O jornal digital Observador
publicou, a 22 de outubro, um texto do Padre Gonçalo Portocarrero de Almada sob
o título “Pedofilia na Igreja:
discriminação e hipocrisia”, cujo teor subscrevo iuxta modum, desde logo, porque nem todo o abuso sexual de menores
é pedofilia. Por isso, ao abordar a matéria, prefiro a designação de “abuso
sexual de crianças e de adolescentes”, adotada na diversa documentação atinente
ao fenómeno.
É verdade que o quadro eclesial, neste âmbito, é doloroso e os factos se multiplicam de forma nada tolerável. Por outro lado, é premente continuarem
os cristãos, enquanto lamentam estes casos, a confessar a fé, devido à prontidão
de testemunho a que são instados pelo passo neotestamentário: “estai sempre prontos a dar razão da
vossa esperança” (1Pe 3,15). De facto, nada é suficiente para abalar a fé
consolidada e nada os demove de acalentar a esperança, apesar de não estarem
dispensados da nossa solidariedade no arrependimento e no pedido de perdão de quem
pecou. Isto não deixa de obrigar aquele/a que prevaricou a reparar o mal feito,
compensando a(s) vítima (s) pelos meios disponíveis.
O Padre Portocarrero de Almada sugere que, se “queremos acabar, de vez, com a pedofilia em Portugal”, se
publiquem “os nomes e profissões dos 6.421 condenados, no nosso país, por abuso
de menores, para que – finalmente! – se saiba quem é quem e se ponha um
ponto final a este clima de generalizada suspeição, nomeadamente em relação à
Igreja católica e aos seus ministros”.
E diz que a revelação não seria injusta, “porque se trata de um crime
público e essa divulgação é exigida pelo bem comum, como medida preventiva”.
Além disso, sustenta que “os condenados por este crime horroroso não têm direito
a preservar um bom nome ou [fama], que não têm”.
Não contesto a razoabilidade da sua argumentação, mas entendo que, em matéria
de melindre como esta, a publicitação dos nomes pode ser contraproducente, pelo
ambiente de temor que gera e porque nem sempre a condenação é justa e
proporcional. Por outro lado, não alinho tout
court com a ideia da irrecuperabilidade dos abusadores, nem na sociedade civil,
nem na instituição eclesial, apesar de reconhecer que a Igreja deve pôr mão de
ferro nos abusadores com a aplicação das penas canónicas. Porém, a levarmos às
últimas consequências a ideia da irrecuperabilidade, teríamos de excluir do
catálogo dos canonizados e do dos beatos tantas figuras históricas (o abuso
sexual de menores, conquanto seja crime hediondo, não o é mais do que outros
bem graves).
Defende, com razão, o sacerdote em referência que, “se, até à data, ninguém
impediu a divulgação dos nomes de padres que nem sequer foram julgados, nem
condenados, com mais razão se pode revelar a identidade de criminosos já
condenados”. Na verdade, a acontecer, a proscrição e a divulgação de nomes só
deveria ser feita para pessoas julgadas e condenadas, não para simples
indiciados ou mesmo acusados. Neste sentido, em vez de instigar a comunicação social
a “não encobrir a identidade dos pedófilos condenados”, sob pena de
cumplicidade, eu preferia censurá-la por divulgar os nomes de clérigos ainda simplesmente
suspeitos, porque presumivelmente inocentes, sendo-o até sentença condenatória transitada
em julgado. É certo que estes crimes cometidos por clérigos têm o peso de gravidade
acrescida por se tratar de pessoas em cuja formação integral se investiu de
forma mais ambiciosa e por liderarem espaços e instituições a quem os pais e a
sociedade em geral confiam as crianças e os adolescentes. Todavia, nem podem
ser julgados na praça pública, nem a justiça pode deixar de ser ministrada com
equidade, rigor e proporcionalidade.
Menciona Portocarrero de Almada uma entrevista ao Papa Francisco sob o título
“Eu vos peço em nome
de Deus”, no La Razón, de 18 outubro,
pelo jornalista argentino Hernán Reyes Alcaide, em que o Pontifice frisa que “a
Igreja não se pode desculpar pelo facto dos abusos de menores estarem “muito
presentes em todas as culturas e sociedades”, pois “milhares de vidas” foram
destruídas, pelos que as deviam ter protegido e cuidado. E confessa, a este
propósito, que “tudo o que se fizer, para reparar esse dano, será sempre
insuficiente”. Por outro lado, aponta, como o seu primeiro ‘mandamento’ para a
Igreja extirpar todos os abusos, porque expressam “uma verdadeira cultura de
morte”. E vinca o facto de “um só e único caso” já ser em si “uma realidade
monstruosa”, “um crime atroz”, “uma ferida feita a Deus”.
No colóquio com os jornalistas durante o voo de regresso da visita
apostólica ao Bahrein, a 6 de novembro, Francisco assegurou que a Igreja está a
“trabalhar da melhor maneira possível” para combater os abusos sexuais e lamenta
que alguns ainda não vejam isso. Sublinhou que, “para um padre, o abuso é como
ir contra a sua natureza sacerdotal e contra a sua natureza social”.
Quanto ao combate ao flagelo, o Papa disse que é um processo que se está a
realizar com coragem, mas nem todos têm tal coragem. E a Igreja, em vez da tentação
de transigir, tem a vontade de esclarecer tudo, visto que se deve envergonhar
das coisas ruins, mas agradecer pelas coisas boas que faz. Mais revelou que
mandou repetir os julgamentos de dois casos que não tinham sido bem julgados pela
autoridade eclesial, já que tudo tem de ficar sempre bem resolvido.
Quer o Padre Portocarrero que “a Igreja assuma toda a sua culpa, que não é
pouca, sem subterfúgios nem desculpas de mau pagador”, mas adverte que os
católicos não devem ter, “em relação a esta matéria, uma atitude ingénua ou
acrítica, uma vez que “os filhos das trevas são mais astutos do que os filhos
da luz” (Lc 16,8). Assim, “os
cristãos devem reconhecer as suas culpas”, mas também exigir que os outros
culpados assumam “as suas responsabilidades”.
D. José Ornelas Carvalho, presidente da Conferência Episcopal (CEP), que
foi o superior geral do seu instituto religioso, apontou falsas denúncias por
pessoas que tinham sido pagas para tal (Sol, 15-10-2022). O Cardeal Pell,
condenado, em primeira e segunda instâncias, cumpriu um ano de prisão efetiva
e, só depois, veio a ser provada, pelo Supremo Tribunal da Austrália, a sua
inocência. A falsa vítima fora subornada para incriminar o número três da
hierarquia da Santa Sé.
Para que todos os factos fossem apurados e se evitar que algum criminoso
ficasse impune, ou que algum inocente fosse injustamente condenado, a CEP criou
a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja
Católica portuguesa (CIEAMI), que encaminha para o Ministério Público (MP) todas
as suspeitas de abusos de menores.
Nas instituições da Igreja, mas não nas do Estado e nalgumas privadas, está
em vigor a tolerância zero. E Portocarrero alude ao caso de professor despedido
de uma escola pública, por ter abusado de menores, sem denúncia às autoridades,
por conivência da escola e da autarquia. Depois, reincidiu no crime num colégio
católico, que desconhecia os seus antecedentes e o admitiu. Foi, de imediato,
expulso e denunciado às autoridades e, agora, cumpre pena de prisão efetiva.
O Papa não escamoteia a responsabilidade da Igreja nestes casos, mas também
disse que cerca de 50% dos casos de abusos ocorrem nas famílias, em clubes, em
escolas ou no âmbito das relações de vizinhança, sendo que 3 % dos casos ocorrem
no seio da Igreja. Que é feito dos outros 27%?
A Presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças
e Jovens afirmou que a maioria dos abusos sexuais, em crianças, ocorre dentro
de casa e o agressor é alguém da família (DN/Lusa,
18-11-21). O problema não é de número absoluto ou percentual, mas desprezar 97%
dos abusos de menores não revela interesse no bem das crianças.
O Presidente da República foi infeliz ao não considerar “particularmente
elevado” o total de 424 denúncias recebidas e validadas pela CIEAMI. E esta não
foi feliz na fuga de informação, porque deve investigar o que tem de investigar
e, depois, apresentar à CEP o relatório final, sem dar palpites avulsos, que só
perturbam a opinião pública. O Chefe de Estado não tem que se referir a
resultados de uma comissão independente.
Depois, em resposta enviada à Lusa,
o Ministério da Justiça referiu que consta do registo de identificação criminal
de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual
de menores, criado em março de 2015, um total de 6.421 agressores. Este número não
pode ser comparado com as 424 denúncias à CIEAMI, porque estes ainda são de suspeitas,
enquanto os 6.421 já foram condenados por decisão judicial transitada em
julgado. Além disso, 424 queixas talvez correspondam a menos agressores, pois
várias denúncias podem ser do mesmo abusador, tal como 6.421 criminosos podem
significar maior número de delitos, porque estes delinquentes podem ser
reincidentes, que não necessariamente irrecuperáveis. E, ainda, a cifra
divulgada pelo Ministério da Justiça diz respeito aos últimos pouco mais de sete
anos, ao passo que a CIEAMI está a investigar todos os casos de que há
conhecimento desde há 70 anos.
Segundo o coordenador da CIEAMI, o “número dos abusadores será na ordem das
centenas” e há “17 casos de padres em funções em várias dioceses do país
enviados para o ministério público”, havendo que lhes juntar 30, que estão em
estudo. Mesmo que todos os casos sejam validados, em aproximadamente 3.800
sacerdotes portugueses, haverá uma percentagem de 1,2% de padres abismadores,
ou seja, 0,7% do total de abusadores de menores. Lamentável, apesar disso.
Enfim, não se pode confundir a crítica pertinente e justa à Igreja católica
com alguma intenção desviante ou odiosa de a expor ou aduzir casos de validade
duvidosa, o que só desvirtua o verdadeiro debate. Com efeito, só uma política
da verdade e de total transparência, bem como uma atitude social de rigor pode
pôr termo ao drama dos abusos de menores. Os obcecados só com os abusos na
Igreja e os que negam a evidência deste crime hediondo nas estruturas
eclesiais, têm um traço comum: o desprezo pelas vítimas. ´
Por fim, três apontamentos: a condenação do crime não pode automaticamente
incluir a dos bispos por encobrimento, pois a obrigação moral que têm de
denúncia não pode beliscar o sigilo sacramental nem o do foro interno
extrassacramental; e, embora uma CIEAMI (nacional) faça trabalho sério e com
resultados, as comissões diocesanas, regra geral, não tem essa possibilidade,
quer por excessiva proximidade, quer por falta de recursos humanos devidamente
preparados; e aos acusados tem de se lhes dar sempre conhecimentos de quem são
as suas vítimas.
***
Enfim, se vi a análise de Portocarrero como imperfeita, a minha não o é
menos. É a vida!
2022.11.07 – Louro de Carvalho
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