No
segundo livro dos Macabeus, ressalta o testemunho de sete irmãos deram a vida
pela sua fé, durante a perseguição movida contra os judeus por Antíoco IV Epífanes
(2Mac 7,1-2.9-14). E o que os motivou
e lhes deu força para enfrentar a tortura e a morte foi a certeza de que Deus
reserva a vida eterna aos que percorrem, com fidelidade, os seus caminhos nesta
peregrinação terrestre.
Também
Jesus, no Evangelho de Lucas, garante que a ressurreição é a realidade que nos
espera (Lc 20,27-38). Porém, não vale
a pena imaginar essa realidade à luz das categorias que marcam a nossa
existência finita e limitada. Não se trata de simples reanimação ou de reencarnação
noutro corpo de pessoa ou de animal ou numa planta. Antes, a nossa vida de
ressuscitados será uma existência plena, totalmente nova. E, embora a forma
como isso acontecerá seja um mistério, a ressurreição dos mortos é uma certeza
absoluta no horizonte do crente.
É
esta a temática decorrente da proclamação festiva e da meditação interiorizada
da Palavra de Deus que nos propicia a Liturgia da Palavra do 32.º domingo do
Tempo Comum no Ano C.
Vejamos
o contexto do passo bíblico veterotestamentário acima indicado.
Em
323 a.C., com a morte de Alexandre, o Grande, o império foi dividido pelos seus
generais (“diádokhoi”). E a Palestina (integrada no império desde 333 a.C.) ficou,
inicialmente, nas mãos dos Ptolomeus (que dominavam o Egipto e a Fenícia).
Depois, no ano 200 a.C., com a batalha das “fontes do Jordão”, passou para as
mãos dos Selêucidas. E, enquanto, o poder ptolomaico foi tolerante, respeitando
as tradições e a fé do Povo de Deus, sob a égide dos Selêucidas, a cultura
helénica tornou-se agressiva, ameaçando a sobrevivência do judaísmo. Sobretudo,
no reinado de Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), o helenismo foi imposto,
mesmo pela força, ao Povo de Deus, pelo que muitos judeus, firmes nas suas tradições,
foram perseguidos, torturados e mortos.
O
trecho veterotestamentário em referência relata o martírio de uma mãe e dos sete
filhos, por se recusarem a violar a fé e as tradições judaicas. Tratar-se-á de uma
tradição popular (embora com substrato histórico), transmitida oralmente antes
de ser integrada naquele livro dos Macabeus.
Não
temos informação do lugar do martírio, nem do nome dos sete irmãos. Sabemos,
porém, que o rei pretendia coagir, pela tortura, uma família de sete irmãos e
da mãe a abandonar a fé e a comer carne de porco, proibida por ser de um animal
“impuro”. Todavia, como o trecho o releva, foram claras e corajosas as respostas
destes irmãos, apostados na fidelidade aos valores judaicos e à fé dos pais e
pouco preocupados com as ameaças régias.
Segundo
as explicações colocadas pelo hagiógrafo na boca destes heróis, o que lhes dá a
coragem para enfrentar as exigências dos algozes é a fé na ressurreição ou,
literalmente, na revivificação eterna de vida. Tiveram a coragem de defender a
fé até à morte, porque acreditavam que Deus lhes devolveria a vida, uma vida
semelhante à que lhes ia ser tirada. De acordo com a catequese aqui plasmada, o
Deus criador tem, o poder de ressuscitar os mártires para a vida eterna. Não se
trata, ainda, da noção neotestamentária de ressurreição (vida nova, plena,
transformada e elevada à máxima potencialidade); é a ideia de revivificação, da
reaquisição, no Além, de uma vida semelhante à que foi tirada ao homem, embora
se cresse que, nesse mundo de Deus, não haveria pranto, nem sofrimento, nem
morte. Seja como for, está patente a ideia de imortalidade. Não obstante, o texto
não ensina a revivificação de todos os homens, mas só a dos justos.
É
a primeira vez que a doutrina da ressurreição é biblicamente explicitada. A
partir daqui, a ideia desenvolver-se-á até ser completamente iluminada pela
palavra e pelo exemplo de Jesus.
O
trecho evangélico em causa situa-nos em Jerusalém, antes da morte de Jesus, no contexto
das grandes controvérsias com os líderes judaicos, que representam, na ótica lucana,
a última oportunidade de acolher a salvação que Deus dá ao seu Povo. Nas
sucessivas discussões, vê-se que os líderes rejeitam a proposta de Jesus e
sobressai o quadro da paixão e da morte na cruz.
Os
adversários de Jesus são, nesta perícopa evangélica, os saduceus. Os saduceus
eram um grupo aristocrático, recrutado sobretudo entre os sacerdotes da classe
superior. Exerciam o poder à volta do Templo e dominavam o Sinédrio, embora, nessa
instituição, a sua autoridade não fosse absoluta a partir da chegada dos
fariseus aí. Ainda que limitada pela presença do procurador romano, a sua
importância política era real. Entendiam-se bem com o opressor, já que pretendiam
manter a situação, para não perderem os seus benefícios políticos, sociais e
económicos.
No
âmbito religioso, apenas lhes interessava a Lei escrita, a “Torah”, negando qualquer
valor à “Mishnah” (a Lei oral), essencial para os fariseus. Por consequência,
negavam algumas crenças e doutrinas admitidas nos ambientes populares frequentados
pelos fariseus. Assim, não aceitavam a ressurreição dos mortos, já que nenhum
versículo da “Torah” a mencionava. Porém, no conflito com os fariseus, estava
em causa uma determinada visão da sociedade e do poder. Os fariseus contestavam
a “democratização” da Lei promovida pelos fariseus e pelos escribas, visto que tirava
aos sacerdotes a autoridade de intérpretes da Lei. E, diante do povo, mostravam-se
distantes, severos, intocáveis.
A
questão central do trecho em causa gravitava à volta da ressurreição, tema que
nada significava para os saduceus. Sentindo o pensamento de Jesus próximo do
dos fariseus, apresentaram uma hipótese académica, a ridicularizar a crença na
ressurreição: uma mulher casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a
lei do levirato (o irmão do defunto que morreu sem filhos devia casar com a
viúva, para dar descendência ao falecido e para impedir que os bens da família
fossem parar a mãos estranhas. Quando
ressuscitarem, de qual dos irmãos será esposa? Foi a pergunta.
Antes
de mais, Jesus afirma que a ressurreição não é, como pensavam os fariseus, uma
simples continuação da vida deste mundo (uma revivificação, como em 2Mac 7,1-2.9-14), mas uma vida nova e
distinta, de plenitude, que dificilmente podemos entender a partir das nossas
realidades. Então, não se porá o problema do casamento. A expressão “são
semelhantes aos anjos” não é de depreciação do matrimónio, mas a afirmação de
que, nessa vida, a única preocupação é servir e louvar a Deus. O poder de Deus,
que chama os homens da morte à vida, transforma e assume a totalidade do ser
humano, pois nascemos para uma vida totalmente nova em que as nossas
potencialidades serão elevadas à plenitude. A nossa capacidade de compreensão
deste mistério é limitada, pois contemplamos e classificamos as coisas à luz
das realidades terrenas, quando a ressurreição ultrapassa em absoluto a nossa
realidade terrena.
Depois,
a resposta de Jesus constitui a afirmação da certeza da ressurreição. E, porque
não valia a pena apoiar-se em passagens recentes da Escritura (como Dn 12,2-3) que sugeriam a fé na
ressurreição (esses textos não tinham valor para os saduceus), cita-lhes a
“Torah” (cf Ex 3,6): no episódio da
sarça-ardente, Javé revelou-Se a Moisés como “o Deus de Abraão, de Isaac e de
Jacob”. Ora, se Deus Se apresenta assim – muitos anos depois de Abraão, Isaac e
Jacob terem desaparecido – é porque os patriarcas não estão mortos. Com efeito um
“morto”, ou seja, um homem reduzido a sombra inconsciente e privada de vida no
“sheol”, segundo a lógica semita, perdeu a proteção de Deus, pois já não existia
como homem vivo e consciente. Porém, na ótica de Jesus, os patriarcas não estão
reduzidos a sombras na obscuridade absoluta do “sheol”, mas vivem em Deus.
Portanto, se Abraão, Isaac e Jacob estão vivos, podemos falar em ressurreição.
E
Jesus, que ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, tinha garantido: “Quem come a minha carne e bebe o meu
sangue tem vida eterna, e Eu o ressuscitarei no último dia.” (Jo 6,54) E não só. Afirmou-se como a antonomásia
da ressurreição ao dizer a Marta, interpelando-a sobre a sua fé, antes da
ressurreição de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e
a vida; quem acredita em mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele
que vive e crê em mim jamais morrerá para sempre. Acreditas nisto?” (Jo 11,25-26).
Num
tempo em que se tem receio de contradizer a morte de Deus e, por consequência, de
sustentar o facto da sua revelação em Jesus Cristo, há ideia ténue sobre a
ressurreição. Muitos, mesmo dos que se dizem crentes, são tentados a pensar que
a vida termina no cemitério ou no crematório. Outros pensam na reanimação do
corpo ou na reencarnação noutro corpo humano ou animal ou numa planta. Pensam
que a ressurreição de Jesus não passa de metáfora. E, na evocação de um falecido,
dizem: “Lá de onde quer que esteja nos vê e ouve e ficará muito contente connosco.”
É,
assim, pertinente o enunciado paulino: “Se não há ressurreição dos mortos, também
Cristo não ressuscitou! Mas, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e
a vossa fé! E seríamos até considerados falsas testemunhas de Deus, porque
teríamos dado testemunho contra Deus, ao dizer que ressuscitou Cristo, a quem
não poderia ter ressuscitado, se os mortos não ressuscitam. É que se os mortos
não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, é
inútil a vossa fé; estais ainda nos vossos pecados. E, portanto, também se
perderam os que adormeceram em Cristo. Se esperamos em Cristo apenas para esta
vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Ora, Cristo ressuscitou de entre
os mortos, como primícias dos que estão adormecidos.”
Na
verdade, tantos deram a vida pela fé em Cristo. E o núcleo da fé é a ressurreição
e a vida plena.
***
Por
fim, é de considerar, entre o referido texto veterotestamentário, assumido como
primeira leitura, e o supradito trecho evangélico, um passo da Segunda Carta
aos Tessalonicenses, que alguns admitem não ser de Paulo e que vem servindo de
segunda leitura (2Ts 2,16-3,5).
A
carta coloca-nos ante uma comunidade cristã que vive, com empenho e
generosidade, o seu compromisso cristão apesar das provações, constituindo um
modelo para as comunidades vizinhas. Contudo, tem dúvidas e inquietações em
questões de doutrina, sobretudo no atinente ao “dia do Senhor” (segunda vinda
de Jesus). E Paulo aproveita o ensejo para fazer alguns pedidos, para corrigir
comportamentos e para exortar a uma fidelidade cada vez maior ao Evangelho.
Depois
de apresentar a doutrina sobre a segunda vinda do Senhor, convida os
tessalonicenses a assumir, entretanto, a atitude correta. Pede que guardem as tradições
recebidas “de viva voz ou por carta”, isto é, que se mantenham fiéis ao
Evangelho de Jesus que o apóstolo lhes transmitiu.
E
esse convite vem acompanhado de uma súplica a Deus Pai e a Jesus Cristo, para
que ajudem à fidelidade. Fica evidente que, no processo de salvação do homem,
há dois planos: o dom de Deus e o esforço de fidelidade do homem, sendo o
esforço do homem inútil sem a graça de Deus. Mas a fidelidade do Senhor
alavanca a nossa esperança e postula a nossa perseverança.
Depois,
há o pedido, aos destinatários da carta, de oração pelo apóstolo e pelo seu
ministério, correspondente à prece do apóstolo em favor desses destinatários.
Na verdade, a oração de uns pelos outros é preciosa forma de solidariedade
cristã. De resto, os crentes que receberam a Palavra libertadora de Jesus devem
solicitar a ajuda divina para que a salvação que Jesus trouxe e que a Igreja ficou
encarregada de testemunhar chegue a todos os homens, sobretudo se as
circunstâncias são adversas à proclamação e à vivência do Evangelho. Com
efeito, o papel de Deus é central: sem a ajuda de Deus, será impossível o
apóstolo dar testemunho. O testemunho é fulcral!
2022.11.06 – Louro de Carvalho
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