Estalou
a polémica sobre as declarações do Presidente da República sobre a ida de
algumas figuras gradas do poder político ao Catar (ou Qatar), para assistir ao
primeiro jogo da Seleção Portuguesa de Futebol, no âmbito do Campeonato Mundial
de Futebol, que ali se realiza pela primeira vez.
A questão não
é nova, antes se levantou quando a FIFA (Federação Internacional de Futebol ou
Federação Internacional de Futebol), ficando, pelo menos, no ar a suspeita de
que a escolha fora obtida a troco de dinheiro, com sacrifício do evento, por se
realizar no inverno.
É sabido que este
país árabe – conhecido oficialmente como um emirado do Oriente Médio, ocupando
a pequena Península do Catar, na costa nordeste da Península Arábica –
viola sistematicamente os direitos humanos. Com efeito, trata-se de um
emirado absolutista e hereditário liderado pela Casa de
Thani desde meados do século XIX, sendo as posições mais importantes do Estado ocupadas por membros ou grupos
próximos da família al-Thani.
O nome Catar deriva
de Qatara, provavelmente a antiga cidade de Zubarah, importante
porto comercial e cidade da região. O termo “Qatara” aparece, pela
primeira vez, num mapa do mundo árabe, de Ptolomeu. Os gentílicos de Catar
são “catarense” e “catariano”.
Foi um protetorado
britânico até à independência firmada em 1971. Em 1995, o xeque Hamad
bins Khalifa Al Thani depôs o pai num golpe de Estado e guindou-se a emir.
Desde 1971,
tornou-se um dos estados mais ricos da região, devido às receitas provindas
do petróleo e do gás natural (possui a terceira maior reserva mundial de
gás). O depósito de gás natural do Campo Norte, então o maior do
mundo, foi descoberto por volta de 1976 e o país foi um dos primeiros a
ter embarcações de gás natural liquefeito (GNL).
Antes da
descoberta do petróleo, a economia baseava-se principalmente na extração
de pérolas e no comércio marítimo. Na era do Califado Abássida, os
navios que viajavam de Baçorá para a Índia e para a China faziam escalas
nos portos do Catar. Atualmente, segundo a revista Forbes, lidera a lista dos países mais ricos do mundo e está
classificado em 41.º lugar (logo após Portugal), na lista das Nações
Unidas de países com maior índice de desenvolvimento humano (IDH), e
em terceiro, no mundo árabe. A Freedom Hause (FH) considera-o um país
“não livre” e a Amnistia Internacional (AI) regista vários atropelos aos
direitos humanos.
Desde a
primeira Guerra do Golfo, em 1991, é um importante aliado militar
dos Estados Unidos da América (EUA) e abriga uma importante base militar.
Da sua
população, estimada em 2,8 milhões de habitantes, apenas 313 mil são nativos
catarianos (cerca de 11,2%), sendo os demais trabalhadores estrangeiros, especialmente
de outras nações árabes, do subcontinente indiano, do Sudoeste Asiático e de outros
países.
***
O embaixador
de Portugal no Catar foi, por várias vezes, criticado por branquear ou
desvalorizar a forma desumana como são tratadas as mulheres e as crianças, a
perseguição sistemática aos e às homossexuais e a transexuais e as condições
desumanas impostas aos trabalhadores, de que resulta o cansaço, a doença e a
morte. Os números conhecidos de mortos em acidentes de trabalho (?), sobretudo na
construção dos estádios para este campeonato mundial e na abertura de estradas,
apontam para mais de 6500 mortos.
São
conhecidas as condições impostas a quem anda nas ruas e a quem entra nos estádios,
exigências das autoridades do emirado, bem secundadas pela FIFA.
Apesar de
várias situações de protesto e de não disponibilização de ecrãs gigantes em praças
de alguns países, as várias seleções participam no evento.
Há uns anos
a esta parte, as autoridades portuguesas habituaram-se a acompanhar a seleção nacional
nestes certames internacionais. Quem não se lembra do apelo dramático de Ferro
Rodrigues, então presidente do Parlamento, a que enchêssemos o estádio de
Sevilha, em tempo de pandemia? É certo que recuou e nem ele nem o Presidente da
República marcaram presença.
Agora, o
problema não é a pandemia. O problema é a guerra e o petróleo. Não tenhamos
dúvidas. Porém, enquanto a pandemia aconselhava a não encher os estádios, as circunstâncias
atuais são apelativas ao seu enchimento.
Por isso,
apesar dos protestos das opiniões contrárias de alguns influenciadores, Marcelo
Rebelo de Sousa, Augusto Santos Silva e António Luís Santos Costa – as três figuras
cimeiras do Estado vão ao Catar “apoiar” a seleção nacional.
O presidente
da Assembleia da República e o primeiro-ministro limitam-se ao foco na equipa,
referindo que a sua atitude não significa aprovação do regime político em causa
(o primeiro-ministro ainda declarou que a intenção de Marcelo não era
menosprezar os direitos humanos: o Presidente agradece). Porém, o Presidente da
República reconhece que há desrespeito dos direitos humanos, mas, num registo infeliz,
ainda que informal, manda esquecer isso e focar-se na equipa. Depois, emendou a
mão, referindo que sempre defendeu os direitos humanos e que, desta vez, também
o fará ao participar num fórum sobre educação e saúde, promovido por uma ONG (organização
não governamental).
Não vale dar
o exemplo da China. Aí falou, apesar de o anfitrião ter feito orelhas moucas,
mas era uma visita de Estado, em que dispunha, como tal, de uma certa
liberalidade. Desta feita, não se trata de uma visita de Estado, mas de um
apoio caseiro e de um fórum de âmbito privado.
Quero dizer
que, se o chefe de Estado não fosse tentado a falar ao virar da esquina, sem a suficiente
reflexão, talvez não caísse em dizeres infelizes. Não é esta a primeira vez que
isso acontece. E, se em relação ao futebol, se contivesse pela receção protocolar
à seleção nacional, antes da partida e/ou antes da chegada, ou se assistisse a
um evento destes realizado em Portugal, não estaríamos a discutir questões
presidenciais de futebol.
Poderiam
estas altas figuras do Estado invocar a política de não ingerência interna para
a sã convivência internacional e para as relações diplomáticas, mas preferiram suspender
a luta pelos direitos humanos. Aliás, o Ocidente, em nome dos valores, espia,
fornece armas, faz a guerra, decreta sanções, mata sem julgamento. Há armas e
mortes boas!
Contudo, há
um pormenor a registar. O Parlamento, pelos votos do Partido Socialista (PS),
do Partido Social Democrata (PSD) e do Partido Comunista Português (PCP), dá assentimento
a que o Presidente vá ao Catar.
A guerra na Ucrânia,
iniciada pela Rússia, pôs em evidência a crónica dependência da Rússia por parte
dos países da União Europeia (UE) quanto ao petróleo, ao gás natural e também a
minérios e a cereais (neste aspeto, também da Ucrânia). As sanções impostas à
Rússia pelo Ocidente (EUA, UE e Reino Unido) obrigam à demanda de outros
fornecedores de petróleo e de GNL. Nada melhor do que não afrontar a autoridade
do líder do potencial grande fornecedor de petróleo e de gás natural
liquefeito.
Por ironia
do destino, os direitos humanos cessam ou eclipsam-se ante o dinheiro e ante os
bens de que a civilização necessita, pelo menos enquanto a descarbonização e a redução
drástica dos combustíveis fósseis não se concretizam – concretização travada
pela generalidade dos países, com exceção de Portugal, “nação valente e imortal”.
2022.11.21 – Louro de Carvalho
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