O descontentamento nas forças de segurança era
óbvio, mas em surdina. A falta de condições de trabalho, o mau estado das
instalações e das viaturas, a magreza salarial eram – e são – as aflições dos elementos
da Guarda Nacional Republicana (GNR), da Polícia de Segurança Pública (PSP) e
da Autoridade
de Segurança Alimentar e Económica (ASAE). Mas a gota de água, para o ostensivo patenteamento do protesto,
foi o aumento do subsídio de risco aos elementos da Polícia Judiciária (PJ),
com retroação ao início de 2023, recentemente decretado pelo governo, superando,
em muito, o das outras polícias, cuja missão de risco não é menor, segundo
alegam.
Por isso, a 24 de janeiro, culminando três semanas
de protesto, mais de 13
mil polícias marcharam em Lisboa, para exigir suplemento de missão igual para
todas as forças de segurança, reivindicação em que têm o expresso apoio do Presidente
da República (PR), a “compreensão” (não a análise jurídica: é “uma questão de remuneração” que “tem
que ser revista e analisada”) da bastonária
da Ordem dos Advogados (OA) e, obviamente, a “ajuda” dos comentadores da praça
e dos partidos da oposição. Neste aspeto, pararam as greves dos médicos e dos
professores, à espera das decisões do governo que resultar das eleições de 10 de
março, mas, graças a uma medida discriminatória em prol de uma das polícias,
sem ter em conta similar necessidade das outras, as forças de segurança
alertaram o país. Mais um espinho para o governo de gestão!
***
Esquadras da PSP fechadas, postos da GNR sem patrulhas,
detenções em queda e o rotundo não às propostas do Ministério da Administração
Interna (MAI). As forças de segurança não abdicam de suplemento de risco igual
ao da PJ, juntaram forças e prometeram a maior manifestação de polícias que o
país já viu. Alguns polícias solicitaram a folga para estarem
no protesto. Ensaiou-se a coreografia, foram aprontados os adereços e
contratados os autocarros. Preparam roupa escura, que exibiram, e assumiram, provisoriamente,
o silêncio como grito da reivindicação.
Entretanto, em plena preparação do protesto, os
polícias receberam, com estupefação, a proposta do MAI que “só exaltou os
ânimos”. Como noticiou o Diário de
Notícias, em cima da mesa está a atribuição do suplemento de risco na ordem
dos 600 euros, que custa ao Estado cerca de 154 milhões de euros, a negociar “após
as eleições”. Porém, os polícias querem um valor equiparado ao suplemento da
PJ, que subiu para os 1070 euros mensais. Sem isso, “não há motivos para
desmobilizar, antes pelo contrário, dá uma maior força às reivindicações”,
defende Bruno Pereira, dirigente da plataforma de sindicatos das forças de
segurança.
As
contas dos sindicatos apontam para uma despesa de 400 milhões de euros, muito
superiores às contas do MAI. “A nossa luta é por um subsídio de risco de 1070
euros, não pela soma de subsídios que, tal como a PJ, já recebemos”, explicou o
dirigente sindical.
Segundo o MAI, a sua proposta “visa unificar todos os
suplementos a serem pagos em 14 meses”. Assim, os 600 euros resultam da fusão
dos diversos suplementos que PSP e GNR recebem, como as remunerações pela
condição militar, patrulhamento, risco, penosidade ou fardamento. Porém, Bruno
Pereira lembra que, na PJ, há outros subsídios não englobados no suplemento de
risco. O oficial não esconde o espanto com a proposta do MAI, “que chega, após
semanas de protestos, sem um incidente”. E a “desilusão deu novo alento aos
protestos”, que mobilizaram os oficiais e agentes de todo o país.
Houve indicações para “vestir de preto ou de cor escura, pelo
menos a parte de cima”, como houve recomendações aos muitos que levaram tenda e
saco-cama, com grande impacto visual, pela incerteza, quanto ao tempo que
poderiam ficar no Parlamento.
Os autocarros, com um custo que “ultrapassa os 800 euros cada
um, foram fretados e pagos pelos sindicatos”, informou um intendente da PSP. Os
sócios dos sindicatos não pagaram transporte e os não sindicalizados contribuíram
com valores entre cinco a dez euros.
Em toda a viagem houve elementos a garantir a segurança para
que não houvesse excessos.
À chegada ao Quartel do Carmo, em Lisboa, havia elementos
identificados com coletes refletores para garantir o protesto ordeiro. Do
Quartel do Carmo ao Parlamento, a manifestação foi encabeçada pelos dirigentes
sindicais, “todos vestidos de preto, em silêncio e de forma ordeira”, como prometeram. No Parlamento
foi criado “um corredor de cinco metros de largura, entre as grades e os
primeiros polícias”. A norte,
alguns elementos garantiam “desfilar de bandeira nacional erguida”. E o líder
da plataforma de sindicatos reconhecia poderem existir excessos, mas houve
elementos a postos, para retirar os manifestantes que quisessem causar tumulto.
Para segurança (as redes sociais falavam na hipótese de infiltrados),
houve forças da Unidade Especial de Polícia, destacadas para o Parlamento, e
militares da GNR, a reforçar o Quartel do Carmo. Também o Ministro da Administração
Interna teve a segurança policial reforçada.
O comando da PSP destacou “o profissionalismo dos polícias” e
lembrou que os protestos têm decorrido com “integridade e civismo, não adotando
comportamentos que coloquem em causa a boa imagem da instituição”. Contudo, o
comando da PSP assumia alguns receios, mas esclarecia que não aconteceria
qualquer policiamento que pudesse implicar alteração de ordem pública.
O comando nacional da GNR, que não tem competência de
policiamento na área da manifestação, garantia que, nas “imediações do Quartel
do Carmo, seriam tomadas apenas as medidas de segurança consideradas
necessárias. Também na corporação, o comando assumia “os
valores e os princípios que pautam a condição militar, com a convicção de que
todos saberão estar à altura das suas responsabilidades, agindo em escrupuloso
respeito da Lei e preservando o bem maior, que é a liberdade e a segurança de
Portugal e dos portugueses”. “O que
aconteceu em 2013 não se vai repetir, cairia muito mal qualquer confronto entre
polícias, sabemos que há reforço de segurança à retaguarda, mas este será um
protesto pacífico”, assumia um capitão da GNR.
***
Milhares de polícias reuniram-se no Largo do Carmo, em Lisboa, provindos de
vários sítios do país, em autocarros. O largo enchia cada vez mais.
Impávidas, no Quartel do Carmo, as sentinelas, sisudas, colaboraram
no canto do hino nacional, “de sorriso envergonhado”. “Ordem, não pode haver percalço, para garantir a igualdade de
suplemento”, gritou um sindicalista. Um oficial acenou, concordou e pediu: “Que
não haja excessos ou tentativa de subir a escadaria.”
Aos 60 autocarros saídos de todo o país, a quem veio
em carrinhas e automóveis particulares e aos que voaram das ilhas juntaram se
os agentes do comando de Lisboa, o maior do país. A marcha até ao Parlamento
começou. Polícias, militares, oficiais, agentes, chefes e sargentos. E gritaram.
“Estamos juntos. Ao Parlamento!”
Alinhados, a pé. Na frente, as motos da PSP abriram
caminho e polícias fardados acompanharam os protestos (Polícias policiam
polícias!). Imperou a simpatia e o trabalho dos repórteres foi facilitado. Em
passo mastigado, com três carros-patrulha na frente da longa coluna, escutaram-se
lamentos. Alguns grupos contavam os problemas do serviço.
Uma hora depois, a coluna da manifestação estava no
Largo Sousa Macedo, muitos metros à frente, as motas policiais cortavam ruas, o
Parlamento ainda longe. Rodeados por 50 delegados sindicais, identificados com
um colete fluorescente, continuaram a marcha por entre apitos, o hino nacional
e muitas queixas. O líder da plataforma de sindicatos protestou contra o
“tratamento desigual, quando as grandes polícias nacionais não viram o
acompanhamento de compensação, para uma profissão especial, de desgaste
rápido”.
Com a cobertura da imprensa internacional, já na
escadaria do Parlamento, a certeza de que os polícias recusarão o referido
estudo do MAI, que tem de ser sustentado, pois há suplementos que nem todos os
polícias recebem”, Bruno Pereira lembrou que “subsídios de turno e piquete só
ganha os faz, pelo que é preciso descortinar os números e ter em conta a lei
geral do trabalho que impõe uma matriz horária com um subsídio de turno, que
varia entre 15 a 25%.
Com vários comissários a acompanhar os protestos, o
Largo das Cortes ficou lotado. No topo das escadarias, veículos da Unidade
Especial de Polícia, visíveis, por detrás das grades. Entre os manifestantes,
“elementos dos Serviços de Informação e Segurança”, anotou um oficial da GNR.
Um chefe da PSP lembrou que “os jovens não querem
ingressar, outros saíram após o curso, voltaram a estudar”.
Às 19h50, os últimos elementos da manifestação chegaram
ao Parlamento. Ali, houve conversas, atenção à eventual subida das escadas, cuidado
em retirar elementos da barreira de cinco metros que defende o acesso ao edifício.
E os delegados sindicais travaram uma escaramuça com dez elementos
que tentaram subir a escadaria do Parlamento.
Havia grupos a beber cerveja, outros a comer batatas fritas,
para enganar a fome, havia mais carrinhas da Unidade Especial de Polícia e soou
o hino. Para lá das grades, os agentes equipados e fardados tomaram a posição
de sentido e cumpriram o regulamento. Um movimento que repetiram, várias vezes,
ao longo da noite, olhando a enorme bandeira nacional a ondular com a leve brisa
da noite. “Um exemplo de boa conduta”, afirmaram vários militares. Firmes,
gritaram palavras de ordem, acenderam lanternas e assim permaneceram.
A faixa de cinco metros foi respeitada, só se avistavam
os polícias e o grupo coeso de presidentes de sindicatos, que encabeçou a
marcha e esteve nas escadarias, atrás das grades. Não houve discursos. E os
polícias fizeram contas: “13 a 15 mil pessoas. Não se rompia no Largo das
Cortes.”
Prometeram regressar no dia 26, para falarem com o
grupo parlamentar do Partido Socialista (PS), o partido do governo. E, a 29,
têm encontro marcado com Pedro Nuno Santos, o secretário-geral do PS. No MAI, está
dada a garantia de que não haverá aumentos nos suplementos de risco. “Seja qual
for o governo, será a quem vier que cabe tomar a decisão”, resume a fonte
oficial.
Todavia, os polícias não desistem dos protestos. O
próximo ficou agendado para 31 de janeiro, no Porto. Entretanto, voltam ao
trabalho, mas alguns dormiram no Parlamento. Até conseguirem os 1070 euros de
suplemento de missão, igual ao da PJ. “Promessa feita”, assume um militar,
antes de se embrulhar no saco-cama e de fechar a tenda.
***
O MAI, que entendia que o dito subsídio devia
ser integrado no vencimento mensal, fez contas
e preparou, como foi referido, um dossiê, para entregar ao governo que sair das
eleições, que prevê aumentos de 1476 euros, para a GNR, e 1215, para a PSP (mais
594 euros para a PSP e 806 para a GNR, acrescidos dos suplementos em vigor), o
que não convence a plataforma de sindicatos, que não desmobiliza os protestos. Porém, o MAI alerta que “é preciso distinguir quem tem uma missão
mais arriscada, de outros que estão nas esquadras e postos a fazer trabalho
burocrático”. Assim, o suplemento deve ter em conta “o grau de complexidade”.
***
Resta a questão se o governo
em gestão pode aumentar os polícias. A
plataforma de sindicatos das polícias diz ter um parecer jurídico favorável ao
seu intento. E, pelos vistos, no governo, o assunto é controverso. Porém, o
ministro da Administração Interna é taxativo: uma decisão destas só com um novo
governo.
Advogados
e ex-governantes lembram que o MAI, com o governo em gestão, tem condições para
desbloquear o impasse. E, no governo, o desconforto com os protestos das
polícias está a causar divisões. A Constituição é equívoca, ao permitir só “a
gestão dos negócios públicos”. E alguns pensam que os aumentos “podem ser
considerados despesa inadiável, para garantir a ordem pública, pelo que dificilmente,
com vontade política, o PR vetaria um diploma nestas condições. Ao invés, há
quem sustente (e eu também) que “é boa prática, com eleições marcadas para
março, não comprometer a despesa pública”, até porque “tal poderia ser
entendido como eleitoralismo, o que obriga o executivo a fazer uma
interpretação mais restrita da lei, mesmo concordando com as razões das forças
de segurança”. No entanto, os polícias merecem e precisam.
2024.01.25 – Louro de
Carvalho
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