Por iniciativa do Chega está em marcha um processo
de revisão da Constituição da República Portuguesa (CRP), que não criará, pelos
vistos, um amplo debate no Parlamento e muito menos na sociedade portuguesa,
quiçá ficando entre umas quantas alterações cirúrgicas e uma revisão parcelar
com algum significado, mas com poucas consequências.
O que salta à vista de inédito e abstruso é, do
meu ponto de vista, a possibilidade de, em situação de emergência sanitária, ser
decretado um confinamento obrigatório sem declaração do estado de emergência,
mas com possibilidade de recurso judicial urgente.
A proposta de revisão constitucional do Partido Socialista (PS), entregue a
11 de novembro, mexe em direitos fundamentais para tentar resolver problemas de
saúde pública e de acesso a dados para investigação judicial.
No âmbito dos direitos, liberdades e garantias, o PS troca o termo “raça”
pelo termo “etnia”, substitui a expressão “direitos do homem” por “direitos
humanos” (formas de expressão mais consentâneas, mas que não urgem revisão
constitucional), cria o direito à alimentação (assegurado pelo Estado e pelas autarquias)
e garante o acesso universal à água, ao saneamento e aostransporte público, tal
como abre a possibilidade de haver número único de cidadão.
Já temos o direito constitucional à habitação, ao trabalho, à segurança
social e à saúde. Porém, o preço da casa (propriedade ou renda) torna-a inacessível
a tantos cidadãos; o desemprego, a precariedade e a falta de condições e de valorização
do trabalho crescem a olhos vistos; a proteção na invalidez e na velhice é mais
que insuficiente; e o acesso à saúde colide com a ambição negocial dos privados
e com a depauperação do serviço público de saúde.
Ainda no quadro dos dados pessoais, a proposta socialista abre a
possibilidade de haver um número único de cidadão em vez do que sucede hoje com
um número de identificação de cidadão, um número de identificação fiscal, um
para a segurança social e outro como utente dos serviços de saúde. A CRP proíbe
a atribuição de um número nacional único ao cidadão, o que o PS revoga.
Outra norma constitucional que os socialistas querem tirar da lei
fundamental é o princípio de que deve o Estado a assegurar a rede de educação
pré-escolar. “Criar um sistema público e desenvolver o sistema geral de
educação pré-escolar”, lê-se no artigo relativo ao direito à educação. O PS entende que o Estado deve
assegurá-lo, mas não necessariamente através do sistema público e
resolve o direito ao acesso incluindo a educação pré-escolar e o ensino secundário
na alínea que garante o ensino universal, obrigatório e gratuito e onde
atualmente só é referido o “ensino básico”.
Também se inscreverão nos deveres do Estado a lutas contra as alterações climáticas.
Não vejo que tal inscrição na CRP traga mais-valia significativa. Não se
ameaçam com a Constituição os exploradores dos recursos fósseis, o uso do
automóvel, do avião ou do navio, bem como a praga incendiária, ou a desflorestação
em barda. Basta a lei, a aplicação e a sanção.
No âmbito da saúde pública, o PS quer a possibilidade de decidir
confinamentos obrigatórios em caso de “doença contagiosa grave ou relativamente
à qual exista fundado receio de propagação de doença ou de infeção grave” sem
necessidade de ser decretado estado de emergência, mas com “garantia de recurso
urgente à autoridade judicial”. É a formulação encontrada para abrir caminho a
nova lei de emergência em saúde pública. A alteração é introduzida num dos
artigos relativos aos direitos e liberdades fundamentais, no atinente ao “direito à liberdade e à segurança”, que
já tem exceções, como a detenção em flagrante delito ou a prisão preventiva. A
proposta acrescenta-lhes a separação de portador de “doença contagiosa grave ou
relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção
graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo
tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com
garantia de recurso urgente à autoridade judicial”. É a judicialização das leis.
Com a garantia de possibilidade de recurso urgente à autoridade judicial, a
proposta do PS tenta sossegar os receios de limitação de alguns direitos
fundamentais. Com efeito, a única exceção que a lei fundamental já prevê para a
limitação de liberdade em questões de saúde implica uma decisão judicial prévia
e não só a possibilidade de recurso. Tal é o caso do “internamento de portador
de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou
confirmado por autoridade judicial competente”.
E, no atinente, ao acesso a dados para investigação judicial – como é o
caso dos metadados, já que o Tribunal Constitucional (TC) declarou
inconstitucional a lei vigente, no encalço de decisão do Tribunal de Justiça da
União Europeia (TJUE) e não há garantias de que nova lei passe no TC – o PS tenta
resolver o assunto mexendo em vários artigos relativos a direitos fundamentais,
a começar pelo direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das
comunicações.
Aí, propõe a introdução de normas a permitir a vigilância eletrónica do
domicílio ainda que só com autorização judicial: “A vigilância eletrónica do domicílio só
pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as
formas previstos na lei”; e a proibir “toda a ingerência das autoridades
públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de
comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.
Contudo, logo a seguir, virá um novo artigo a excetuar essa proibição:
“Excetua-se do disposto no número anterior o acesso,
mediante autorização judicial, pelos serviços de informações a dados de base,
de tráfego e de localização de equipamento, bem como a sua conservação,
para efeitos de produção de informações necessárias à salvaguarda da defesa
nacional, da segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem,
terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade
altamente organizada, nos termos a definir pela lei.”
Será sobretudo com esta norma que o PS quer resolver o problema do acesso e
uso a metadados – os dados de tráfego e localização de equipamentos eletrónicos
como telemóveis e computadores e não dados de conteúdo dessas comunicações –
pelos serviços de informação. Uma lei desse teor foi declarada inconstitucional
em 2015. Tinha sido aprovada por PSD, PS e CDS, mas Cavaco Silva enviou-a para
o TC, embora dizendo concordar com esta alteração legislativa por questões de
segurança nacional. Porém, o TC declarou-a inconstitucional. Os juízes
constitucionais voltaram a pronunciar-se no mesmo sentido em 2019, depois de
nova aprovação da lei por maioria alargada e de o Presidente da República a ter
promulgado, sem recurso ao TC. E o PCP, apoiado pelo Bloco de Esquerda, usando
a possibilidade de um décimo de os deputados eleitos (23) pedirem fiscalização
sucessiva de leis ao TC, usou dessa prerrogativa.
O uso de metadados pelos serviços secretos ficou vedado, mas o uso para
efeitos de investigação criminal era possível até que o TC declarou
inconstitucional também essa parte, decisão que provocou problemas a processos judiciais
em curso, bem como a investigações em curso.
Foram os metadados e a emergência sanitária
que levaram o Presidente
da República a pressionar o Parlamento para a revisão da CRP,
esquecendo que a iniciativa da revisão cabe em exclusivo aos deputados. Recordo
que, por essa razão, um discurso de Cavaco Silva foi duramente criticado por
ter sugerido pontos que deveriam ser objeto de revisão constitucional.
A proposta de revisão constitucional do PS tem cerca
de 40 alterações, algumas mais substanciais como as relativas à saúde pública,
outras de formulação e de adaptação da linguagem aos tempos atuais, no que
António Costa disse ser uma iniciativa de modernização, recusando a discussão
de questões institucionais como propõe o Partido Social Democrata (PSD), cuja
proposta inclui alterações, por exemplo: no mandato do Presidente da República
(único de sete anos) e nos demais (de cinco anos em vez dos quatro atuais), na redução
do número de deputados para 181 e na designação de dois dos juízes do TC pelo Presidente
da República.
Outras propostas são: acrescentar às tarefas fundamentais do Estado o desenvolvimento
sustentável, a erradicação da
pobreza, o combate às alterações climáticas, as necessidades de
desenvolvimento específicas do interior do País, a promoção da igualdade entre
homens e mulheres e a promoção dos laços com as comunidades portuguesas
residentes no estrangeiro; eliminar a palavra “raça”, substituindo-a por “etnia” no
artigo relativo ao princípio da igualdade, no qual introduz a identidade de
género (faz o mesmo no relativo aos direitos dos trabalhadores); acrescentar a
integridade psíquica no artigo que garante a inviolabilidade da integridade
moral e física das pessoas; introduzir as “garantias de defesa em processo disciplinar” nos direitos dos
trabalhadores; incluir o princípio de que “salários gozam de
garantias especiais, nos termos da lei, incluindo a salvaguarda do montante e
condições de pagamento contratualmente acordados”; garantir que “o trabalho
assalariado só pode ser prestado com base em contrato livremente celebrado”;
proibir o trabalho forçado e o trabalho infantil; introduzir, no artigo relativo aos direitos dos consumidores, a
noção de “serviços de interesse
económico geral” e elencá-los: fornecimento de água, de
saneamento, de energia, de transportes coletivos urbanos, de telecomunicações,
de correio (“Quando se trate de atividades abertas à atividade privada, a lei
estabelece as necessárias obrigações de serviço público às empresas
encarregadas da sua prestação”); acrescentar a medicina
reprodutiva e paliativa nos cuidados de saúde que o Estado deve garantir;
no direito à habitação incluir
um novo artigo: “Estabelecer medidas de proteção especial dirigidas a jovens,
cidadãos com deficiência, pessoas idosas, e famílias com menores, monoparentais
ou numerosas, bem como às pessoas e famílias em situação de especial
vulnerabilidade, nomeadamente as que se encontram em situação de sem abrigo, os
menores que sejam vítimas de abandono ou maus-tratos, as vítimas de violência
doméstica e as vítimas de discriminação ou marginalização habitacional.”; incluir o bem-estar animal, a gestão racional e eficiente de
resíduos e a promoção das energias renováveis no artigo sobre ambiente; e
promover a literacia
digital de todas as camadas da população e promover os
direitos fundamentais e os valores consagrados na Constituição, em todos os
graus de ensino.
***
Sendo a mais duradoura das seis constituições nos
dois séculos de constitucionalismo (1822-2022), a CRP logrou o maior período de
estabilidade constitucional desde 1896, por não sofrer alterações em 17 anos,
desde 2005. Entendendo-se o PSD e o PS (fazem maioria de dois terços), há
condições para revisão que garanta mais 50 anos à CRP. Porém, como o PS não
quer mexer na organização do poder político, tal desiderato fica diminuído. Se excetuarmos
o perfecionismo redacional, praticamente ficamos na mesma.
E não é bom fazer depender do juiz a aplicação em
concreto duma disposição legal. Cabe-lhe, em princípio, julgar do cumprimento
da lei, não da sua obrigatoriedade ou da sua dispensa.
2022.11.12 –
Louro de Carvalho
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