O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil decidiu
declarar, a 30 de junho, por cinco votos contra dois, a inelegibilidade, até
2030, do ex-presidente Jair Bolsonaro, por motivo de abuso de poder político e
de uso indevido dos meios de comunicação, por atacar, sem provas, o sistema de
voto eletrónico, numa reunião com embaixadores, convocada para o efeito no
Palácio da Alvorada, em julho de 2022. Por isso, Bolsonaro, que deve recorrer
pra o Supremo Tribunal Federal (STF), falhará as duas próximas eleições presidenciais.
Já Braga Netto, candidato a vice-presidente, em 2022, que também estava em
julgamento mas foi absolvido, por sete votos.
É a primeira vez que um ex-presidente
vê os seus direitos políticos retirados pelo TSE, em nove décadas de vida deste órgão
fundado em 1932. No passado, Collor
de Mello (presidente entre 1990 e 92) foi impedido de concorrer por ter
sido destituído pelo Congresso Federal, e Lula da Silva (2003-11) foi impedido de se candidatar às
eleições de 2018, por ter sido condenado em segunda instância, no âmbito da
Operação Lava Jato. Ou seja, foram declarados inelegíveis, não pelo TSE, mas
por outros órgãos do poder político.
Ao longo dos quatros anos que durou a
presidência de Jair Bolsonaro, houve mais de 150 pedidos de destituição, na sua maioria relacionados com a crise pandémica da
covid-19, que fez mais de 687 mil mortes no Brasil.
Carmen Lúcia e Alexandre de Moraes,
membros daquele órgão colegial e juízes do STF, juntaram-se a outros três
magistrados que haviam votado anteriormente e formaram a maioria de cinco votos
em sete possíveis, para a condenação do ex-presidente. Porém, Nunes Marques,
que também acumula cargos no TSE e no STF, divergiu, assim como um outro colega.
“Toda a produção daquele evento no Alvorada foi feita para que a TV Brasil divulgasse e a máquina de
desinformação das redes sociais multiplicasse, de forma a chegar ao eleitorado”,
disse Moraes.
A quarta sessão deste julgamento quase se assemelhou a um jogo de futebol,
com o Brasil de os olhos postos no placard de contagem. Os votos dos juízes a
favor da inabilitação do ex-presidente iam caindo: Benedito Gonçalves (o
primeiro), André Ramos Tavares, Floriano de Azevedo Marques, Cármen Lúcia (voto
decisivo) e, por fim, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes. A favor de
Bolsonaro votaram Kássio Nunes Marques e Raul Araújo.
A única mulher que integra o TSE foi a primeira a votar na quarta sessão do
julgamento de Jair Bolsonaro. E declarou que ele fizera um discurso em “monólogo” numa reunião
com os embaixadores, em julho de 2022, sem dar oportunidade aos
diplomatas presentes de lhe levantarem questões.
Em linha com o que dissera Benedito Gonçalves, juiz relator do processo, a
27 de junho, Cármen Lúcia destacou a “autopromoção [e] desqualificação do Poder
Judiciário” por Jair Bolsonaro, no referido encontro com os 72 diplomatas
acreditados em Brasília. Com efeito, aduziu, um servidor público não pode usar
o espaço público para “ser eleitoreiro” e fazer “achaques” contra ministros,
como se não estivesse atingindo a própria instituição. “Não há democracia sem Poder Judiciário
independente”, disse a juíza.
Uma semana após o início do julgamento (a 22 de junho), Alexandre de
Moraes, presidente do TSE, acusou Bolsonaro de espalhar mentiras na reunião com
embaixadores e ao longo de todo o processo eleitoral, para instigar o
eleitorado contra o sistema, desacreditando o voto eletrónico.
Na argumentação do presidente do TSE, seria “ingenuidade ou hipocrisia”
pensar que o encontro com os diplomatas não teria impacto, pois a ideia era que
toda a máquina de desinformação, na comunicação social e nas redes sociais, chegasse
diretamente ao eleitorado.
No entanto, este processo não determina a prisão do ex-presidente em circunstância alguma,
porque não é uma ação de
âmbito penal.
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A ação que levou à cassação dos
direitos políticos passivos de Bolsonaro pelo TSE foi interposta pelo Partido
Democrático Trabalhista (PDT), que o acusa de “abuso de poder político e de uso
indevido dos meios de comunicação.
Trata-se de um partido fundado em Lisboa,
a 15 de junho de 1979, quando o Brasil ainda vivia em ditadura
militar. Sob a égide do democrata
Leonel Brizola, o PDT é fruto de um encontro dos trabalhistas
brasileiros que viviam no Brasil com que os que estavam no exílio.
Brizola, político trabalhista que morreu
em 2004 e que era grande amigo do antigo presidente português Mário Soares, foi
candidato derrotado às eleições presidenciais de 1989, em que Lula da Silva e
Collor de Mello passaram à segunda volta, vencida por este último.
O objetivo do
PDT, como refere Renato Lessa, um dos signatários da sua carta fundadora, “era resgatar a memória e os princípios do Partido Trabalhista Brasileiro
de Getúlio Vargas”.
Entretanto, os deputados do Partido Liberal (PL), formação de Jair Bolsonaro,
estão a preparar um projeto de lei, a apresentar ao Congresso Nacional, para
amnistiar crimes ligados ao processo eleitoral. O próprio ex-chefe de Estado reagiu, de imediato, ao
resultado: “Tentaram matar-me em Juiz de Fora, há pouco
tempo, com uma facada na barriga, [e] hoje levei uma facada nas costas, com a
inelegibilidade por abuso de poder político.”
Todavia, é pouco provável que a tentativa do PL de salvar o seu chefe da
sanção aplicada pelo TSE tenha qualquer efeito, já que pode ser vetada pelo presidente
Lula da Silva.
Neste momento, a única certeza é que Bolsonaro, que, antes, sinalizara a
intenção de reconquistar a presidência, em 2026, e que chegou a pedir desculpa
por ter associado, indevidamente, a vacinas da covid um determinado produto
nefasto, é inelegível, até 2030, e está impedido de se candidatar às eleições
municipais, estaduais e federais.
Agora que o ex-presidente foi condenado, a defesa
anunciou que “recebe a decisão com profundo respeito”, e que aguarda a
publicação do acórdão, para decidir a melhor estratégia de recurso. Segundo O Globo, ex-presidente pode interpor
recurso para o próprio TSE ou para o TSF.
Os recursos para o TSE ou para o STF têm um prazo de três dias para serem
interpostos.
O advogado de Bolsonaro,
Tarcísio Vieira, inclina-se
para recorrer para o STF. E, se optar por esta via, terá de enunciar os pontos
em que a decisão contraria os princípios constitucionais.
Porém, sucede que três
dos ministros que votaram a favor da inelegibilidade de Bolsonaro no TSE –
Benedito Gonçalves, Carmen Lúcia e Alexandre de Moraes – fazem parte do STF e
irão votar o recurso, a havê-lo. Por outro lado, o TSE
também tem em trâmite mais 15 ações contra Bolsonaro, que poderiam
decretar a sua inelegibilidade. Entre elas, destacam-se declarações do ex-chefe
de Estado, a tentar pôr em dúvida o sistema eleitoral brasileiro, a concessão de
benefícios financeiros no período eleitoral, a campanha nos palácios do
Planalto e da Alvorada, fake news
contra o voto eletrónico, etc.
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Por sua vez, o Partido dos
Trabalhadores (PT), de Lula da Silva, escreveu nas redes sociais que este foi “um
grande dia”. “Por maioria, no TSE, Bolsonaro acaba de se tornar inelegível, por
oito anos, por todos os ataques à democracia e pelos crimes que cometeu contra
o nosso país.”
O ex-candidato presidencial Ciro
Gomes, do PDT, partido que moveu a ação, disse que o partido “queria proteger a
democracia e punir o abuso de poder político praticado por Bolsonaro” e que
este “é inelegível, por império da lei”.
Como a condenação já era um cenário
provável, Bolsonaro e o PL planeiam as próximas eleições municipais, em 2024,
sob o mote da suposta “perseguição política”. “A ideia é que, com esse cenário,
sejam transferidos ainda mais votos para quem Bolsonaro apoiar na eleição
municipal do ano que vem, [pois] a intenção do PL é aumentar o número de
cidades geridas pelo partido de 300 para mil”, escreveu a colunista Bela
Megale, de O Globo, ainda antes do
julgamento
E o partido prepara as presidenciais
de 2026, sem o inelegível Bolsonaro e, talvez, sem Lula da Silva, que prometeu,
em campanha, não concorrer à reeleição, mas dá agora sinais de que não vai
cumprir a promessa. Por isso, a via da sucessão já começou a ser trilhada pelo
PL, cujos spots publicitários das
últimas semanas, nas televisões brasileiras, tornaram Michelle Bolsonaro, a
ex-primeira-dama e atual presidente do PL Mulher, a protagonista. Apesar de
envolvida no caso das joias sauditas desviadas pelo marido do acervo
presidencial para a própria casa, continua a ser aposta pessoal de Valdemar
Costa Neto, presidente do PL, que a vê com potencial eleitoral, até porque será
apoiada pelo marido.
Entretanto, outros nomes se perfilam
para erguer a bandeira do “bolsonarismo sem Jair”. Desde logo, o do candidato (derrotado)
a vice-presidente Braga Netto, general que assumiu o cargo de secretário de
Relações Institucionais do PL e que erigiu o observatório político do partido, como
centro de elaboração de propostas de oposição ao governo Lula, saiu incólume do
julgamento e já viaja pelo país a acompanhar Michelle. Tido como quadro
relevante, concorrerá à prefeitura do Rio de Janeiro, em 2024, para ganhar
corpo para a disputa presidencial de 2026.
Também são naturais “candidatos a
candidatos” e estão no palco político os governadores Tarcísio Freitas e Romeu
Zema, do Republicanos e do Novo, partidos na órbita do PL. Freitas conquistou o
governo de São Paulo, o mais populoso e rico do país, batendo Fernando Haddad, agora
ministro das Finanças, e, dado o seu perfil técnico e realizador, é visto como
principal expoente da face mais palatável do bolsonarismo. Contudo, tem contra
si o facto de estar em primeiro mandato, sob pressão de tentar a reeleição, ao
contrário de Zema, a cumprir o segundo, e, por isso, mais livre para assumir o
desafio nacional em 2026.
***
Acresce que a ação relativa à dita reunião
com embaixadores, para relatar fraudes sem provas, foi apenas uma de 16
investigações no TSE. Entre elas, sobressaem o uso eleitoral de programas
sociais na campanha eleitoral, como a antecipação da transferência do benefício
do Auxílio-Brasil e do Auxílio-Gás; o aumento do número de famílias
beneficiadas pelo Auxílio-Brasil; a antecipação de pagamento de auxílio a
camionistas e taxistas: programa de negociação de dívidas com bancos públicos,
entre outros. Por outro lado, Bolsonaro enfrenta a denúncia do PT de uso de um “ecossistema
de desinformação”, formado por perfis bolsonaristas a partir da estratégia
digital do vereador Carlos Bolsonaro, além de três ações sobre uso eleitoral do
desfile de 7 de setembro de 2022, nas comemorações do bicentenário da
Independência.
Outras três ações apuram se o ex-presidente
cometeu abuso nas viagens oficiais para o funeral da rainha Isabel II e para a Organização
das Nações Unidas (ONU). E há ações a contestar a utilização do Palácio da
Alvorada para a campanha eleitoral, por meio de lives e eventos, a denúncia de tratamento privilegiado da emissora
de direita Jovem Pan, no período
eleitoral e uma suposta campanha paralela protagonizada por empresários,
pastores e entidades religiosas.
Na esfera penal, a 3 de maio, a
polícia federal cumpriu mandado de busca e apreensão na casa do ex-presidente,
em Brasília, para apurar a suposta fraude no cartão de vacinação contra a covid-19.
E Bolsonaro está na mira da justiça, ainda, por causa do citado escândalo do
referido desvio de joias sauditas e o do envolvimento nos ataques de 8 de
janeiro aos Três Poderes.
Aliás, desde 2014, é suspeito de um
total de 25 crimes, por omissão na pandemia, por incitamento à violação de uma
deputada e por outros, pelos quais terá de responder.
***
Por fim, é de sublinhar o facto de o
Brasil ser um dos poucos países a possuir um tribunal superior exclusivamente
para ilícitos eleitorais e o facto de, ao invés do que muitos apregoavam, haver
bolsonarismo sem Bolsonaro, pois a onda chegou ao Brasil para ficar, como no
resto do Mundo.
2023.06.30 – Louro de Carvalho
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