A
Solenidade de Todos os Santos, que celebramos a cada dia 1 de novembro, é uma
das marcas mais significativas do cristianismo. Com efeito, celebra a santidade
das pessoas e do povo cristão a que pertencem.
Pela
natureza divina de Jesus Cristo e por vocação, a Igreja é santa na sua essência
e origem, muito embora tenha a apoquentá-la, quase em regime de permanência o
pecado e até o crime. Neste sentido, a Igreja, que é santa na sua origem e na
sua finalidade, alberga, no seu seio, pecadores e é servida por pecadores, que
se servem, não raro, do seu estatuto de cristãos, traindo o ADN da própria
Igreja como Cristo a concebeu e deu à luz.
Celebrar
Todos os Santos não pode jamais circunscrever-se aos inscritos no catálogo dos/as
canonizados/as ou no dos/as beatos/as. Nem mesmo abrange também só aqueles e
aquelas que estão no céu. A Solenidade de Todos os Santos é a festa holística
da Igreja, santa na sua origem e na sua vocação. Com efeito, até à fundação das
comunidades dos seguidores de Cristo em Antioquia, todos os que aderiam à
pregação dos apóstolos e tentavam seguir os caminhos ditados pela fé eram chamados
“santos”. Só a partir de Antioquia é que os seguidores de Jesus Cristo passaram
a usar o apelativo de cristãos, porque o verdadeiro Santo de Deus é Jesus
Cristo. Contudo, nem por isso os cristãos deixam de ser considerados radicalmente
santos, visto que, pelo Batismo, participam no mistério da morte, ressurreição
e acessão do Senhor. E esse é o mistério pascal, o mistério de santidade, que
refulge no/a cristão/ã e na Igreja, enquanto comunidade querida e gerada por
Cristo, apesar das inúmeras mazelas e crimes que afetem os seus membros.
Não
vale, pois, contabilizar os casos de pecado e de crime, por poucos que fossem
ou por muitos que sejam (e são), que podem manchar o rosto cristão de qualquer
um/a e que, seja qual for o tempo, o lugar ou o agente, envergonham a
comunidade, que deve promover o arrependimento e o pedido de perdão, acompanhados
da emenda de vida e da adequada reparação, segundo a Justiça misericordiosa de
Deus e segundo a justiça humana, se for o caso de crime.
É
preciso referir que, muito embora os casos de crime, na Igreja e fora dela,
tenham sido apreciados segundo os critérios do tempo em que ocorreram (porque a
justiça não soube ou não quis agir segundo o direito), o juízo moral e social
deve ser o da condenação da ação errada e criminosa. A não ser assim, justificaríamos
a pena de morte, a escravatura, a tortura, o tráfico de pessoas ou de órgãos, a
guerra, a defesa da honra com a morte de membros da família, etc.
Em
todo o caso, celebrar Todos os Santos postula que se reserve lugar especial
para aqueles e para aquelas que já estão no Céu, mormente os/as que foram
propostos pela autoridade eclesial à veneração de toda a Igreja e de algumas
das suas comunidades locais, que funcionam como chamariz para a nossa ascensão,
de que não podemos distrair-nos enquanto peregrinamos neste mundo. Na verdade, o
prefácio da Solenidade faz-nos rezar: “Hoje nos
dais a alegria de celebrar a cidade santa, a nossa mãe, a Jerusalém
celeste, onde a assembleia dos santos, nossos irmãos, glorifica
eternamente o vosso nome. Peregrinos dessa cidade santa, para ela
caminhamos na fé e na alegria, ao vermos glorificados os ilustres
membros da Igreja, que nos destes como
exemplo e auxílio para a nossa fragilidade.”
Celebrar
Todos os Santos é pertinente para contrapor a santidade efetiva à iniquidade que
tenta minar, a cada passo, a vida e a atuação da Igreja, fazendo eclipsar tanto
bem que se vem fazendo em prol do bem comum, no aperfeiçoamento das pessoas, a consolidação
das comunidades, na promoção do bem-estar e no progresso harmonioso de todos,
no combate ao analfabetismo, na luta por saúde, educação, habitação, trabalho, proteção
social e segurança pessoal para todos.
Celebrar
Todos os Santos é sentirmos a fraternidade entre todos, vivos e defuntos, sentirmo-nos
filhos de Deus, graças ao amor que decidiu ter por nós, assumirmos como nosso o
património as bem-aventuranças, esperarmos ser recebidos no reino eterno, porque
tivemos a ousadia de procurar o Senhor e de branquear as nossas túnicas no
sangue do Cordeiro. É ter fé na Igreja, que tem origem divina, o que lhe dá a
garantia da perpetuidade ao serviço do Reino de Deus.
Se
a avaliássemos só pelas ações dos homens e das mulheres, nomeadamente pelos crimes
de abuso sexual de menores, pela Inquisição ou pelo comportamento de Papas e
Cardeais do Renascimento e seus colaboradores e colaboradoras, mais a assimilaríamos
a um ninho de víboras. Ou seja, pelas asneiras e erros de muitos dos seus servidores,
se não fosse a mão de Deus, já teria sucumbido há muito tempo. Attamen, praevalebit!
***
A celebração de Todos os Santos é uma solenidade, o grau supremo de
festividade na Igreja Católica, no rito romano, acima das festas, que vêm a seguir,
e das memórias, que vêm por último. E, para a Igreja em Portugal, como em
muitos países de tradição cristã, é dia Santo de preceito. Quer dizer, os
cristãos são santificados pela participação na Eucaristia e dão glória a Deus
pela participação na Eucaristia. É um dia como dizemos de “ir à missa”, mas em
que devemos assumir que “todos somos chamados à santidade”.
O padre João Peixoto, liturgista a diocese do Porto, afirma que “a Igreja
há já muitos séculos que promove celebrações conjuntas de Todos os Santos”, mas
frisa que as “pioneiras foram as Igrejas do Oriente já no século IV”, quando, no
contexto do tempo pascal, ou na semana subsequente, “os cristãos do Oriente
celebravam conjuntamente todos os santos, com destaque para os mártires que são
o modelo mais sublime da nossa participação da Páscoa do Senhor”. E explicitou:
“No Ocidente foi nos inícios do século VII com a dedicação do Panteão – lugar
de culto pagão a todas as divindades do Olimpo – como um lugar de culto
cristão, como uma Igreja que a celebração ganhou dimensão.”
O liturgista disse, a 1 de novembro, à Rádio
Renascença que o “Panteão foi dedicado à Santíssima Virgem e a todos os
mártires, em 13 de maio de 610” e que, “a partir daí, essa data começou a ser comemorada
anualmente”. Portanto, “o dia 13 de maio era o Dia de Todos os Santos Mártires
e dia da Santíssima Virgem, porque era o aniversário da dedicação dessa
Igreja”. Depois, as Igrejas locais começaram a fazer, em datas diferentes,
celebrações com o mesmo conteúdo, alargando a todos os santos e inclusive aos
santos não canonizados e aos não beatificados.
A data de 1 de novembro foi adotada, primeiro, na Inglaterra no século VIII
e passou, depois, ao império de Carlos Magno, talvez por influência do
“ministro Alcuíno” (Alcuíno de Iorque foi um monge, poeta, matemático e
professor inglês), que era de origem britânica. E é então que a data se tornou obrigatória
no reino dos Francos e, depois, se alargou a toda a Igreja, por vontade do Papa
Gregório III, celebrando os santos canonizados e os não canonizados. E é a
festa da felicidade, das bem-aventuranças, em conformidade com o Evangelho do
dia (MT 5,1-12a).
Para o Catecismo da Igreja Católica, “todos os fiéis cristãos, de qualquer
estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da
caridade. Todos são chamados à santidade.”
Já a Comemoração dos Fiéis Defuntos “é uma celebração de conteúdo diferente
e até fica bem na sequência”, segundo o padre João Peixoto, que lamenta o facto
de, “infelizmente, na nossa prática” haver “uma sobreposição pelo facto de o
dia 2 de novembro não ser feriado, ao contrário do dia 1, o que leva as pessoas
a aproveitar para ir aos cemitérios de véspera”.
O liturgista sublinha a ideia de que a Igreja nunca omite “a comemoração
dos fiéis que já partiram deste mundo marcados com o sinal da fé e que agora
dormem o sono da paz”, como se reza no Cânone Romano ou Oração Eucarística I,
porque “não há nenhuma celebração da eucaristia em que não sejam recordados
‘todos os fiéis defuntos, todos os que nos precederam desde o princípio do
mundo’”, como diz a Oração Eucarística II – outro lado da santidade nos membros
da Igreja.
Diz o antigo professor de Liturgia da Faculdade de Teologia da Universidade
Católica (Centro Regional do Porto, a ideia de consagrar um dia à oração pelos
defuntos se terá desenvolvido em ambiente monástico, tendo sido o abade de
Cluny, Santo Odilão, quem, já em finais do século X, determinou que todos os
mosteiros da sua ordem fizessem a comemoração de todos os Fiéis Defuntos no dia
a seguir ao da Solenidade de Todos os Santos.
O sacerdote adianta que “o costume se generalizou” e que “Roma o
oficializou no século XIV”.
Segundo
o ensinamento da Igreja, a intenção catequética da Solenidade de Todos os
Santos releva o chamamento de Cristo a cada pessoa para O seguir e
ser santa à imagem de Deus, a imagem em que foi criada e para a qual deve
continuar a caminhar em amor. Isto não só faz ver que há santos vivos (não
só os do passado) e que cada pessoa o pode ser, mas sobretudo faz entender que
são inúmeros os santos que não são conhecidos, que do mesmo jeito que os
canonizados igualmente veem Deus face a face, têm plena felicidade e
intercedem por nós. Nesta celebração, o povo católico é conduzido à contemplação do
que dizia São João Henrique Newman: não
somos simplesmente pessoas imperfeitas em necessidade de melhorias, mas
rebeldes pecadores que devem render-se, aceitando a vida com Deus, e realizar
isso é a santidade aos olhos de Deus.
2022.11.01 – Louro de Carvalho
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