a ex-gestora sénior (Ela assim se designa), de
modo a pagar pelos erros. Assim, é atirar poeira para um lado e lama para o
outro.
A
TAP, o Estado e o povo mereciam melhor!
2024.01.17 – Louro de Carvalho
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