O Presidente da República avisou, a 4 de novembro, a
ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, que estará “muito atento” e não
lhe perdoará, caso descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é a
que ele acha que deve ser.
No dia em que foram inaugurados os Paços do Concelho da
Trofa, um município criado há 24 anos, o chefe de Estado começou o discurso
dizendo “duas coisas” a Ana Abrunhosa: “E, como não tenho tido oportunidade de
o dizer, digo-lhe hoje. Quando aceitamos funções políticas sabemos que é para o
bom e para o mal. Não somos obrigados a aceitar. Sabemos que são difíceis, são
árduas, que estão sujeitas a um controlo e a um escrutínio crescente – a
democracia é isso – e há dias bons e dias maus, dias felizes e dias infelizes.
A proporção é dois dias felizes por 10 dias infelizes.” E prosseguiu com um
aviso sobre a execução dos fundos europeus: “Este é um dia superfeliz, mas há
dias superinfelizes. E verdadeiramente superinfeliz para si será o dia em que
eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho
que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo. Espero que esse dia não chegue, mas
estarei atento para o caso de chegar.”
Mais tarde, já após a visita ao edifício dos Paços do
Concelho, esclareceu: “Estava a pensar no PRR [Plano de Recuperação e
Resiliência] porque o resto sei que vai avançando. Mas o PRR é muito dinheiro
que podemos utilizar, e chegar ao seu destino está a demorar.”
Ao lado, a ministra da Coesão Territorial, que não quis
falar à margem, aos jornalistas, acenou com a cabeça e referiu: “Está tudo
controlado.”
Já no dia 3, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que, na atual conjuntura, a utilização dos
fundos europeus, nomeadamente do PRR, é “urgente” e “imperdoável”, se não
acontecer a tempo.
“Temos de tirar o máximo proveito possível
daquilo que são fatores que são conjunturalmente, apesar de tudo, favoráveis.
Um favor favorável é a disponibilidade de fundos que, pensados para compensar
parcialmente a pandemia, estão disponíveis num período de guerra”, disse o chefe de Estado no seu
discurso na cerimónia que assinalou o 50.º aniversário do grupo Solverde.
Destacando que o termo da guerra é “imprevisível”, na duração e na “balança
de poderes”, o Presidente frisou que o país pode beneficiar de outro fator, o
de “ser visto como um destino seguro” – “destino seguro, próximo, mas suficientemente distante da área de conflito,
como se fosse uma ilha no Atlântico que é europeia, mas longínqua da área onde
é arriscado escolher como destino de turismo”, “como destino de investimento
externo” e “como local de residência duradoura”.
Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), dizendo que Portugal está a “beneficiar dessa
situação”, lembrou, no entanto, que tal acarreta responsabilidades “para
todos”, sendo esta é uma situação “transitória”, pelo que “deve ser aproveitada
cabalmente”.
Advertindo que se trata de “uma
oportunidade em algumas das suas facetas irrepetível”, sublinhou que o país tem
“condições” para “cumprir” com estes desígnios. Com efeito, segundo garantiu,
“dispomos de fundos europeus e condições de investimento externo”,
bastando sabermos “fomentar as condições de investimento interno suficientes
para enfrentar o período de guerra que estamos a viver”. E, vincando que “há
condições para isso”, avisou que “deixará de haver, se formos relativamente
tímidos ou incapazes no aproveitamento destas condições positivas”.
***
Ninguém
pode condicionar o Presidente da República a tomar posição sobre qualquer
matéria em causa no debate público. Todavia, pelo cargo que desempenha, deve
ser mais contido e cordato para com todos. Não se quer dizer que não haja
motivos de preocupação no atinente à gestão dos fundos comunitários,
nomeadamente no que respeita ao PRR.
Porém,
não dá para perceber a animosidade expressa nas palavras dirigidas a uma
ministra que não tem responsabilidade direta sobre o PRR (essa cabe à ministra
da Presidência) nem única sobre os fundos europeus, pois, no atinente às verbas
alocáveis “aos Programas Regionais e aos
Programas de Cooperação Territorial Europeia”, essa cabe à ministra da
Coesão Territorial, mas em articulação com a ministra da Presidência.
Além
disso, o tom utilizado no discurso é de todo irrecomendável. Quem é o chefe de
Estado para não perdoar a um ministro o quer que seja, para se arrogar ao
direito de julgar a taxa de execução de fundos ou de obra e mesmo para
fiscalizar qualquer matéria da governação? A fiscalização política da governação
cabe ao Parlamento (ver alínea a do art.º 162.º da CRP – Constituição da
República Portuguesa)
O
Presidente da República (PR) não governa. Cabe-lhe no sistema semipresidencialista
– e não é pouco – garantir a independência nacional, a unidade do Estado e o
regular funcionamento das instituições democráticas” e ser, “por inerência,
Comandante Supremo das Forças Armadas” (ver art.º 120.º da CRP). Em relação ao
PRR, há uma estrutura de planeamento, monitorização e avaliação dos projetos.
Além disso, o Tribunal de Contas (TdC) tem a palavra sobre a legalidade e a
oportunidade da aplicação das verbas da conta do Estado.
Nenhuma
norma constitucional permite ao chefe de Estado interferir diretamente na
governação, nem mesmo na escolha de ministros e secretários de Estado, que
nomeia e exonera, mas sob proposta do primeiro-ministro (ver alínea h do art.º 133.º da CRP) ou pelo veto a
decretos-lei do Governo, que apenas significa discordância política sobre a
matéria que versem, limitando-se a não os promulgar (ver n.º 4 do art.º 136.º
da CRP), devendo informar por escrito o Governo.
A
intervenção do PR na Trofa, como assinala o Professor Vital Moreira no blogue
“Causa nossa”, a 7 de novembro, “dá a entender que o Governo é politicamente
responsável perante o Presidente pela condução dos negócios públicos” e “ignora
que o único interlocutor governamental de Belém é o primeiro-ministro, e não os
ministros, que só respondem perante o chefe do Governo”.
“O
Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da
administração pública” (art.º 182.º da CP); “os membros do Governo estão
vinculados ao programa do Governo e às deliberações tomadas em Conselho de
Ministros” (art.º 189.º da CRP); e “e os ministros são responsáveis perante o
Primeiro-Ministro e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante
a Assembleia da República” (n.º 3 do art.º 191.º da CRP). Ora, o Presidente sabe
isto.
É
certo que “o Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República
e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da
República” (n.º 1 do art.º 191.º da CRP). Contudo, os ministros não respondem
diretamente perante o chefe de Estado.
Outros
melhor ou pior, souberam influenciar os primeiros-ministros a manter membros do
Governo ou a prescindir deles. Porém, nenhum criticou publicamente um governante
em concreto. Já MRS pôs em causa Mário Centeno, a quem chamou a Belém, chegando
a dizer que o ministro se mantinha em virtude da situação grave do país, tal
como evidenciou, pela verrinosidade discursiva em outubro de 2017, a fragilidade
de Constança Urbano de Sousa a propósito dos incêndios, o que não conseguiu
fazer com Eduardo Cabrita, apesar dos azares deste.
É,
pois, razoável o pensamento de Vital Moreira – já que, desta vez, “MRS
ultrapassou as suas próprias marcas anteriores”, de que o Primeiro-Ministro
deveria tomar duas medidas elementares de defesa da autonomia política
e institucional do Governo: (i) vedar aos ministros qualquer
contacto bilateral com Belém; (ii) deixar de envolver o Presidente
em inaugurações ou eventos governamentais em que não esteja o
Primeiro-Ministro.” Com efeito, é tempo de “atalhar a esta progressiva subversão
do sistema de governo constitucionalmente estabelecido”.
Concordando
com a sugestão, penso que o PR deve mostrar que não ignora a orgânica do XXIII
Governo Constitucional, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 32/2022, de 9 de maio,
sendo clarividente o teor do n.º 3 do art.º 13.º: “A Ministra da Presidência
tem como missão formular, conduzir e avaliar as estratégias de desenvolvimento
económico e social, tendo em conta os objetivos da convergência e da coesão,
assim como definir e executar a estratégia, as prioridades, as orientações, a
monitorização, a avaliação e a gestão global dos programas financiados por
fundos europeus, nomeadamente no âmbito da política de coesão da União
Europeia.”
E
o n.º 9 do art.º 28.º estabelece: “A ministra da
Coesão Territorial exerce a superintendência sobre a Agência para o
Desenvolvimento e Coesão, I. P., em matérias exclusivamente referentes à
Política Regional, à cooperação territorial europeia, aos Programas Regionais e
aos Programas de Cooperação Territorial Europeia, em coordenação com a Ministra
da Presidência.”
Nenhuma
destas normas foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 65/2022, de 28 de setembro, que
dá nova redação a alguns artigos do anterior.
Assim,
embora se entenda que o Governo não crie ondas com o PR, é confrangedora a postura
da ministra a limitar-se a assumir que a preocupação do Presidente é a do
Governo ou a especificar que é a lei que rege a apresentação, aprovação e execução
dos projetos. E é irónica e distrativa a reação do primeiro-ministro em
classificar a intervenção de MRS como um dos seus momentos criativos. Não obstante,
António Costa foi esclarecedor em relação ao processo.
Não
sei se o PRR é cumprível, dada a carga burocrática e os constrangimentos que
envolvem a execução e avaliação dos projetos. Com efeito, alguns críticos
sabem-no – e fingem não saber – que um projeto aprovado tem uma primeira tranche de verbas europeias, depois do
começo da sua execução (excecionalmente pode tê-la antes), e a última, após o
pedido de saldo final e a avaliação. Além disso, a entidade respetiva deve
dispor de verbas para adiantar pagamentos de aquisições, de mão-de-obra e de
assessorias, podendo necessitar de financiamento bancário.
Por
outro lado, foi espinhoso o processo aprovação do Decreto-Lei
n.º 78/2022, de 7 de novembro, que
simplifica os procedimentos administrativos da prossecução de atividades de
investigação e desenvolvimento. Foram tantas as objeções!
É preciso haver paciência e honestidade a governar,
sagacidade e esperteza na oposição.
2022.11.09 – Louro
de Carvalho
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