É o primeiro
verso de um cântico eucarístico que o Padre Rui Morais Botelho, de saudosa
memória, compôs a fim de servir de introito para a liturgia da Missa da
Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo – composição para coro e
banda filarmónica – e que passou a figurar também no repertório de cânticos
para a comunhão.
Em dia em
que a Igreja Católica celebra solenemente a instituição da Eucaristia – pois o
clima de reflexão que envolve a noite de Quinta-feira Santa não propicia os “mil
cânticos de glória nas alturas” que subam da Terra aos Céus – importa que a
comunidade dos crentes, mobilizados que são todos os seus elementos, se reúna
em festa e, no templo e na rua, cante os louvores d’Aquele que, na véspera da sua
Paixão e Morte na cruz, como prova de perpétua doação, instituiu, sob as
espécies de pão e de vinho, o augusto mistério do seu corpo e sangue tornado
alimento do homem peregrino e banquete de toda a comunidade peregrina (a
Igreja), a antecipação do sacrifício de Sexta-feira Santa e da sua confirmação
na gloriosa madrugada da Ressurreição. É a esta comunidade, família dos filhos
de Deus, que incumbe anunciar, em cada dia, a morte do Senhor e proclamar a sua
ressurreição, enquanto, em espera ativa e jubilosa da sua última vinda, está em
saída pelo Mundo, a fazer crescer o número dos discípulos, em todas as
nações.
O trecho do
Evangelho proclamado nesta solenidade, no Ano A (Jo 6,51-58), insere-se no capítulo 6 do Quarto Evangelho.
Após a preparação
do cenário, com as personagens (Jesus, uma grande multidão, os discípulos) e
com as circunstâncias de lugar e de tempo, vem a interrogação socrática de
Jesus a Filipe (“Onde compraremos pão para que eles comam?”), não respondida corretamente
por Filipe. E a sugestão de André parecia manifestamente insuficiente, mas
seguiu-se-lhe o prodígio da distribuição-partilha dos cinco pães e dos dois
peixes que um rapaz tinha consigo.
A seguir,
temos os discípulos a atravessar, no escuro, o mar encapelado, e Jesus a vir ao
encontro deles, caminhando sobre o mar.
“No dia
seguinte”, a multidão que nota a ausência de Jesus, parte para Cafarnaum, à sua
procura.
Temos a
mudança de cenário. Neste novo lugar, comtemplamos a grande discussão (vv.
25-59) entre Jesus e a multidão ou os judeus, sobre o Pão do Céu, em que se
insere o trecho em apreço.
A discussão
apontada progride em texto ritmado, segundo esquema pergunta-resposta. As
perguntas vêm de multidão não identificada ou dos judeus, com as
correspondentes respostas de Jesus. Seguindo este esquema, o texto de João
6,25-59 comporta cinco itens: apelo ao trabalho pelo alimento que dá a vida
eterna; superioridade do Pão descido do Céu sobre o maná, que já tinha origem
em Deus (não em Moisés); primeiro discurso do Pão da Vida, com o objetivo da
realização da vontade de Deus e com o apelo à fé; murmúrio dos judeus e
afirmação do papel de Jesus, como mediador e como obreiro da ressurreição dos
crentes; e discurso do pão da vida, interrompido pela exaltação dos judeus, mas
reafirmado e desenvolvido por Jesus, de forma cabal.
É este item
que constitui o trecho evangélico que enforma o tema da solenidade, neste Ano
A, seguindo-se-lhe o abandono de muitos judeus, incluindo alguns discípulos e a
inefável confissão de fé de Pedro.
Às perguntas
dos judeus: “Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a
mãe? Como é que diz agora: ‘Eu desci do céu’?”, Jesus responde, afirmando claramente
a sua verdadeira identidade: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu […], pão que
é a minha carne, que Eu darei para a vida do mundo.” É de referir que Jesus não
está a responder à “multidão” anónima, mas aos “judeus”, que entraram em cena e
formularam as perguntas entre si.
A afirmação
de Jesus contém todos os elementos que importa: “Eu sou o pão vivo (ho zôn)
que desceu do céu”, “este pão é a minha carne”, e “dá a vida (zôê)”. Porém,
vem, logo a seguir, outra pergunta dos judeus, em réplica à resposta de Jesus.
A nova pergunta é: “Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?”
Em tréplica,
Jesus fala de vida nova e de alimento novo, côngruo com essa vida. É de anotar
que o verbo “comer” (trôgô) surge conjugado com o nome “carne” (sárx),
com o nome “pão” (ártos) e com o pronome “eu”, ou seja, “comigo” (me)
[“o que me come”]. Assim, “comer o pão descido do céu” é
“comer a carne do Filho do Homem”. São expressões que equivalem a comer a
pessoa de Jesus e o seu modo de viver. Só assim a vida eterna (zôê aiônios)
configura a nossa vida com a de Jesus. Tudo o que fica para trás, toda a História
passada se resume no maná, “que os vossos pais comeram, mas morreram”. O maná
tem referência só com a vida terrena, sem eficácia para lá da morte. Ao invés,
o pão que Jesus é e dá não sustenta a vida terrena, a não ser em casos muito
excecionais e raros (por exemplo, “Alexandrina de Balazar”). Em termos
terrenos, também Jesus morreu. Já o pão que Jesus é dá a vida eterna (zôê
aiônios).
Depois,
sobressai o tema da pertença mútua e permanente: “Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele.” Este segmento discursivo traduz a
comunhão eucarística do crente com Jesus. O verbo “comer” ganha, aqui, realismo.
Habitualmente, para dizer “comer”, usa-se o verbo grego esthíô.
Porém, neste discurso, João usa, para o nosso verbo “comer”, o verbo grego
trôgô (trincar, mastigar), que João só torna a usar em 13,18, no
contexto da ceia pascal. Vida nova e eterna, ressurreição, comunhão e intimidade
Deus-Humanidade são os fins da synkatábasis
de Jesus. Ele desceu ao nosso mundo e doou-se completamente a nós, deu a sua vida
(psychê) por nós e deu-nos a vida que não acaba (zôê aiônios).
Diz o Bispo
de Lamego, citando Paul Claudel, que, se interrogarmos “a velha terra”,
responderá sempre com o pão e com o vinho – palavras que traduzem bem a
Eucaristia. Os sinais do pão e do vinho atingem o alimento físico,
indispensável, e estão presentes, sobretudo, ao manifestarmos a comunhão na
alegria (solenidades e festas) e na dor (por exemplo, em rituais fúnebres). Com
efeito, Moisés diz, com energia, ao povo de Israel, reunido na planície de
Moab: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de
Deus” (Dt 8,3) – o que antecipa o
que, para nós, são os sinais do pão e do vinho: o alimento espiritual e
comunitário, radicado na bênção.
Talvez seja
interessante seguir D. António Couto, Bispo de Lamego, na sua análise ao curto
trecho de Paulo, na 1.ª Carta aos Coríntios (1Cor 10,16-17), provavelmente a
mais antiga evocação da Eucaristia, que se chamaria eulogía
(“bênção”), e que serviu de 2.ª leitura.
São duas
perguntas retóricas, para chegarmos a uma asserção unitário-comunitária.
“O cálice da
bênção (tò potêrion tês eulogías) que bendizemos (eulogoûmen) não
é comunhão (koinônía) no sangue de Cristo? O pão que partimos (kláô)
não é comunhão no corpo de Cristo?” O texto é curto e simples, mas condensado.
A bênção, hebraico berakah, é unitiva e põe em comunhão.
Parte de Deus, recai sobre o homem, mobiliza os homens e volta a Deus, unindo
Deus e homem e os homens entre si, num circuito interrompível. Ou parte do
homem ou dos homens, recai sobre Deus, e volta ao homem e aos homens, unindo-os
entre si, num circuito interrompível. “Bendizer” significa “dizer bem”, de que
resulta querer o bem e querer bem. Nas coisas de Deus, dizer tem consequência.
Crer exige compromisso e ação côngrua.
Não
obstante, passamos a vida a maldizer (“dizer mal”). Maldizer divide e leva a
querer mal e a querer o mal. Celebrar a Eucaristia, além de festa, é um programa
de vida, pois significa, “para quem nela participa, dizer bem, pensar bem, querer
bem, fazer bem”.
Por outro
lado, D. António Couto anota que, tradicionalmente, o Senhor da vida preside e
abençoa com a sua presença sacramental, caminhando connosco, em solene
procissão, os caminhos das nossas aldeias, vilas e cidades, sobressaindo o
pálio, com Jesus no ostensório. Assim, o pálio ou manto (pallium, em Latim; e, em Grego, há o verbo palýnô:
cobrir espargindo) de Deus atravessa as nossas aldeias, vilas e cidades,
cobrindo-nos de bênção, abraçando-nos e envolvendo-nos, e apela a que façamos o
mesmo, enchendo de graça e de esperança todos os irmãos.
E o texto
paulino justifica tudo isto com o facto de haver um só pão, o qual tem de ser
dado em partilha. Com efeito, sendo muitos e diversos, um só pão e um só cálice
fazem, de nós todos, um só; fazem da diversidade a unidade; de muitos fazem
comunidade e a comunhão.
Num Mundo em
crise como este em que vivemos, não podemos voltamos a viver “sem esperança e
sem Deus no Mundo”.
Na verdade,
como reza o trecho do Livro do
Deuteronómio (Dt 8,2-3.14b-16a), tomado como 1.ª leitura, o Senhor, nosso
Deus, põe-nos à prova, a fim de conhecer o íntimo dos nossos corações e
verificar se guardamos ou não os mandamentos. Porém, deu-nos a comer o maná que
não conhecíamos, nem os nossos pais conheceram, para fazer compreender que o
homem não vive só de pão,
mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor.
Foi Ele quem fez sair os nossos pais da casa de escravidão e nos conduz através
do imenso deserto da vida, entre serpentes venenosas e escorpiões, em terreno árido e sem águas. Foi Ele quem, da rocha
dura, faz nascer água para nós e, no deserto da vida, nos dá a comer o maná e o
pão da vida, da vida que não terá fim.
***
Portanto, em dia da Eucaristia, creiamos, dêmos graças, louvemos,
adoremos, festejemos, comunguemos. Todavia, é preciso sair à rua e testemunhar
a fé publicamente, como é urgente a ação junto do próximo necessitado. É
preciso construir e consolidar a comunidade, fazer unidade sem anular a
diversidade. Juntemos-mos aos anjos e santos que, perpetuamente adoram e
cantam: “Glória a Deus nas Alturas e paz na Terra aos homens por Ele amados!”
“Adoro-te, Divindade oculta” (Tomás de Aquino)
“Glorifica, Jerusalém, Senhor; louva, Sião, o teu Deus!” (Sl
147,12)
“Mil cânticos de glória nas Alturas, / se elevem ao Senhor.
/Cantai o Pão da Vida, criaturas, / cantai o Deus de amor.” (Rui Botelho).
2023.06.08 – Louro de Carvalho
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