No dia 10 de
novembro, o primeiro-ministro admitiu processar Carlos Costa, ex-governador do
Banco de Portugal (BdP) por afirmações ofensivas da sua honra, o que tem
motivado reações partidárias que pretendem o escrutínio do caso, com a audição
dos dois contendores.
O jornal Observador pré-publicou um excerto
do livro O Governador, de Luís Rosa,
que revisita os momentos mais marcantes do mandato de 10 anos do ex-governador
do BdP. São revelados “factos até agora desconhecidos sobre a intervenção da
troika, o caso Banco Espírito Santo e a resolução do Banif, entre outros
temas”, bem como detalhes sobre as tensões “com José Sócrates, António Costa e
Mário Centeno e as guerras com Ricardo Salgado e a família Espírito Santo”.
E Carlos
Costa diz que que foi pressionado por António Costa para não retirar Isabel dos
Santos do Banco BIC. O episódio remonta a abril de 2016, quando o governador do
BdP informou a empresária, a maior acionista do BIC, e Fernando Teles, sócio da
filha mais velha de José Eduardo dos Santos, ex-presidente de Angola, que
tinham de se afastar do Conselho de Administração do Banco, no qual tinham uma
participação de 20%, de forma a afastar o banco dos problemas que se passavam
com o BIC Angola, sobretudo possíveis danos reputacionais, o que a empresária
rejeitou, aduzindo ausência de legislação na lei portuguesa que a impedisse de
ser administradora do BIC. Carlos Costa recorreu ao primeiro-ministro, que terá
ficado ao lado dela.
Dois dias
antes destes acontecimentos, fora anunciado ao mercado pelo La Caixa um
acordo de venda da participação de 18,6% que a angolana detinha no BPI, o qual
vendia a sua posição de 51,6% do Banco Fomento Angola a Isabel dos Santos,
cumprindo a imposição do Banco Central Europeu (BCE), de exigir a redução da exposição
da instituição a Angola. Tal acordo só foi possível pela legislação que acabava
com a blindagem dos estatutos (iniciativa de António Costa).
No dia em que
o excerto do livro foi divulgado, à entrada para a reunião da Comissão Política
do Partido Socialista (PS), António Costa disse: “A única coisa que eu posso
dizer é que, como é sabido, através do Observador,
foram proferidas pelo doutor Carlos Costa declarações que são ofensivas da
minha honra, do meu bom nome e da minha consideração.” E acrescentou que, tendo
contactado Carlos Costa, este “não se retratou nem pediu desculpas”.
Porém, este caso o que tem de comum com o que está subjacente
ao enunciado em epígrafe é o problema que também implica a banca, ou seja, as implicações
da não aprovação parlamentar de um Programa de Estabilidade e Crescimento, em
2011, denominado PEC IV, matéria desenvolvida no livro, cuja apresentação foi
agendada para o dia 15 de novembro.
Portugal
assinou dois memorandos de entendimento (para um programa de ajustamento
económico e financeiro) a 17 de maio de 2011, a fim de aceder a um resgate financeiro
da troika de 78
mil milhões de euros. Passaram mais de 11 anos, mas o livro O Governador tem novos dados sobre os
bastidores das negociações que levaram Portugal àquele dia. E um deles é o suposto
erro de avaliação da Comissão Europeia e do BCE, bem como dos dois portugueses
com posições de relevo nas duas instituições – erro que, no
dizer o antigo governador do BdP, podia
ter custado caro, dado que podia ter esgotar o tempo disponível para acionar um
pedido de resgate.
Carlos Costa revela que o BdP foi posto de lado pelas instituições
europeias que integravam a troika – a posição do Fundo Monetário Internacional (FMI)
e de Dominique Strauss-Khan, seu diretor-geral, era outra – até ao pedido de
resgate. E o antigo governador explica isso, dizendo que, na fase antecedente ao
início das negociações formais do programa de
assistência financeira, o BdP foi, em grande medida ignorado pelas instituições
europeias. Tanto a Comissão Europeia, como o BCE não consultaram o BdP com a
frequência e a intensidade espectáveis, embora o BCE tivesse consultado o
governador sobre a carta que o presidente Jean-Claude Trichet endereçou ao
primeiro-ministro José Sócrates, tal como aos primeiros-ministros de Itália e
de Espanha.
As razões da subalternização do BdP, segundo Carlos Costa, serão o facto de o vice-presidente do BCE ser Vítor
Constâncio, um português com acesso direto ao primeiro-ministro e que se
perfilara como um mentor da política económica portuguesa, o que expunha Teixeira
dos Santos, ministro das Finanças, e o governador do BdP ao risco de
subalternização.
José Sócrates, em 2010 e 2011, reclamava ter o apoio das instituições
europeias, e Carlos Costa admite que tal fosse verdadeiro, citando um
telefonema de Jean-Claude Trichet, presidente do BCE, depois da rejeição do PEC
IV e do Conselho Europeu em que Sócrates comunicava não assegurar a sua
aprovação. No final do telefonema, Carlos Costa ficou persuadido de que Trichet tinha apostado tudo na
aprovação do PEC IV e de que o primeiro-ministro tinha junto dele grande
credibilidade. E admite como plausível que a aposta de Trichet refletisse o
natural resultado de pedido de conselhos a Vítor Constâncio, na qualidade de
vice-presidente do BCE.
Porém, considera que houve um
erro de diagnóstico por parte do BCE e por parte da Comissão Europeia, um erro
que nos podia ter custado caro, visto que podia ter esgotado o tempo disponível
para acionar um pedido de resgate. E, dadas as vicissitudes políticas de então,
não é de afastar que o triângulo Durão Barroso, Vítor Constâncio e José
Sócrates tenha admitido a possibilidade de evitar o resgate ou de ter um
programa diferente dos anteriores, não envolvendo o FMI.
Com este erro de avaliação, o pedido de resgate, que deveria ter sido
feito no final de 2010 ou no início de 2011, foi efetivado no início de abril,
um risco enorme para Portugal, segundo Carlos Costa, porque qualquer problema
associado às negociações do plano de resgate poderia pôr em risco o reembolso
de dívida e atirar a República para o incumprimento de pagamentos.
Dominique
Strauss-Khan (DSK), na avaliação de Carlos Costa, foi elemento crucial na gestão da crise
financeira, em particular na União Europeia (UE), influenciando, de forma
determinante, o pensamento dos ministros das Finanças do Eurogrupo. E
tinha ascendente em Angela Merkel, no Governo de França e na Comissão Europeia.
E a sua autoridade no FMI era tal que lhe permitia aprovar acordos de
assistência com os países ainda antes de os levar ao ‘board’ do Fundo.
A capacidade de DSK de diagnóstico e de resposta
aos problemas, de negociação e de validação dos detalhes do programa de
ajustamento foi a vantagem de que beneficiou a negociação do programa de
assistência em Portugal. Quando Strauss-Khan saiu, a 18 de maio de 2011, já
estava fechado tudo de substancial. Se as negociações não estivessem
substancialmente fechadas, Carlos Costa, não sabe como nem quando se teriam
fechado, dada a situação de menor definição que se instalou nas instâncias de
direção do FMI. Isto é, se não estivessem fechadas, haveria o risco de não se conseguir
cumprir o calendário de reembolso da dívida vincenda.
O FMI ocupou sempre o “lugar do condutor” no processo negocial com o
Portugal e foi pela definição do envelope financeiro de assistência do Fundo –
26 mil milhões de euros – que o país acabou por ter um programa de 78 mil
milhões de euros, quando se falava em 90 a 95 mil milhões de euros. Foi o FMI quem se apresentou mais equipado para
fazer o diagnóstico e para elaborar o programa de assistência económica e
financeira. Tinha a experiência que faltava às instituições europeias. Do lado europeu, o diálogo
para a estabilização do sistema bancário foi conduzido pelo BCE, através de
John Fell, ora diretor-geral adjunto para a Política Macroprudencial e
Estabilidade Financeira, que teve o papel de porta-voz europeu na troika. De facto, como a Comissão Europeia esteve
calada ou pouco interventiva neste ponto, o diálogo inicial foi travado com os
representantes do FMI e com John Fell, do BCE.
O FMI
comunicou que disponibilizava 26 mil milhões, o que, pela aplicação do
princípio de paridade entre as três instituições, implicava que o programa não
poderia contar com mais de 78 mil milhões de euros. Este teto tinha várias
consequências, uma das quais estava relacionada com a ajuda à banca. O montante previsto para a capitalização dos
bancos nacionais não resultou de cálculo prévio das suas necessidades de
capital adicional. Segundo Carlos Costa, a opção por um modelo à irlandesa ou à espanhola,
requereria um montante superior e disponibilizado à cabeça, montante que não
seria possível encaixar dentro do envelope financeiro disponibilizado.
E Carlos Costa acrescenta que, se esse modelo fosse seguido, o Estado tornar-se-ia
o principal acionista dos bancos: era a reversão das privatizações, com impacto
na dívida pública.
Carlos Costa suspeita que JohnFell terá defendido a
adoção do modelo irlandês e o envolvimento do fundo norte-americano Blackrock. Mas
o antigo governador do BdP considerou inaceitável
a proposta de adoção do modelo irlandês, por não ser conciliável com o montante
disponível para o programa de estabilização do sistema bancário, o que torna
legítimo o seu questionamento sobre “se não haveria então investidores
internacionais à espreita da aquisição, com elevado desconto, de instituições
bancárias portuguesas”.
O
Programa de Ajustamento foi regido por dois documentos principais: o Memorando
de Políticas Económicas e Financeiras (MEFP), que constitui a base dos acordos
com o FMI, e o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política
Económica (MoU), que é o documento oficial da Comissão Europeia e do BCE. Os
dois documentos abordam os mesmos temas e espelham as mesmas decisões, mas o
último apresenta maior grau de detalhe em relação à execução das medidas e aos
prazos previstos. São os dois documentos que
consagram o acordo entre a troika e o Governo minoritário do PS, secundado
pelos partidos que lhe sucederam na governação: Partido Social Democrata (PSD) e
Partido do Centro Democrático Social (CDS).
Pedro Silva
Pereira e Eduardo Catroga trocaram cartas, quatro anos depois, acusando-se de
serem os responsáveis pela vinda da troika e pela negociação do resgate. Silva
Pereira alega que o resgate só ocorreu por o PSD ter chumbado o PEC
IV em abril de 2011, inviabilizando o programa negociado com a Comissão Europeia
e com Angela Merkel. E diz que o PSD foi parte importante das negociações,
invocando entrevistas de Eduardo Catroga (do PSD) a chamar a si os louros da
negociação. Porém, Não há dúvida de que o processo foi conduzido pelo governo Sócrates,
com pouca influência do PSD. As entrevistas de Catroga a reclamar louros, eram
pura propaganda, como o foi a declaração de Sócrates de que o memorando tinha
evitado o pior.
Outra questão é saber se o PEC IV conseguiria evitar
o resgate. Certamente que não. Portugal estava
sob fogo dos investidores a meio de 2010, antes do primeiro resgate grego. Isso
aconteceu por contágio deste e porque aumentáramos muito a dívida pública, sem se
conseguirem ritmos de crescimento que permitissem antever a capacidade de a
pagar. Desde aí até março de 2011, os juros da dívida em mercado secundário
dispararam, levando as emissões de dívida do Estado a serem feitas a montantes
muito elevados. E o Estado teve de voltar ao mercado de dívida com somas muito
avultadas, suplantando o orçamentado. E sem financiamento, o Estado
estrangularia.
Obsessão
pelo resgate ou obstinação na recusa. Quem tinha razão? Ia o país morrendo da
cura!
2022.11.14 – Louro de Carvalho
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