As declarações do Presidente da República (PR) a propósito da sua ida ao Catar, por ocasião do Mundial de Futebol 2022, aumentaram críticas ao chefe de Estado.
O atual inquilino de Belém cumprirá, a 9 de março próximo, o sétimo ano da sua primeira tomada de posse como Presidente da República, cargo para que foi eleito, pela primeira vez, a 24 de janeiro de 2016, com 52% dos votos na primeira volta, proeza que repetiu a 24 de janeiro de 2021, mas, desta feita, com 60,66% dos votos, também na primeira volta.
Há mais de 20 anos, quando liderava o Partido Social Democrata (PSD), Marcelo Rebelo de Sousa sustentava a ideia de o mandato presidencial ser único e durar sete anos. E disse-o, sem margem para dúvidas, em janeiro de 2014, em conversa com Judite de Sousa na TVI: “Dez anos para um Presidente [são] demais.” Mas na, Assembleia Constituinte, defendera os dois mandatos.
Estava, então, em análise o desempenho presidencial de Cavaco Silva, cuja popularidade estava em declínio, mercê de algumas declarações proferidas no âmbito da crise (por exemplo, sobre a exiguidade da reforma do casal presidencial, sobre a eventualidade da saída da Grécia da Zona Euro, etc.), da forma como os governantes respondiam às dificuldades, da sua geral cumplicidade com os diplomas do Parlamento e do Governo, pela via da promulgação, e pela forma como pensava resolver a crise política gerada pela demissão “irrevogável” de Paulo Portas, na sequência da estrondosa demissão de Vítor Gaspar da pasta das Finanças e da indigitação de Maria Luís Albuquerque para lhe suceder, sem consulta prévia ao líder do segundo partido que integrava o Governo. Porém, o que vale para uns tem de valer para outros, pois os tempos mudaram.
A ideia do mandato único de sete anos parece vir a propósito do presente desempenho do cargo por Marcelo Rebelo de Sousa.
O que disse e a forma como o fez à ministra da Coesão Territorial mostram um uso do poder, que não lhe compete, e um, pelo menos aparente, desconhecimento da orgânica do Governo:
“Queria dizer-lhe duas coisas. Este é um dia superfeliz, mas há dias superinfelizes. E verdadeiramente superinfeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo.”
O ministro não responde diretamente perante o chefe de Estado, mas perante o primeiro-ministro, que tem a obrigação de informar periodicamente o Presidente da República sobre a governação. Ademais, cabe ao Parlamento e ao Tribunal de Contas a fiscalização da execução física e financeira dos projetos que envolvem dinheiro público, não à Presidência da República. Qualquer crítica que lhe apraza fazer tem lugar nos contactos institucionais com o primeiro-ministro e no recurso a mensagens a enviar ao Parlamento.
Como é seu hábito, quando notou que não esteve bem, disse aos jornalistas que se referia ao PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), cuja monitorização cabe à ministra da Presidência, que não à destinatária do esquisito e equívoco ralhete. Todavia, não é a primeira vez que o PR põe em questão ministros. Fê-lo claramente com Mário Centeno, de forma estrondosa e “bem-sucedida”, com Constança Urbano de Sousa e, de forma hesitante e sem êxito, com Eduardo Cabrita.
Sobre os abusos na Igreja alvitrou, ao virar da esquina: “Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado.” Passados alguns dias, emendou o que não devia ter comentado: “A minha intenção não foi ofender quando disse o que disse, mas, se porventura entenderam, uma que seja das vítimas que está ofendida, eu peço desculpa por isso.”
A propósito do Mundial de Futebol 2022, comentou: “O Catar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal, mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa” Porém, ante o chorrilho de críticas – umas convictas, outras hipócritas – emendou a mão: “Naturalmente, eu, depois de manhã, estarei a falar de direitos humanos no Catar.”
Aliás, como era possível as autoridades máximas do país criticarem, agora, a falta de respeito pelos direitos humanos, quando aceitaram acriticamente a decisão da Federação Internacional de Futebol (FIFA) de realizar o Mundial naquele país, credenciaram a participação da seleção nacional e, como tantos outros países do Ocidente, sabem que têm lá as empresas a rasgar estradas e a contruir os estádios, provavelmente a engrossar a falta de respeito pelos direitos humanos, pelo menos na área do trabalho?
É também hábito do PR ser fácil em comentar o mérito ou o demérito do Governo nesta ou naquela matéria e, passado algum tempo, vir emendar a mão ou dizer, precisamente, o contrário. E facilmente promulga um diploma oriundo do Parlamento ou do Governo com reservas expressas publicamente, quase dando razões que tornariam difícil a promulgação.
Fez cair o látego da ameaça da dissolução parlamentar aquando da discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2022, como o fez confrontado com a hipótese – prontamente rejeitada – de o primeiro-ministro assumir um cargo europeu em 2024.
Não raro se lê que o PR se banaliza e banaliza a função, que esbanja a “gravitas” do cargo, que fala e torna a falar, que não o levam a sério, que diz que não disse o que disse, mas não queria dizer, que está velho e cansado, que faz o que não deve e não faz o que deve.
O PR, que referiu, na campanha eleitoral, que se recandidatara por causa da pandemia, reiterou-o recentemente a Francisco Pinto Balsemão, no podcast “Deixar o Mundo Melhor”, justificando que “a renovação é uma caraterística da democracia” e os anos do primeiro mandato “foram cinco anos brutais”. Por isso, entendia dever “dar lugar a outra pessoa, com a idade que já tinha”, com a forma como exerce a presidência: “com proximidade, que é um esforço físico brutal”.
Quem lhe acompanhou o final do primeiro mandato confirma que sempre partilhou dúvidas sobre se iria a um segundo mandato, mas há quem nunca tenha visto pouca verdade nisso, como há quem tenha percebido hesitações genuínas na cabeça do PR. Quem o segue de perto legitima a tese do desgaste e do cansaço. Aliás, é o que apontam aos primeiros-ministros mais duráveis: Cavaco Silva, António Guterres e, agora, António Costa. Chegaram desgastados aos sete anos.
É caso para perguntarmos como estará o país, a 9 de março de 2023, sete anos depois da sua entrada na chefatura do Estado. Estará à vista o fim da crise social, que parece estar a piorar, a insuficiência da aplicação dos milhões de fundos da União Europeia (UE), a pobreza, que tem cada vez mais pacientes, a falta de habitação e a incerteza do futuro dos jovens? E que fará o PR a partir de março de 2023? Marcelo Rebelo de Sousa não desiste, antes garante exigência, atenção e vigilância. Está a fazer aquilo de que gosta e que programou desde há muito.
Nos sete anos que chama de “brutais” e que foram singulares, herdou a geringonça, ajudou a segurar o sistema financeiro e a estabilizar a imagem do país na UE, levou com os fogos e com o líder, “otimista irritante”, de dois governos minoritários, que cederam o lugar a um governo maioritário do Partido Socialista (PS), por vontade inequívoca do eleitorado. Chegou a pandemia, o PSD, perdido em lutas internas e na ambiguidade, marcava passo, o Chega crescia e o Partido do Centro Democrático Social (CDS) ficou sem assento parlamentar e veio a guerra e a inflação histórica. Marcelo crê encontrar suplemento anímico “na espontaneidade e junto do povo”.
A ex-deputada do CDS, Inês Teotónio Pereira, no Diário de Notícias, coloriu o quadro assim: “Num país de fado, de inflação, de filas de trânsito, de gente chata e queixosa, Marcelo é o único que se diverte e que nos diverte. É como uma criança aos saltos, feliz da vida, num dia de chuva e cinzento. Ele é gafe atrás de gafe, é um livro de aventuras, uma série de suspense, uma sitcom, é o enredo vivo de revista à portuguesa sobre política.”
Já não tem nenhum desafio eleitoral pela frente. Provavelmente, seguirá o exemplo de Mário Soares, que fez dura magistratura de oposição ao cavaquismo, que se desgastou e se esvaziou. A agenda política do PR, por maior que seja o apoio institucional ao Governo, não faz esquecer o quadrante político de onde é oriundo. E, nos últimos tempos, tem aproveitado a maré.
O Presidente nem disfarça os planos que tem para quando deixar o palácio: viajar pelo mundo, voltar ao voluntariado, ser cuidador informal, puxar pelos jovens.
Entretanto, o tempo que lhe resta de mandato pode-lhe dar o ensejo de ver um PS desgastado e de poder acompanhar e até de estimular uma reviravolta à direita que vire o jogo político, desde que o PSD clarifique o programa e a metodologia. Seja como for, Marcelo Rebelo de Sousa, segundo o qual mais do que cinco anos é mau, vai cumprir os dez, arriscando a sua associação a uma década de sucessivas crises, com o PS ao leme e sem garantias de deixar um país muito diferente, ou vindo a gloriar-se de ter instalado em São Bento um poder legislativo e um poder executivo liderado pela “direita social”. Porém, o sonho é acabar como o “Presidente do povo”.
Luís Montenegro, evitando entrar na onda de críticas, escuda-se na prática de não comentar as declarações do chefe de Estado. E o primeiro-ministro tem vindo em socorro do PR, mesmo nos casos mais delicados e nas suas atitudes mais verrinosas (apontando-lhe os diversos “momentos criativos” ou reconhecendo ao PR o direito de falar do que entender). Por sua vez, o chefe de Estado vem sendo gentil com António Costa, como sucedeu ao defendê-lo das acusações do ex-governador do Banco de Portugal.
No entanto, é pertinente o aviso que fez a Ana Abrunhosa, no sentido de que a política exige sacrifícios, ninguém é obrigado a esta atividade e quem a aceita tem de contar com isso, não podendo queixar-se. E, se aplicar a si o aviso, em vez de se queixar ou de se afirmar cansado, pode mudar de atuação e até renunciar. Não tem que, repetidamente, levantar o látego da dissolução parlamentar, como não tem de elogiar ou de cominar o Governo.
2022.11.26 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário