Deus prefere a misericórdia ao sacrifício. Por conseguinte, o
essencial não é o ato externo de culto ou a declaração de boas intenções (destas
está cheio o Inferno), mas a atitude de adesão verdadeira e coerente ao
chamamento de Deus e ao seu desígnio de salvação.
Assim, a Liturgia da Palavra do 10.º domingo do Tempo Comum,
no Ano A, constitui um forte apelo à conversão de mentalidade e de atitude.
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Na 1.ª leitura (Os
6,3-6), Oseias questiona a sinceridade da comunidade que, procura manipular
Deus e não se interessa em aderir, de coração sincero, à aliança. Os atos externos
do culto nada significam, se não há amor: amor a Deus e amor ao próximo (a
outra face do amor a Deus).
O ministério do profeta ocorreu no reino do Norte (Israel), a
partir de 750 a.C.. Em termos políticos, era um tempo de violência: reinados
curtos terminam em revoluções, assassínios, massacres. O aventureirismo dos
dirigentes e os jogos de alianças com as potências externas causam instabilidade
e anunciam o desastre nacional, o que sucederá alguns anos mais tarde, em 721
a.C., quando a Samaria é arrasada por Salamanasar V, da Assíria. E, no aspeto
religioso, Israel, permeável à influência cultural e religiosa dos povos
circunvizinhos, acolhe deuses estrangeiros coabitantes com Javé, no coração do
Povo e nos centros religiosos, embora Javé continue oficialmente como o Deus
nacional. Por outro lado, as alianças com povos estrangeiros revelam que Israel
já não confia em Deus e que prefere pôr a sua confiança e a sua esperança nos
guerreiros, nos cavalos, nos carros de guerra das superpotências.
O profeta sente o drama do sincretismo religioso que põe em
perigo a fé do Povo. Por isso, apela a que Israel não se deixe dominar pela
idolatria, que Oseias chama prostituição, ao comparar o Povo à esposa que
abandona o marido, para correr atrás dos amantes. E convida o Povo a
redescobrir o amor de Javé – sempre presente na história de Israel – e a
responder-Lhe com a sincera vontade de comunhão com Ele.
No início do capítulo 6, o profeta inscreve na boca do Povo
uma fórmula de arrependimento tomada da tradição cultual: “Vinde, voltemos para
o Senhor: Ele nos despedaçou, Ele nos curará; Ele fez a ferida, Ele nos porá o
penso que cura.” Porém, Oseias olha esta expressão com olhar irónico: Haverá,
da parte do Povo, o desejo de voltar para Deus e de deixar a idolatria?
O trecho em apreço glosa este mote. O profeta duvida da
sinceridade da conversão do Povo. Israel diz: “o Senhor é como a aurora,
pontual e inevitável, como a chuva que empapa a terra. […] Se soubermos fazer
bem as coisas, podemos pô-Lo do nosso lado e recuperar a vida que perdemos.” É
a atitude calculista de quem está convicto de que conhece Deus perfeitamente e
que é capaz de O manejar.
A isto, Deus reage com uma pergunta que parece denunciar uma
luta interior de Deu: “Que farei?” E, em a resposta, repetindo as imagens
usadas pelo Povo, Deus assume que não cederá, pois a conversão de Israel é superficial,
como o nevoeiro da manhã e como o orvalho da madrugada que logo se evapora.
Israel não se dispõe a mudar o coração; só está disposto a controlar Deus para
O colocar ao serviço dos seus interesses.
Ora, é imperioso que Israel manifeste, no quotidiano, a Javé a
sua vontade de “voltar para o Senhor”, através de uma vida coerente com os
mandamentos e de um amor que sai do fundo do coração e que se expressa em
gestos concretos de bondade, de justiça, de misericórdia. De contrário, os ritos
externos não passam de farsa.
O culto não pode ser um conjunto de ritos desligados da vida,
para aplacar Deus ou para ganhar a sua benevolência. Tem de ser, antes, a
expressão de uma vida – pessoal e comunitária – voltada para Deus, vivida ao
ritmo da aliança, no respeito por Deus e pelo seu desígnio.
Proclamar que Deus quer “a misericórdia (“hesed”) e não os
sacrifícios, o conhecimento de Deus (“daat Elohim”), mais do que os
holocaustos”, corresponde à lógica de Deus, cuja preferência é o coração que
aceita verdadeiramente viver em comunhão com Ele (conhecimento de Deus) e que é
capaz de gestos de amor, de ternura, de bondade, de misericórdia, em prol dos
irmãos.
O Senhor olha para o seu Povo compadecendo-se e chamando (“miserando
e eligendo”), o que deseja que nós repliquemos na relação de uns para com os outros.
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O Evangelho (Mt
9,9-13) apresenta a catequese da resposta a dar ao Deus que chama todos os
homens, sem exceção. O exemplo de Mateus sugere que o decisivo, na ótica de
Deus, é a resposta pronta ao seu convite para integrar a comunidade do Reino. O
trecho em referência integra uma longa secção em que Jesus, com palavras e
ações, a anuncia o Reino (vd Mt 4,23
a 9,35).
Na primeira parte da secção, temos o sermão da montanha, em
que Jesus apresenta a lei e o programa do Reino que veio inaugurar. É o anúncio
do Reino pela palavra. Na segunda parte, temos o anúncio do Reino das ações de
Jesus. O evangelista confronta-nos com três conjuntos de ações ou milagres de
Jesus que tornam presente a realidade do Reino. Entre cada conjunto, surgem reflexões
sobre o significado dos gestos de Jesus e sobre os apelos ao seu seguimento. O
trecho em apreço insere-se neste esquema: o apelo ao seguimento de Jesus.
As palavras de Jesus anunciam a chegada do mundo novo em que
os pobres e os fracos receberão a salvação de Deus; e os gestos de Jesus
mostram a realidade desse tempo novo de alegria.
Ora, os discípulos são convidados a aderir a esse Reino que
Jesus inaugurou e a tornarem-se testemunhas desse Mundo novo.
Na passagem proclamada nesta dominga, há dois episódios. O
primeiro corporiza o chamamento do publicano Mateus; o segundo apresenta a
descrição de um banquete em casa de Mateus e de uma controvérsia com os fariseus.
Com proveito ou sem ele, os publicanos eram considerados pecadores
públicos notórios. Como cobradores de impostos, além de estarem ao serviço do
opressor romano, tinham a fama (e muitos o proveito) de explorarem os pobres. Eram
associados aos ladrões, aos pagãos, aos assassinos e às prostitutas. Como
pecadores públicos estavam rotulados de permanente impureza, nem sequer podendo
fazer penitência, por serem incapazes de reconhecer todos aqueles a quem
defraudaram. E os fariseus, ciosos da sua santidade, mudavam de passeio quando,
na rua, vinha um publicano ao seu encontro. Era, portanto, gente
desclassificada (apesar de rica), considerada amaldiçoada por Deus e, por isso,
completamente à margem da salvação.
Porém, Jesus não olhou a condição humana de Mateus, avaliada
pelas outras pessoas. Viu nele, não o pecador ou o publicano, mas um ser
humano. Talvez tenha visto por dentro dele a sua ansiedade, a sua luta
interior. Olhou para ele com misericórdia (“miserando”) e escolhendo-o (“eligendo”),
chamou: “Segue-me!” A misericórdia impede Jesus de fazer aceção de pessoas. Não
veio escolher justos, mas pecadores; não os santinhos e ricos, mas os fracos e
carentes da misericórdia. Situação inédita, a provocada por Jesus!
Porém, o ineditismo da atitude de Jesus vai mais longe: aceita
sentar-Se à mesa com o pecador (estabelecendo com ele laços de familiaridade, de
fraternidade, de comunhão) – comportamento atentatório da moral e dos bons
costumes e verdadeira provocação.
O relato da vocação de Mateus não é substancialmente distinto
do relato do chamamento de outros discípulos. Em todos, trata-se de homens que
estão a trabalhar. Jesus chama-os e eles, deixando tudo, seguem-No. Os chamados
não são super-homens, santos, estranhos ao Mundo, sem contacto com a vida e com
os problemas e com os dramas dos outros homens e mulheres; são pessoas normais,
que vivem vida normal, que trabalham, lutam, riem e choram. Porém, são chamados
a seguir Jesus. O verbo “akolouthéô”, no modo imperativo, traduz a ação de “ir
atrás”, para definir a atitude de discípulo que aceita ligar-se a um mestre, escutar
as suas lições e imitar o seu estilo de vida. É isto que Jesus pede a Mateus, o
qual, sem objeções e sem pedidos de esclarecimento, deixa tudo e aceita ser
discípulo, em adesão radical a Jesus e ao seu programa de vida. Mateus define,
assim, o caminho do verdadeiro discípulo: o daquele que, na vida normal, se
encontra com Jesus, escuta o seu convite, o aceita sem discussão e segue Jesus
de forma incondicional. A esta adesão a Deus chama-se “fé”.
Contudo, a vocação de Mateus mostra um dado novo: o chamado é
cobrador de impostos. Com efeito, Deus tem uma proposta de salvação para todos
os homens, sem exceção; e não distingue entre bons e maus, mas destina-se a
todos os que estiverem interessados em acolhê-la.
O segundo episódio configura uma controvérsia entre Jesus e
os fariseus, porque Jesus, após convidar Mateus a integrar o seu grupo de
discípulos (um inédito que nenhum mestre da época aceitaria), “desceu mais
baixo” e aceitou sentar-Se à mesa com publicanos e pecadores.
O banquete era, na mentalidade judaica, o lugar do encontro,
da fraternidade, onde os convivas estabeleciam laços de família e de comunhão. Por
isso, o banquete é, para Jesus, o símbolo mais apropriado do Reino de
fraternidade, de comunhão, de amor sem limites, que Ele veio trazer aos homens.
E, ao sentar-Se à mesa com os publicanos e pecadores, Jesus diz, de forma
clara, que veio apresentar a salvação para todos, sem exceção, e que, nesse
mundo novo, têm lugar todos os homens e mulheres, independentemente das suas
opções ou decisões, mesmo que erradas. A única condição é aderir a Jesus.
Os fariseus, preocupados com as obras, com os comportamentos
externos, com o cumprimento estrito da Lei, não entendem. Porém, Jesus recordando-lhes
que “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os doentes”, cita a
frase de Oseias: “Prefiro a misericórdia ao sacrifício.” Há, nas afirmações de
Jesus, ironia: os fariseus julgavam-se justos, por cumprirem a Lei; mas, na ótica
de Deus, os justos são os os que, não se conformando com a triste situação em
que vivem, estão dispostos a acolher o dom de Deus
Jesus insiste, pela palavra, pelos gestos e pelo estilo de vida,
no lema “miserando et eligendo”, slogan
mateano que o Papa Francisco assumiu como lema pastoral, quando ascendeu ao episcopado
e que mantém como Sumo Pontífice, dando dele testemunho abundante.
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Na segunda leitura (Rm
4,18-25), Paulo apresenta aos cristãos (vindos do judaísmo e vindos do paganismo)
a única coisa essencial: a fé.
No ano 49, um édito do imperador Cláudio obrigara os judeus a
deixar Roma; e a comunidade cristã ficou entregue aos cristãos de origem pagã.
Porém, em 57/58, quando muitos judeus regressaram a Roma, a comunidade cristã passou
a contar, outra vez, com um grupo significativo de judeo-cristãos, que
encontraram a comunidade dirigida por cristãos convertidos diretamente do
paganismo e emancipada das tradições judaicas. Os cristãos de origem judaica,
não se sentindo bem acolhidos, criticavam as novas orientações. E a questão
provocou instabilidade.
Paulo deixa claro – com argumentação a partir da Escritura –
porque foi Abraão o depositário da promessa e se tornou fonte de bênção para a
sua descendência. Abraão tornou-se referência basilar para todos os crentes, não
por ter realizado obras meritórias ou por ter cumprido escrupulosamente a Lei,
mas por ter sido o homem da fé.
Assim, o apóstolo descreve a grandeza e a profundidade da fé
de Abraão. Apesar da avançada idade de Abraão e de Sara, sua esposa, o
patriarca não titubeou, quando Deus lhe anunciou o nascimento de Isaac. Ao
invés, esperou “contra toda a esperança”. Portanto, não são as nossas obras que
asseguram a salvação, mas a fé, isto é, a adesão radical, confiante, ilimitada
à salvação que, em Jesus, Deus nos dá. A salvação não é conquista do homem, mas
dom de Deus, oferecido gratuitamente por amor. E o homem é convidado a
acolhê-lo com fé e com confiança, transpondo para a vida quotidiana o lema de
Jesus de Nazaré e do Papa Francisco, lema que testemunha o rosto misericordioso
de Deus: “Miserando et elegendo…”.
2023.06.12
– Louro de Carvalho
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