É
uma boa lição a colher da meditação da Palavra da Liturgia do 33.º domingo do
Tempo Comum no Ano C, que induz a reflexão sobre o sentido da história da
salvação, sendo a meta final da nossa caminhada o novo céu e a nova terra da
felicidade em plenitude. Este quadro, que deve ser o horizonte da contemplação
quotidiana da nossa peregrinação no mundo, faz nascer em nós a esperança, donde
brota a coragem para enfrentar a adversidade e lutar pelo advento do Reino.
Na
primeira leitura (Ml 4,1-2 ou
3,19-20, conforme as versões), um mensageiro de Deus anuncia à comunidade
desanimada e apática que Javé não abandonou o Povo. Como libertador vai
intervir no mundo, para derrotar o opressor, fazendo que nasça o “sol da
justiça”, portador da salvação.
O
Evangelho (Lc 21,5-19) leva-nos a
refletir sobre o percurso que a Igreja é chamada a percorrer até à última vinda
de Jesus. A missão dos discípulos em caminhada na história é o compromisso na
transformação do mundo, para que desapareça a velha realidade e nasça o Reino.
Essa rota apresentará dificuldades e perseguições, mas os discípulos terão
sempre a ajuda e a força de Deus.
A
segunda leitura (2Ts 3,7-12) reforça
a ideia de que, na espera da vida definitiva, não temos o direito de nos
instalarmos na preguiça, alheando-nos das grandes questões do mundo e sonegando
o nosso contributo para a construção e para a difusão do Reino Deus, em atitude
perseverante.
***
Em
rigor, “Malaquias” não é nome próprio, mas significa “o meu mensageiro”. É o
título de um profeta anónimo, de quem pouco sabemos e que se apresenta como
“mensageiro” de Deus. É um profeta do pós-exílio, em que o Templo já tinha sido
reconstruído (cf Ml 1,10) e o culto
já funcionava, embora mal (cf Ml
1,7-9.12-13). Porém, o entusiasmo pela reconstrução estava apagado e imperava o
desânimo por se ver que as antigas promessas de Deus não se cumpriam. O Povo, caído
na apatia religiosa e na falta de confiança em Deus, duvidava do amor de Deus e
da sua justiça. E este ceticismo repercutia-se no culto e na ética, dando azo à
multiplicação das injustiças e das arbitrariedades. Era a primeira metade do
século V a.C. (480-450 a.C.).
Este
“mensageiro de Deus” reagiu vigorosamente contra a situação em que o Povo estava
a cair. Fez sentir a cada um as suas responsabilidades para com Javé e para com
o próximo e instou à conversão do Povo e à reforma da vida cultual. Se o Povo
se obstinar nas vias da infidelidade à Aliança, voltará à infelicidade e à
morte; mas se se voltar para Deus e cumprir os mandamentos, voltará a gozar da
vida e da felicidade que Deus oferece aos que seguem os seus caminhos.
O
trecho em referência refere-se ao “dia do julgamento”, o dia em que o Senhor intervirá
na história para abolir o mal, a injustiça e a opressão, e fazer triunfar o
bem, a justiça e a verdade. Ante o fogo do Senhor que purifica e renova, “serão
como palha os soberbos e malfeitores” e ficarão sem raiz e sem ramos; mas, para
os que se mantêm na rota da Aliança e dos mandamentos, “nascerá o sol da
justiça, trazendo nos seus raios a salvação”.
O
referido “mensageiro” de Deus não fala do “fim do mundo”, mas do “Dia do
Senhor”, uma categoria recorrente na literatura profética para designar o
momento da intervenção de Deus na história a oferecer ao Povo a salvação
definitiva. O profeta, em linguagem e imagens tipicamente proféticas, exorta os
concidadãos a não desanimarem, pois Deus vai intervir no mundo para fazer surgiu
um mundo outro. É o apelo à esperança e à fidelidade, contra a situação caótica
vigente.
Quem
olhar para o mundo que nos cerca e vê destruição, fogo de guerra e praga
incendiária, em vez de se transportar para o futuro negro anunciado por
Malaquias, deve pensar e sentir que a Palavra de Deus, conquanto proferida e
escrita num determinado contexto cultural e histórico, tem perfeita atualidade.
Porém, em vez de levarmos à letra as imagens do “fogo” devorador e da “palha”
integralmente queimada – imagens bíblicas muito comuns na época, sobretudo
entre os autores apocalípticos – teremos de as entender pelo ângulo profético
do seu significado, ou seja, pelo ângulo da iminente e libertadora intervenção
de Deus no mundo das pessoas e dos povos.
Os
cristãos entendem esta profecia de Malaquias à luz da intervenção libertadora
de Jesus, o “sol de justiça” que brilha no mundo e nos insere na dinâmica de um
mundo novo, o Reino de Deus.
***
Em
Jerusalém, nos últimos dias antes da Paixão, como os outros sinóticos (cf Mt 24-25; Mc 13), Lucas conclui a pregação de Jesus com o discurso
escatológico que mescla referências à queda de Jerusalém e ao “fim dos tempos”.
Na versão lucana, Jesus está nos átrios do Templo com os discípulos. E a
contemplação daquelas belas pedras leva Jesus a esta catequese.
Este
discurso escatológico é uma apresentação teológica com três momentos da
história da salvação em pano de fundo: a destruição de Jerusalém, o tempo da
missão da Igreja e a vinda do Filho do Homem (que encerra o “tempo da Igreja” e
traz a plenitude do “Reino”).
O
trecho (Lc 21,5-19) começa com o
anúncio da destruição de Jerusalém. Na ótica profética, Jerusalém é o lugar
onde deve irromper a salvação de Deus e para onde convergirão todos os povos
empenhados em aceder à salvação. Como Jerusalém recusou a salvação que Jesus
trouxe, a destruição da cidade e do Templo significa que Jerusalém deixou de
ser o lugar exclusivo e definitivo da salvação. A Boa Nova de Jesus vai,
portanto, deixar Jerusalém e partir ao encontro de todos os povos. Começa, pois,
outra fase da história da salvação: o “tempo da Igreja”, em que a comunidade
dos discípulos, caminhando na história, testemunhará a salvação a todos os
povos.
O
“tempo da Igreja”, que culminará com a última vinda de Jesus, é marcado, após a
destruição de Jerusalém, pelo aparecimento de falsos messias e visionários que
anunciarão o fim (vulgar em épocas de crise e de catástrofe). Porém, visto que “não
será logo o fim”, o Senhor avisa: “não sigais atrás deles.” De facto, a destruição
de Jerusalém no ano 70 pelas tropas de Tito pareceu aos cristãos o prenúncio da
vinda de Jesus, ilusão que alguns pregadores populares alimentavam. Todavia,
Lucas, escrevendo nos anos 80, aposta na eliminação do frenesim escatológico
crescente em certos setores cristãos: em vez de viverem obcecados com o fim, os
cristãos devem preocupar-se em viver uma vida fortemente comprometida com a
transformação do mundo.
A
seguir, Lucas diz aos cristãos o que acontecerá nesse “tempo de espera”: irá
surgir um mundo novo. Para dizer isto, Lucas recorre a imagens apocalípticas
(“há de erguer-se povo contra povo e reino contra reino”; haverá guerras; “haverá
grandes terramotos e, em diversos lugares, fome e epidemias; haverá fenómenos
espantosos e grandes sinais no céu”), usadas pelos pregadores populares da
época para falar da queda do mundo velho, o mundo do pecado, do egoísmo e da
exploração, a substituir pelo mundo novo que surgirá.
Frente
a estes cenários levanta-se a questão do tempo que medeia entre a queda de
Jerusalém e a segunda vinda de Jesus. A isso ninguém responde. Mas sabe-se que o
“Reino de Deus” se vai manifestando e tornando novo o mundo. Não obstante, os
cristãos não devem encostar-se à espera preguiçosa e comodista, contando que
Deus faça tudo: devem empenhar-se na construção desse mundo novo, convictos de
que a libertação plena se consumará com a segunda vinda de Jesus.
Por
fim, Lucas põe os crentes de sobreaviso para as dificuldades e perseguições que
marcarão a caminhada histórica da Igreja. Contudo, não estarão sós, pois Deus
estará sempre presente; será com a força de Deus que enfrentarão os
adversários, resistirão à tortura, à prisão e à morte e até ultrapassarão a dor
de serem atraiçoados pelos próprios familiares e amigos,
O
discurso escatológico define, pois, a missão da Igreja na história até à última
vinda de Jesus: dar testemunho jubiloso da Boa Nova e construir o Reino, com
perseverança, que é nela, segundo a palavra de Cristo, que salvaremos a nossas
almas.
Os
cenários apocalípticos evocados neste passo evangélico mostram, pela semelhança
com o que se passa hoje (falsos messias, cataclismos, guerras, divisão de famílias
e de povos, perseguição, epidemias, tortura e morte, previsões do fim do mundo),
levam a acatar a atualidade da Palavra de Deus e devem estimular-nos a perscrutar,
não os sinais do mal, mas a mão e os sinais de Deus.
***
Os
Tessalonicenses eram uma comunidade que vivia com entusiasmo a fé e que dá um
testemunho vigoroso e comprometido de adesão ao Evangelho, mesmo nas dificuldades
e nas perseguições. Porém, a partida precipitada de Paulo (fugiu a cilada
armada pelos judeus da cidade) não deixou completa a catequese, ficando algumas
questões de fé insuficientemente desenvolvidas e não amadurecidas. Uma delas
era a da segunda vinda do Senhor.
Na
segunda carta aos Tessalonicenses, vê-se que alguns cristãos, convictos de que estava
próxima a vinda do Senhor, negligenciavam os deveres de todos os dias (2Ts 2,1-2). O que fazia sentido –
segundo eles – era cruzar os braços e ter os olhos e o coração no céu,
esperando, em júbilo, a última vinda, a da glória do Senhor, o que se
compreende à luz da antropologia grega, pela qual o homem deve viver voltado
para o mundo ideal e espiritual, fugindo do terreno e material. Nesta ótica, é
de evitar o trabalho manual, por ser degradante e sem valor para a edificação
da pessoa.
O
autor da carta (em 2Ts 3,7-12) rejeita,
em absoluto, esta conceção e a atitude dos que, alegando a desculpa da iminente
vinda do Senhor, vivem na ociosidade e não fazem nada de útil. Percebe-se a
linha de inspiração semita, que ensina que a condição corporal do homem não é
um castigo. Por isso, o trabalho manual não envelhece, mas dignifica.
Assim,
o autor da carta dá como exemplo o próprio Paulo: nunca escolheu a ociosidade,
nem viveu à custa de quem quer que fosse (“trabalhamos noite e dia com esforço
e fadiga, para não sermos pesados a nenhum de vós”); até durante as suas
viagens missionárias, nunca aceitou qualquer pagamento, o que mostra que o seu
amor pelos cristãos e pelas comunidades é sincero e nunca teve qualquer
interesse material.
O
tom desta passagem é exigente e solene, pois está em jogo a harmonia da
comunidade. Se a comunidade albergar parasitas, depressa atingirá uma situação
insustentável: romper-se-á o equilíbrio, surgirão os conflitos, campearão as acusações
e evidenciar-se-ão as divisões, o que fará da fraternidade uma miragem. A vida
comunitária postula a repartição equitativa dos recursos da comunidade, a par da
responsabilização de todos os membros, para todos porem ao serviço dos irmãos
os próprios dons e contribuírem para a comum construção, o equilíbrio e a harmonia
na comunidade.
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Em
Dia Mundial dos Pobres encontra-se
mais uma razão para o trabalho: produzir riqueza para que possa ser distribuída
equitativamente, de modo que não haja ninguém necessitado. Isso postula dedicação,
afinco, equilíbrio, guerra ao egoísmo, perseverança, colocação da economia – produção,
distribuição circulação e consumo – ao serviço do homem, ao serviço da
comunidade e a abolição das guerras e dos interesses instalados.
2022.11.13 – Louro de Carvalho
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