Um relatório do Tribunal de Contas (TdC),
aprovado a 21 de dezembro de 2023 e publicado a 5 de janeiro, conclui que a
venda da ANA – Aeroportos
de Portugal ao grupo francês Vinci, que arrancou em 2012, “não salvaguardou o interesse público” e foi assente
em várias irregularidades e “deficiências graves”, tendo descurado a concorrência no setor aeroportuário.
Dez
anos depois da privatização, sem que o processo tenha sido fiscalizado pelo TdC,
foi, agora, divulgado o relatório que analisa se o processo de privatização da
ANA – que decorreu entre 7 de setembro de 2012 e 22 de outubro de 2013 –
“salvaguardou o interesse público”.
A fiscalização do TdC à venda da ANA à Vinci foi solicitada pelo
Parlamento, em 2018, depois de ter sido aprovado um requerimento do Partido Socialista
(PS).
A venda foi fechada com um valor que ficou 71,4 milhões de
euros abaixo do que tinha sido “oferecido e aceite” e depois
de uma “avaliação intempestiva” à empresa concessionária
dos dez principais aeroportos nacionais, sem que tivesse sido realizada
uma “avaliação prévia”, para cálculo de um preço base, como era “legalmente
exigível”.
O TdC aponta “graves desconformidades e inconsistências”
detetadas no caderno de encargos, para as quais a Parpública não tem explicação, e
reveladoras de “risco material e falta de fidedignidade” dos documentos envolvidos no processo, “determinantes para escolha
do comprador”.
O processo de privatização da ANA – que decorreu, como foi referido, entre
7 de setembro de 2012 e 22 de outubro de 2013 –, ocorreu em contexto de “urgência”, sem que estivessem asseguradas “todas as
condições necessárias à sua regularidade e transparência”, o que
colocou o Estado numa posição de “fragilidade” negocial.
No relatório, que arrasa o processo de venda, lê-se que, em 2012, o Estado “concedeu à Vinci” os dividendos da ANA desse
ano, que ascendem a 30 milhões de euros, “quando a gestão ainda era pública” e
“suportou o custo financeiro da ANA, para cumprir o compromisso assumido no
contrato de concessão”, – os juros, comissões e impostos, no valor de 41,4
milhões, que foram pagos pelo empréstimo de 800 milhões, concedido à empresa,
para pagar a primeira prestação do pagamento inicial pela concessão, o que fez
baixar o preço da privatização para 1.127,1 milhões, ficando 71,4 milhões de
euros abaixo dos 1.198,5 milhões de euros, valor que tinha sido “oferecido e
aceite”.
Os juízes conselheiros, que tecem ainda críticas ao processo. no atinente à
concessão dos aeroportos, sinalizando “desequilíbrio dos contratos a
favor do comprador”, referem que o Estado “privilegiou o
potencial encaixe financeiro” com a venda da empresa “no curto prazo”, em “detrimento” de garantir um “equilíbrio na
partilha de rendimentos com a concessão de serviço público aeroportuário” a
“longo prazo”.
Acresce que a privatização “comportou a concessão de um
monopólio fechado por 50 anos”, prorrogável, com uma “proposta de Novo
Aeroporto de Lisboa de direito exclusivo da concessionária” e num
setor que é “estratégico, para a economia do país”, tendo havido um “desperdício da oportunidade” para “benefícios da
concorrência”.
A prorrogação do prazo da concessão está, pois, associada à construção do
novo aeroporto de Lisboa (NAL), daí resultando que o
contrato de concessão seja “longo e incerto no seu termo”, representando “riscos acrescidos” com uma “única
entidade privada encarregue da gestão de todos os principais aeroportos por um
período tão extensível e sem termo conhecido à partida”.
Por isto, os juízes sustentam que a privatização “não salvaguardou o interesse público”, não tendo sido “maximizado
o encaixe financeiro” da venda da totalidade do capital social da
ANA, por não ter sido “minimizada a exposição do Estado aos riscos” da
venda e por não ter sido reforçada a “posição
competitiva” da ANA, “em benefício do setor da aviação civil portuguesa, da
economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias” geridas
pela concessionária.
Até 2012, a ANA era detida na totalidade pelo Estado, através de uma
participação direta da Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), com 31,44%
do capital, e de uma participação indireta da Parpública de 68,56%. Com o
processo de privatização em curso, em janeiro de 2013, a Parpública comprou a
participação da DGTF, pagando cinco euros por cada ação, com a operação a
totalizar 363,78 milhões de euros.
A venda da ANA à Vinci aconteceu quando Portugal estava, desde 2011, sob
resgate financeiro com o governo, então liderado por Passos Coelho, a lançar,
por imposição da troika, um programa
de privatizações. Nesse período, foram vendidas mais de 12 empresas públicas e
participações detidas pela Caixa Geral de Depósitos (CGD), com o Estado a
encaixar uma receita bruta que rondou os 10 mil milhões de euros.
Os juízes conselheiros salientam que a venda da ANA contraria a
tendência “da maioria” dos países da União Europeia (UE), lembrando que,
em 2010, dos 306 aeroportos da UE 237 (77%) eram geridos por entidades
públicas, 43 (14%) por entidades com capital misto e apenas 9% (26) por
privados. E, apesar de, em 2016, se assistir, na UE, ao “crescente
envolvimento” de privados na gestão dos aeroportos, além de Portugal, só três
países (Chipre, Hungria e Eslovénia) “tinham todos os seus aeroportos entregues
a entidades privadas”.
O novo secretário-geral do PS Pedro Nuno Santos, ex-ministro das
Infraestruturas, não comenta o relatório, que promete animar a pré-campanha
para as eleições legislativas, mas, em 2020, em entrevista ao Expresso, qualificou a venda da
concessionária dos aeroportos como o “negócio de privatização mais danosa de
sempre”, para o Estado e para o interesse público.
***
Na hora da votação do texto apresentado pelo
relator, os juízes conselheiros dividiram-se, sobretudo na parte que aponta
para a falta de controlo do Estado nas receitas da concessão e na recomendação ao governo
para, num prazo de seis meses, deixar de “omitir das
contas públicas a receita das taxas aeroportuárias”.
Do elenco de nove juízes
conselheiros, incluindo o relator José Manuel Quelhas, que votaram o relatório,
a 21 de dezembro de 2023, três votaram
vencidos e apresentaram declaração de voto.
Foi o
caso de Ana Margarida Furtado, juíza
conselheira desde 2017, que tem responsabilidades na área da despesa e dívida
pública e na coordenação do parecer sobre a Conta Geral do Estado e que, de
acordo com o currículo publicado no
site do TdC, entre 2012 e 2014, ou seja, durante o governo
de Passos Coelho, ocupou funções como
subdiretora-geral do Gabinete de Planeamento, Estratégia e Relações
Internacionais do Ministério das Finanças.
Na declaração de voto, considera “não existir suficiente
fundamentação” para o tribunal concluir que a privatização não garantiu o
“reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA,
em benefício do setor da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos
utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias geridas” pela
concessionária. Além disso, entende que, nas conclusões, “em prol da completude
e equilíbrio”, devia constar a referência sobre o mecanismo de partilha de
receitas da concessão com o Estado, defendendo que, “por um lado, beneficia a
receita pública no horizonte temporal negociado e contratualizado”, e, “por
outro, a sua existência reforça a importância a dar ao respetivo controlo
público eficaz”.
Luís Filipe Viana, juiz conselheiro do TdC desde junho
de 2021, na sua declaração de voto, sustenta que as taxas
aeroportuárias são receitas da concessionária, não podendo ser consideradas
como receitas públicas, pois a ANA “está fora do perímetro
das administrações públicas”, sendo “empresa com
controlo acionista privado”. No entanto, salienta que a “partilha de receitas na concessão com o
Estado é, sem qualquer margem de dúvida, receita pública”.
Luís Filipe Viana tem como
área de responsabilidade a Saúde, Segurança Social, Emprego, Formação
Profissional, Demografia, Organização e Gestão de Recursos na Administração
Pública. Antes de chegar ao TdC, entre 2019 e 2020, esteve no Conselho de
Finanças Públicas (CFP), depois de, durante sete
anos, entre 2013 e 2019, ter ocupado funções no Ministério das Finanças como
subdiretor-geral do Orçamento e como coordenador da Unidade de Implementação da
Lei de Enquadramento Orçamental.
Por sua vez, Maria da Conceição Antunes, juíza
conselheira desde 2017, votando contra, apontou a “inexistência” de “fundamentos sobre os quais
se sustentam as apreciações” de incumprimento das normas legais necessárias para
o processo de privatização, como é o caso da “falta de
avaliação prévia”, para fixar um valor mínimo para a venda da ANA, e que era
“legalmente exigível”, com a juíza a defender que as conclusões do TdC revelam
“insuficiente precisão”.
Além disso, diz que se fez “apreciação de decisões políticas que
não cabe ao tribunal apreciar”.
O relator José Manuel
Quelhas, juiz conselheiro desde 2017, já foi responsável por vários relatórios
de fiscalização a dossiês quentes. Foi o
relator das duas auditorias ao Novobanco, que teceram duras críticas ao governo
e ao Fundo de Resolução, por considerar que não foi
salvaguardado o interesse público, na forma de lidar com a instituição bancária
herdeira do Banco Espírito Santo (BES). E, no verão de 2023, foi ouvido pela comissão parlamentar de
inquérito (CPI) à tutela política de gestão da TAP Air Portugal, chamado pelo Partido Comunista Português (PCP),
por ter sido o responsável pela auditoria à privatização e recompra da TAP, na qual o TdC não apontou
irregularidades ao uso dos fundos Airbus por David Neeleman.
***
O
Partido Social Democrata (PSD) reagiu, criticando a ausência de contraditório,
o que não corresponde à verdade. Com efeito, nos termos do texto integralmente publicitado
no site do TdC, foi solicitado o
contraditório às várias entidades envolvidas no processo, sobre o que o
tribunal fez a respetiva apreciação. A própria ANA, que foi ouvida, limita-se a
referir que não concorda com algumas das conclusões.
Não digo que o relatório
seja político, e não técnico, como atira o PSD, mas percebe-se o desconforto de
alguns juízes conselheiros da 2.ª Secção (a que emitiu o relatório) que exerceram
cargos no período da troika.
Já o PCP, como revelou, em primeira
mão, o secretário-geral, a 6 de janeiro, num comício na Maia, no distrito do
Porto, vai propor a realização de uma comissão
parlamentar de inquérito (CPI) à privatização da ANA, logo após as eleições
legislativas de 10 de março.
Paulo Raimundo salientou que, em nove anos, os donos
da ANA ganharam 1.400 milhões de euros, mais do que o que tinham pago pela
empresa. “Pior ainda, se nada for feito, até 2062, esta multinacional irá
embolsar mais de 20 mil milhões de euros para os seus acionistas, 20 mil
milhões que dariam para construir aeroportos, escolas, hospitais e que, em vez
de ficarem no país, engrossarão a conta bancária de uns poucos”, atirou. Falando
numa “vergonha, num crime e num assalto aos recursos nacionais”, considerou que
se a privatização dos aeroportos foi um escândalo, escândalo maior seria
permitir que esse “assalto ao país” continuasse até 2062, e defendeu que se
impõe acabar com a “ruinosa privatização”, tendo o Estado português, não só o
direito, mas o dever de agir para recuperar para o país o que nunca deveria ter
sido entregue a uma multinacional.
***
Penso que é necessário que o Parlamento inquira e dê a
público o que se passou com esta privatização, para o que será útil uma CPI,
pois quem não deve não teme e quem foi responsável deve restar contas. Porém, é
de aguardar pelas conclusões de uma segunda auditoria, que o TdC vai iniciar, sobre a gestão
de infraestruturas aeroportuárias e cujo relatório se prevê para o segundo
semestre do corrente ano de 2024.
2024.01.07
– Louro de Carvalho
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