Foi promulgado e publicado o
Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro, que procede à reforma e simplificação
dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e
indústria, em torno do qual está nas pantalhas do debate a conveniente
polémica.
O governo, designadamente o
primeiro-ministro e o ex-ministro das Infraestruturas, estão a ser apontados
de, com este diploma, incorrer em crime de prevaricação por favorecimento ao
grupo empresarial responsável pelo Data
Center de Sines e quejandos.
O Ministério Público (MP), em sede de
recurso sobre as pedidas de coação decretadas pelo juiz de instrução (JIC) da
Operação Influencer, aponta João Galamba, ex-secretário de Estado da Energia e
ex-ministro das Infraestruturas de ser o mentor e o responsável de todo o
conluio. Por outro lado, o processo em curso no Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), que visa o PM, iniciou-se a 17 de outubro, quando o referido diploma foi
apresentado ao Conselho de Ministros a 19 de outubro, para discussão e
aprovação, o que deixa entrever fuga de informação para o MP.
O diploma foi aprovado pelo governo no
uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 50/2023, de 28 de agosto,
no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 31/2014, de 30
de maio. Porém, alguns observadores sustentam que a norma que azou a polémica
não consta do teor da lei de autorização legislativa. Ou eles ou eu não estamos
a ler bem essa lei e o decreto-lei em causa. É óbvio que a letra da lei de
autorização legislativa é mais contida do que o teor do decreto-lei produzido
ao abrigo dessa lei da Assembleia de República (AR).
O ponto de discussão é a alínea h) do
n.º 1 do decreto-lei, que estabelece a “flexibilização dos termos em que pode
ser aceite o pedido do prazo de execução das obras, através da eliminação de
que este apenas possa correr por uma única vez e do limite de a prorrogação não
poder ser superior a metade do prazo inicial”. Diz o Presidente da República
(PR) que esta norma foi corrigida, face à apresentada no texto original, pelo
que o diploma, na versão original (cujo teor não se conhece), fora objeto de
veto político. Não obstante, mantém-se o preâmbulo, que explicita o sentido do
articulado. Quero dizer que são responsáveis todos os intervenientes: governo,
AR e PR.
***
O
jornal Público, de 10 de janeiro,
publicou um artigo de opinião de Vitalino Canas, professor da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa, a comentar esta matéria na ótica académica,
começando por dizer que, em exames de Direito, os professores equacionam
problemas práticos, de realidade e ficção, que os alunos devem resolver, sendo,
não raro, a realidade mais criativa do que a imaginação, como demonstra a “lei
malandra”, expressão que resulta de uma suposta conversa escutada entre
alegados preparadores do decreto-lei em causa.
Diz
Vitalino Canas que se trata de um decreto-lei do governo, aprovado em Conselho
de Ministros (CM), no exercício da função legislativa, sujeito a promulgação
pelo PR, e que o processo legislativo, no governo obedece a trâmites e
formalidades decorrentes da Constituição e do Regimento do Conselho de Ministros,
sendo possível refazer, a posteriori,
o que foi proposto pelo membro do governo que teve a iniciativa e a versão
apreciada na reunião de Secretários de Estado e na reunião do CM, que a
apreciou e aprovou.
Contudo,
é difícil compreender o que sucede nos intervalos desses momentos formalizados:
quem foi o promotor de alterações, com que fundamento, como foram discutidas e
aceites. E podem ocorrer alterações após a aprovação pelo CM. Tal falta de
transparência no exercício de um poder soberano deve ser corrigida, para garantia
de que o processo legislativo do governo será tão translúcido como o da AR,
pelo menos a posteriori.
Segundo
o Professor, a obscuridade adensa-se, quando o decreto transita para Belém,
para promulgação, nos termos do artigo 136.º, n.º 4, da Constituição. Com
efeito, é usual entre os serviços do PR e a Presidência do Conselho de
Ministros (PCM), se o decreto é controverso, tentar-se evitar o veto
presidencial, com o diálogo sobre esclarecimentos e emendas que o decreto deve
sofrer para superar dúvidas do PR.
Envolvem-se
no diálogo os membros do governo diretamente interessados, em razão da matéria,
membros da PCM e, eventualmente o PM. O diploma, em princípio, não volta ao CM,
implicando que a versão que sai no Diário
da República, dada como aprovada em CM, promulgada pelo PR e referendada
pelo governo, é diferente da que foi submetida a Conselho de Ministros. Isto,
que não devia acontecer (todo o decreto-lei deve provir do CM e não de alguns
como com Salazar) levanta uma questão ao MP: “Como é que se pode provar, neste
contexto, um eventual crime de prevaricação?” E levanta uma questão aos alunos:
“Essa prática é conforme com a Constituição?”
Porém,
no caso em apreço, não aconteceu bem assim. O PR deu a conhecer que vetou o decreto.
Se assim foi, ocorreu o que determina o artigo 136.º, n.º 4, da Constituição: o
PR terá comunicado ao governo, por escrito, o sentido do veto, estando tal
facto, documentado e datado. E o governo aprovou, em CM, como é imperativo constitucional,
novo decreto, correspondendo às observações do PR, remetendo-lho para promulgação.
E a questão para os alunos é: “Se assim não tiver acontecido, o decreto-lei
publicado é constitucionalmente válido?”
Todavia,
mais relevante, do ponto de vista constitucional, é o seguinte: a produção de
um decreto-lei é da competência legislativa do governo. A função legislativa é
uma função soberana que se exerce livremente, apenas limitada pela Constituição
e, excecionalmente, por lei reforçada. Daí resulta que a única censura a
dirigir ao processo de elaboração, aprovação, conteúdo e forma de uma lei é a
sua desarmonia com a Constituição. Se há favor a alguém, pode haver violação do
princípio constitucional da igualdade. Porém, tal desarmonia cabe aos tribunais
e, em última análise, ao Tribunal Constitucional (TC), em sede de fiscalização
da constitucionalidade.
Assim,
é de questionar como pode um órgão legislativo (neste caso, o governo, mas podiam
ser a AR e as assembleias legislativas regionais) “ser investigado, indiciado,
acusado e eventualmente condenado por qualquer crime de responsabilidade, designadamente
o de prevaricação, no exercício da função soberana de legislar”. E, ao mesmo
tempo, é de perguntar como pode um membro de órgão legislativo colegial ser
investigado, indiciado, acusado e, eventualmente, condenado por um crime,
designadamente de prevaricação, no exercício de um poder que lhe cabe formalmente,
enquanto membro do órgão legislativo.
***
O constitucionalista
Vital Moreira, no blogue “Causa nossa” chama a atenção para a relevância do
artigo de Vitalino Canas sobre o diploma de simplificação do procedimento de
licenciamento administrativo na área da habitação e do urbanismo, que se
tornou famoso, por o MP o ter invocado como prova na Operação Influencer.
Limita o comentário ao procedimento legislativo, pois sabe-se que a versão originária
do diploma foi objeto de veto presidencial, mas não se conhece a versão aprovada
em CM, por tais textos não serem publicados, como não se conhece o teor do
veto, nem a sua fundamentação (os vetos de diplomas governamentais não são
publicados). Além disso, é provável que, seguindo prática instituída desde há muito,
a versão final, resultante de alteração na sequência do veto, não tenha ido ao
CM.
Diz Vital
Moreira, como Vilarinho Canas, que, além da inconstitucionalidade da aprovação
da versão final à margem do CM, este modelo de aprovação dos diplomas
governamentais “ afronta a regra da transparência e da publicidade do procedimento
legislativo num Estado de direito constitucional, que o distingue,
essencialmente, da arcana praxis legislativa própria do ‘Estado Novo’ (e do
‘Antigo Regime” pré-constitucional)”.
É provável
que, seguindo outra prática, de há muito, a versão definitiva tenha sido
“negociada” entre a PCM e Belém, após reservas do PR à versão inicial, não
expressas através de veto formal.
Também aqui
há desvio das regras constitucionais sobre o exercício do poder legislativo, de
que o PR não é cotitular, só lhe cabendo o poder de veto fundamentado
politicamente, e não o de propor alterações aos diplomas governamentais,
tornando-se colegislador e corresponsável por eles, à margem da separação de
poderes. Como não lhe cabe intrometer-se no exercício do “poder executivo”
do governo, nem no poder legislativo da AR, muito menos o poder moderador
não lhe confere credencial política para interferir no poder legislativo da AR
ou do governo, a não ser através do poder de veto, exercido nos termos da
Constituição.
***
Entretanto,
a 8 de janeiro, um
dia depois de ter sido fortemente atacado no Congresso do Partido Socialista
(PS), o PR revelou que, a 5 de novembro, dois dias antes do pedido
de demissão do PM, o governo tentou que a “lei malandra” (que alegadamente
favorecia o licenciamento da Start Campus em Sines) fosse promulgada com esse
conteúdo, mas que Belém a “devolveu” à PCM. Depois, acabou por a promulgar
porque o governo alterou o diploma.
Marcelo Rebelo
de Sousa revela, em comunicado, que recebeu, depois, a 27 de dezembro, nova
versão – já depois do anúncio da dissolução da AR e das eleições diretas do PS –,
“que reduz, significativamente, as questões mais controversas do diploma”,
agora “limitadas a simplificações com repercussão direta na promoção de mais
habitação, matéria de grande prioridade”. Ou seja, com a nova versão deixa de
ser possível que a empresa de Sines seja criada sem licenciamento, como
acontecia na anterior versão. Assim, o PR deixa claro que não deixou passar a
lei malandra, tendo promulgado uma lei sem o conteúdo polémico. Esta lei, ou
seja, o Simplex do licenciamento urbanístico e industrial, foi aprovada inicialmente
pelo CM, a 19 de outubro de 2023.
O PR explicou
que, só a 9 de novembro (contradição de datas), é que recebeu, em Belém, a
primeira versão aprovada em CM. Entretanto, acrescenta que, dentro deste
processo, o governo decidiu “autonomizar” a parte do diploma que se referia à
transposição de uma diretiva europeia e que não afetava em nada a questão do data center, salientando que a promulgou
a 5 de dezembro, tendo sido publicada em Diário
da República, no mesmo dia.
Quanto à
outra parte do diploma, a que está sob suspeita no âmbito da Operação Influencer, o PR revela que a devolveu à
PCM, a 15 de dezembro. “Tendo em conta [...] as dúvidas e controvérsias
relativamente ao diploma, em particular as partes relativas ao licenciamento
industrial, este foi devolvido à Presidência do Conselho de Ministros (PCM)”,
refere o comunicado, acrescentando: “A 27 de dezembro de 2023, deu entrada na
PR uma nova versão do diploma, em relação à qual o governo informou que foi
expurgada a parte relativa à diretiva, a matérias relativas a processos em
curso, ao licenciamento industrial, mantendo, apenas, as relativas ao urbanismo
e ao ordenamento do território. Mantinha assim, designadamente, a parte da
simplificação relativa às operações urbanísticas particularmente relevantes no
domínio da habitação.”
O PR
esclarece que a nova versão mantém a possibilidade de isenção para operações
urbanísticas em parques industriais, desde que feitas por “entidades públicas”.
Significa isto que, segundo o Presidente, nesta versão, foi excluída a
possibilidade de uma empresa privada ter isenção de pedido de licenciamento,
como tentou o PS na sua versão. E o site da
Presidência da República: considera: “Tendo o governo
submetido uma nova versão que reduz, significativamente, as questões mais
controversas do diploma, que ficaram, agora, limitadas a simplificações com
repercussão direta na promoção de mais habitação, matéria de grande prioridade,
o Presidente da República, aguardando o anunciado futuro Código da Construção,
promulgou o diploma do governo, que procede à reforma e simplificação dos
licenciamentos no âmbito do urbanismo.”
***
Bonito serviço! Num regime presidencialista, o PR não faria melhor:
interferir no processo legislativo, ser porta-voz do legislativo e do executivo
e fazer a transparência que incumbe aos outros órgãos de soberania, sem que as
revelações que faz tenham qualquer utilidade, pois os meandros da governação
ficam por desvendar e por corrigir. É só falar.
2024.01.11 –
Louro de Carvalho
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