O Batismo de Jesus no Jordão marca o termo da sua vida
de silêncio e de obscuridade e inaugura o seu ministério público, anunciando e
preparando o seu Batismo na morte (Lc
12,50; Mc 10,38).
Celebrou-se a 7 de janeiro, a festa do Batismo do Senhor, a qual, nos países em
que o 6 de Janeiro não é feriado (pelo que celebram a Epifania no domingo que recaia
entre 2 e 8 de janeiro), foi celebrada no dia 8.
A liturgia da
festa tem como pano de fundo o desígnio salvador de Deus. No Batismo de Jesus
nas margens do Jordão, revela-Se o Filho, o muito amado, de Deus, enviado ao
Mundo pelo Pai, com a missão de salvar e libertar os homens. Cumprindo o plano
do Pai, Jesus fez-Se um de nós, partilhou a nossa fragilidade e humanidade,
libertou-nos do egoísmo e do pecado, empenhou-Se em promover-nos para que chegássemos
à vida plena.
A primeira
leitura (Is 42,1-4.6-7) anuncia um
misterioso Servo, escolhido por Deus e enviado aos homens para instaurar a
justiça e a paz sem fim. Animado pelo Espírito de Deus, concretizará essa
missão com humildade e simplicidade, sem recorrer ao poder, à imposição, à
prepotência, pois esses esquemas não são os de Deus.
Diz o Senhor: “Eis o meu servo, a quem Eu protejo, o
meu eleito, enlevo da minha alma. Sobre ele fiz repousar o meu espírito, para
que leve a justiça às nações. Não gritará, nem levantará a voz, nem se fará
ouvir nas praças; não quebrará a cana fendida, nem apagará a torcida que ainda
fumega: proclamará fielmente a justiça. Não desfalecerá nem desistirá, enquanto
não estabelecer a justiça na Terra, a doutrina que as ilhas longínquas esperam.
Fui Eu, o Senhor que te chamei segundo a justiça; tomei-te pela mão, formei-te
e fiz de ti a aliança do povo e a luz das nações, para abrires os olhos aos
cegos, tirares da cadeia os cativos e da prisão os que habitam nas trevas.”
O trecho, que pertence ao “Livro da Consolação” (Is 40-55), fala da eleição do Servo e da
sua missão. A ordenação do Servo realiza-se pelo dom do Espírito. Animado pelo
Espírito, o Servo irá levar a justiça (‘mishpat’) às nações.
Esta figura misteriosa e enigmática apresenta nítidos pontos de contacto com a
figura de Jesus. Os primeiros cristãos utilizarão os cânticos do Servo, para
justificar o sofrimento e o aparente fracasso humano de Jesus. Ele é o “eleito (“behir”) de Deus” – alguém que Deus Se dignou “escolher” (“bahar”) entre muitos,
em vista de função ou missão especial –, que recebeu a plenitude do Espírito, que veio ao encontro dos homens com
a missão de trazer a justiça e a paz definitivas, que sofreu e morreu para ser
fiel à missão que o Pai Lhe confiou.
A sua missão, de
âmbito universal, consistirá na implementação das decisões justas dos
tribunais, base da ordem social consentânea com os projetos e esquemas de Deus.
A implementação dessa nova ordem não se dará com o recurso à força, à
violência, ao espetáculo, mas com a bondade, a mansidão e a simplicidade que
definem a lógica de Deus. Sobretudo, o Servo atuará com simplicidade, sem nada
impor e sem desanimar, perante as dificuldades da missão.
O Servo
foi “chamado” pelo Senhor para instaurar a justiça e a retidão (“tzedeq”). A
sua missão é, pois, é o estabelecimento de uma reta ordem social. Explicitando
melhor a missão do Servo, Deus convida-o a ser “a luz das nações”, a abrir os
olhos aos cegos, a tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam
nas trevas. É, pois, uma missão de libertação e de salvação.
Torna-se claro que o Servo é um instrumento através do qual Deus atua
no Mundo, para levar a salvação aos homens: é alguém que Deus escolheu entre
muitos, a quem chamou e a quem confiou uma missão: trazer a justiça, propor a
todas as nações a nova ordem social da qual desaparecerão as trevas que alienam
e impedem de caminhar e oferecer a todos os homens a liberdade e a paz. Deus,
origem (escolha, vocação e envio) da missão do Servo, acompanhará a
concretização da missão e possibilitará o seu êxito para levar a cabo a missão.
Portanto, o Servo conta com a ajuda de Deus, que lhe dá a força de assumir a
missão e de a concretizar.
***
A segunda leitura (At
10,34-46) apresenta-nos Pedro a reconhecer que a salvação oferecida por Deus e trazida por
Cristo é universal, destinando-se a todas as pessoas, sem distinção de qualquer
tipo. Israel foi o primeiro e privilegiado recetor da Palavra de Deus; mas
Cristo veio trazer a boa nova da paz (salvação) a todos os homens; e agora, por
intermédio das testemunhas de Jesus, a proposta de salvação que o Pai faz chega
“a qualquer nação que O teme e põe em prática a justiça” – ou seja, a todo o
homem e mulher, sem distinção de raça, de cor, de estatuto social, que aceita a
proposta e adere a Jesus. Depois de definir os contornos universais da Salvação,
Pedro faz um resumo da fé primitiva, que é pôr em ato a missão fundamental dos
discípulos: anunciar Jesus e testemunhar a salvação que deve chegar a todos os
homens. O trecho em apreço conserva apenas a parte inicial do “kérigma”
primitivo e resume a atividade de Jesus, que “passou pelo Mundo fazendo o bem e
curando todos os que eram oprimidos pelo demónio, porque Deus estava com Ele”.
E o anúncio de Pedro continua, depois, com a catequese sobre a morte, sobre a
ressurreição e sobre a dimensão salvífica da vida de Jesus.
Os Atos dos Apóstolos
são uma catequese sobre a “etapa da Igreja”, isto é, sobre a forma como os
discípulos assumiram e continuaram o desígnio salvador do Pai e o levaram –
após a partida de Jesus – a todos os homens. O trecho em referência pertence à primeira
parte dos Atos, onde se apresenta a
difusão do Evangelho dentro das fronteiras palestinianas, por ação de Pedro e
dos Doze. Insere-se na perícopa que descreve a atividade missionária de Pedro
na planície junto da orla mediterrânica da Palestina. Expõe-nos o testemunho e
a catequese de Pedro em Cesareia, em casa do centurião romano Cornélio.
Convocado pelo Espírito, Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial
da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família. O episódio é importante, por
ser Cornélio o primeiro pagão admitido, em pleno, ao cristianismo por um dos
Doze: significa que a vida, que nasce de Jesus, se destina a todos. E Pedro
prega a universalidade da salvação.
***
O Evangelho (Mc
1,7-11) relata que apareceu
João Batista no deserto a proclamar um batismo de conversão para o perdão dos
pecados. Acorria a ele toda a região da Judeia e todos os habitantes de
Jerusalém, que eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus
pecados. João estava vestido com peles de camelo e com uma correia de couro à
volta dos rins e alimentava-se de gafanhotos e de mel silvestre. E proclamava: “Atrás
de mim vem Aquele que é mais forte do que eu; eu não sou digno de me
inclinar para desatar a correia das suas sandálias. Eu batizei-vos na
água, mas Ele batizar-vos-á no Espírito Santo.” E veio Jesus de Nazaré da Galileia
e foi batizado por João. Ao sair da água, viu os céus rasgados e o Espírito,
como uma pomba, a descer sobre Ele. E uma voz surgiu dos céus: “Tu és o
meu Filho amado, em ti me comprazo.”
Porque João sabia que Jesus era quem devia ser exaltado,
pois era imensamente maior, é que, segundo Mateus, não fazia sentido Jesus apresentar-se-lhe
para receber o batismo de purificação, de arrependimento e de perdão dos
pecados, ministrado às multidões. De facto, a mensagem do Batista centrava-se
na urgência da conversão e incluía aquele rito de purificação pela água. Na
ótica do Precursor, os homens deviam arrepender-se; e era para os chamar ao
arrependimento que batizava na água. Para João, recusar a conversão,
significava ser destruído pela cólera de Deus. Mas Jesus, que não precisava
dessa purificação, apresentou-se assumindo as necessidades dos homens. É a perspetiva
da encarnação. Por isso, é que, ao perceber a inibição do Batista em Lhe ministrar
aquele batismo, disse: “Deixa por agora; convém que assim cumpramos toda a
justiça.”
Era preciso que, diante da multidão se revelasse quem
é Jesus e qual a sua missão. É a voz do Pai que O identifica como o seu Filho,
o muito amado; e é o Espírito Santo, que desce sob a forma corporal de pomba e
o define e unge como o Messias.
Assim, o batismo é um momento privilegiado da
manifestação de Jesus aos homens: antes de começar a sua atividade, Jesus
define-Se e apresenta-Se. Porém, as águas que, supostamente, deviam purificar
as pessoas que nelas se banhassem, só ganharam, em pleno, esse condão purificador
com o banho de Cristo, já não na água, mas no sangue redentor da cruz.
Por isso, João, que tinha um estilo de vida sóbrio e
austero, apregoa: “Atrás
de mim vem Aquele que é mais forte do que eu; eu não sou digno de me
inclinar para desatar a correia das suas sandálias. Eu batizei-vos na
água, mas Ele batizar-vos-á no Espírito Santo.”
***
A celebração do batismo do Senhor, que foi outra forma
de epifania, como a adoração dos magos, a proclamação de Simeão e o como há de
ser a transformação da água em vinho, em Caná da Galileia, leva-nos até Jesus,
que assume plenamente a condição de Filho e que Se faz obediente ao Pai,
cumprindo integralmente o projeto do Pai de dar vida ao homem.
O episódio do batismo de Jesus coloca-nos frente a
frente com um Deus que aceitou identificar-Se com o homem, partilhar a sua
humanidade e fragilidade, a fim de oferecer ao homem um caminho de liberdade e
de vida plena. No batismo, Jesus tomou consciência da sua missão (a missão que
o Pai lhe confiou), recebeu o Espírito e partiu em viagem pelas vias poeirentas
da Palestina, a testemunhar o projeto libertador do Pai.
A Igreja dos cristãos (e cada um de nós cristãos) é
chamada a seguir as pegadas de Cristo. Por consequência, torna-se pertinente
que nos interroguemos, se:
- Assumimos, na relação com Deus, a atitude de
obediência radical, de entrega incondicional, de confiança absoluta e o projeto
de Deus como mais premente do que os projetos pessoais ou do que os desafios
que o Mundo nos faz;
- Como filhos de Deus, aceitamos ir ao encontro dos irmãos
mais desfavorecidos e estender-lhes a mão, enfim, partilhamos a sorte dos
pobres, dos sofredores, dos injustiçados, sofremos, na alma, as suas dores, aceitamos
identificar-nos com eles e participar dos seus sofrimentos, a fim de melhor os
ajudar a conquistar a liberdade e a vida plena;
- Não temos medo de nos sujarmos ao pé dos pecadores,
dos marginalizados, se isso contribuir para os promover e para lhes dar mais
dignidade e mais esperança;
- Temos sido testemunha sérias e comprometidas do
programa em que Jesus Se empenhou e pelo qual deu a vida, nós que, pelo batismo,
aderimos a Jesus e recebemos o Espírito que nos capacitou para a missão.
O batismo do Salvador é o último ato da sua longa
preparação de 30 anos. Já é, publicamente, oferecido ao Pai, na Circuncisão, na
adoração dos magos e na Apresentação no Templo, e vem ainda oferecer-se nas
margens do Jordão. João Batista, como profeta autorizado de Deus, chama os
Israelitas para o batismo de penitência, para os preparar para o reino do
Messias.
Jesus não tem necessidade do batismo, tal como não
tinha necessidade da Circuncisão, nem da Apresentação, nem do resgate no
Templo. Mas, como vítima e como reparador, assume sobre si a responsabilidade
dos nossos pecados. Quer cumprir toda a lei antiga, que era uma lei de
purificação e de preparação. Recebeu o batismo, não para si, mas pelos homens,
seus irmãos. É mergulhado na água como símbolo de morte e de ressurreição. O
seu batismo simboliza e anuncia a sua morte real e a sua ressurreição, enquanto
o nosso exprime só a morte espiritual para o pecado e a ressurreição para a
vida sobrenatural. João queria opor-se ao batismo de Jesus, que nada tem a purificar,
mas Jesus respondeu-lhe que deve cumprir-se toda a justiça, que entende como a expiação
das nossas faltas.
***
Enfim, os cristãos e a Igreja estão chamados a ser
Epifania do Senhor no Mundo!
2024.01.08 – Louro de Carvalho
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