Em Portugal, já
12 pessoas pediram ajuda para tratamento por dependência de fentanil, um
analgésico opioide altamente viciante e que está a causar uma “epidemia” de
mortes por overdose nos Estados Unidos da América (EUA), o que está a preocupar
os especialistas.
Segundo Jim
Lee, copresidente do Gabinete de Terrorismo e Informações Financeiras (TFI, na
sigla em Inglês) do Departamento do Tesouro, o fentanil é um potente opiáceo
responsável por dezenas de mortes, por ano, nos EUA (ultrapassou as 100 mil, em
alguns anos), aonde chega, fabricado a partir de produtos, muitas vezes,
provenientes da China (segundo Washington), e introduzido por cartéis
mexicanos.
Em Portugal, o Instituto para os Comportamentos Aditivos e para as
Dependências (ICAD) revela que os casos ocorreram em 2023 e um em 2024. Entre as
12 pessoas referenciadas, oito usavam o opioide com outras drogas, enquanto as
outras estavam exclusivamente viciadas nesta substância, que vem sendo cada vez
mais prescrita pelos médicos, para o controlo da dor.
Um dos casos refere-se a um homem com cerca de 50 anos, sem histórico de
abuso de drogas, a quem foi prescrito fentanil num hospital privado para alívio
de dor lombar. Depois de algumas semanas a usar os adesivos comprados na
farmácia, o doente, que não foi informado do risco de adição, chegou ao fim da
embalagem sem ter nova receita. Entrou em privação imediata. “A dor que tinha
não justificava o uso de fentanil. Foi-lhe prescrito à americana. Quando
percebeu que estava dependente, procurou ajuda”, diz Miguel Vasconcelos,
coordenador da Unidade de Desabituação do Centro das Taipas, em Lisboa. Noutro
caso, o analgésico foi prescrito a um jovem com cerca de 30 anos que sofria de problema
grave de, com dor intensa. Tentaram a desabituação física em ambulatório, mas teve
de ficar internado cerca de 10 dias.
Recentemente, chegou à Unidade de Desabituação de Coimbra um pedido para
tratamento de uma mulher que desenvolveu adição ao fentanil, que lhe fora
receitado. “Não é um caso de consumo de rua”, salienta Emídio Rodrigues,
coordenador da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas
Dependências da Região Centro.
Segundo o Infarmed, o fentanil é o quarto analgésico opioide mais prescrito
em Portugal. Em 2022 (último ano de que há dados completos) foram vendidas, nas
farmácias, mediante receita médica, 306.084 embalagens, o equivalente a cerca
de 840 por dia. E, nos últimos 10 anos, o volume de vendas, que partiu de patamar
muito baixo, comparativamente com o registado noutros países, aumentou sempre a
ritmo constante, registando uma subida de 32%, nos últimos cinco anos, tudo
indicando que vá aumentar. Entre janeiro e outubro de 2023 foram vendidas, em
média, mais cerca de 50 embalagens, por dia, do que em 2022.
Nas farmácias, é vendido sob a forma de adesivos ou de comprimidos, podendo
também ser injetável, em contexto hospitalar. Porque produz efeitos mais
rapidamente do que outros opioides, como a morfina, faz com que seja
frequentemente administrado ou prescrito em situações de dor intensa, aguda ou
crónica. Porém, segundo Graça Mesquita, presidente do Colégio de Medicina da
Dor da Ordem dos Médicos (OM), não há, em Portugal, nenhum mecanismo de
monitorização ou de controlo de prescrição específico para o fentanil. Todos os
médicos, independentemente da especialidade, podem receitá-lo, estando os
médicos de família entre os que mais o prescrevem.
A última
recomendação da Direção-Geral da Saúde (DGS) para a “utilização de medicamentos
opioides fortes em dor crónica não oncológica” data de 2008 e desvaloriza os
riscos. “Embora ainda não existam dados suficientes, parecem não se confirmar
os receios de tolerância e da adição induzidos por estes medicamentos”, refere.
Contudo, recomenda que sejam receitados só em último recurso “e sempre com
monitorização apertada”, o que não parece acontecer.
João Goulão, presidente do ICAD, sustenta que o fentanil pode causar
dependência física semelhante à heroína, provocando o mesmo tipo de sintomas de
privação, mas que o seu consumo é mais perigoso: “A diferença entre a dose que
proporciona o efeito procurado e a dose potencialmente letal é muito menor do
que na heroína, o que significa que mais facilmente pode levar à morte por
overdose.”
Nos EUA, que têm longo histórico de dependência de analgésicos opioides,
cujos riscos de adição foram, inicialmente, omissos e, depois, desvalorizados
pela indústria farmacêutica, vive-se, agora, uma verdadeira “epidemia” de
fentanil, que se transformou na droga dominante traficada nas ruas,
habitualmente sob a forma de pó branco, que pode ser fumado ou injetado.
Segundo o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) norte-americano, esta
substância sintética, totalmente fabricada em laboratório, é 50 vezes mais
potente do que a heroína. Só em 2022, segundo os últimos dados oficiais,
provocou perto de 75 mil mortes, tendo-se transformado na principal causa de
morte em pessoas com menos de 50 anos.
“A diferença entre a dose que proporciona o efeito
procurado e a dose potencialmente letal é muito menor do que na heroína, o que
significa que mais facilmente pode levar à morte por overdose”, alerta o
presidente do ICAD. Nos EUA a droga já entrou no mercado negro, algo que parece
não ter ainda acontecido em Portugal, já que não se têm registado casos de
overdose.
Em Portugal, a substância ainda não parece estar a ser traficada no mercado
negro, mas o presidente do ICAD admite que “é apenas uma questão de tempo”. Até
agora, as equipas de rua que acompanham os utilizadores de droga não têm
conhecimento de que esteja a circular, pois não se tem registado, nos últimos
meses, aumento significativo do número de overdoses, que seria expectável, se o
tráfico de fentanil estivesse a disseminar-se. Porém, há relatos pontuais de
consumo fora de prescrição médica, quer por pessoas que acederam ao fármaco a
partir de familiares a quem fora receitado, quer em contexto recreativo, por aquisição
noutros países.
Todas as entidades que trabalham na área assumem que estão preocupadas. Por
isso, têm vindo a reforçar a sensibilização junto dos consumidores de drogas,
alertando-os para os riscos acrescidos desta substância. E foi aumentada a
distribuição de naloxona, fármaco que serve de antídoto para overdoses, como adianta
Andreia Alves, coordenadora da Associação Crescer.
A Ordem dos
Médicos (OM) assinala que não há nenhum controlo ou monitorização específico
para a prescrição de fentanil, e a última recomendação da Direção-Geral da
Saúde (DGS), relativa à “utilização de medicamentos opioides fortes em dor
crónica não oncológica” remonta a 2008 e desvaloriza o risco de ficar viciado quem
o toma. E as associações que trabalham no terreno, como a Crescer, o Grupo
de Ativistas em Tratamentos (GAT) e a Médicos do Mundo, lamentam que
Portugal não tenha um sistema de testagem de drogas, porque o fentanil pode ser facilmente
misturado com outras substâncias, sem os utilizadores saberem o que estão a consumir. A Kosmicare, a única organização
que fazia testagem nas salas de consumo vigiado, suspendeu o serviço no
início de 2023, por falta de
financiamento.
A Polícia Judiciária (PJ) ainda não abriu nenhum inquérito sobre tráfico de
fentanil, mas a unidade de combate aos estupefacientes está “muito atenta” ao
fenómeno, sobretudo devido à facilidade com que esta droga pode ser vendida
ilegalmente. “Basta um ou dois quilos para se produzirem milhares de doses”,
refere fonte judicial, que acrescenta: “O ‘mercado’ norte-americano já começa a
estar ‘saturado’ e os cartéis procuram sempre novas áreas de negócio.”
A DGS vai rever a circular relativa ao uso de medicamentos opioides fortes
na dor crónica não oncológica, anunciou a instituição, no dia em que foi
noticiado que já há em Portugal casos de dependência de fentanil. Contactada
pela agência Lusa sobre a circular em
vigor, referindo que, apesar de não haver dados suficientes, “parecem não se
confirmar os receios de tolerância e da adição induzidos por estes medicamentos”
– a DGS respondeu: “Tendo por referência os dados epidemiológicos e evidência
científica disponíveis [...], vai rever a circular informativa.”
***
Nos EUA, onde
as mortes por overdose de fentanil já são uma “epidemia”, com cerca de 75 mil
óbitos só em 2022, é já a principal causa de morte em pessoas com menos de 50
anos, foi criada, em novembro de 2023, uma força específica para o combate ao
tráfico deste opioide, que será liderada pela divisão de Investigações
Criminais e pelo TFI do Departamento do Tesouro, segundo a agência espanhola EFE. A este respeito, Janet Louise Yellen, secretária de Estado do
Tesouro, afirmou, em comunicado, que a luta contra o fluxo de fentanil “é
uma prioridade” para a qual o Departamento do Tesouro utilizará todos os
instrumentos à sua disposição.
A nova força,
segundo o subsecretário do TFI, Brian Nelson, atuará, de forma rápida e
decisiva, com especialistas de alto nível, “para responder rapidamente às
ameaças mais recentes”. Aproveitará as competências e a experiência do
Departamento do Tesouro para identificar e combater os crimes financeiros
relacionados com esta droga. Promoverá os objetivos da administração do presidente
Joe Biden, na matéria, tal como atacar a cadeia de abastecimento ou colaborar
com o México, nesta luta. E fará avançar o acordo entre Joe Biden e o homólogo
chinês, Xi Jinping, para retomar a cooperação bilateral em matéria de luta
contra o narcotráfico.
Ao alinhar
estrategicamente as investigações e as informações dos principais intervenientes,
a nova força aumentará o impacto financeiro das medidas já tomadas contra este
comércio ilícito.
Segundo o comunicado do Departamento do Tesouro, o acordo,
alcançado em novembro, incide em especial “na redução do fluxo de precursores
químicos que alimentam o tráfico ilícito de fentanil e de drogas sintéticas”.
Desde que Biden assinou uma ordem executiva, em dezembro de
2021, a autorizar sanções contra estrangeiros envolvidos no tráfico de
fentanil, 250 já foram impostas a indivíduos e empresas, com um foco particular
na cadeia de abastecimento. Em novembro passado, Biden agradeceu às autoridades
mexicanas pela detenção de “El Nini”, suspeito de tráfico de fentanil.
Biden e o
homólogo mexicano, Andrés Manuel López Obrador, prometeram, numa reunião, em 17
de novembro, em São Francisco, cooperar mais estreitamente contra o tráfico de
drogas e, em particular, o fentanil.
***
O fentanil, utilizado como medicação
para a dor, pode ser usado com outros medicamentos para a anestesia. Funciona,
em parte, pela ativação de recetores µ-opioides. Tem rápido início de ação e os
seus efeitos duram menos de uma hora ou duas. É cerca de 50 vezes mais forte do
que a heroína e 100 vezes mais forte do que a morfina. Pode ser administrado
por injeção intravenosa, por penso transdérmico e por via oral. Os efeitos
colaterais incluem náuseas, obstipação, sonolência e confusão. Porém, graves
efeitos secundários podem gerar depressão respiratória, síndrome da serotonina,
tensão arterial baixa ou dependência.
O fentanil
foi feito pela primeira vez por Paul Janssen, em 1960, e aprovado para uso
médico nos EUA, em 1968. Foi desenvolvido através de testes químicos
semelhantes, em estrutura, à petidina (meperidina) para a atividade de
opiáceos. Em 2015, foram utilizados 1,600 quilogramas (3,53 lb). Em
2017, foi o opiáceo sintético mais utilizado na medicina.
Pensos transdérmicos
de fentanil estão na Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial
de Saúde, lista dos mais eficazes e seguros necessários num sistema de
saúde.
O custo
médio, em 2015, esteve entre 0,08 e de 0,81 dólares (USD), por frasco de 100
microgramas. Nos EUA, em 2017, esta quantidade custava cerca de 0,40 USD.
O Fentanil é
também produzido de forma ilegal e usado como uma droga recreativa, muitas
vezes, misturado com heroína ou com cocaína.
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Como é óbvio,
não está em causa o medicamento, mas a aplicação sem controlo e a utilização
como droga recreativa.
2024.01.21 – Louro de Carvalho
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