As atuais circunstâncias colocaram o país na iminência
de uma crise política, alegadamente merecida pelo governo apoiado por uma
confortável maioria absoluta parlamentar, aparentemente ansiada pela direita e,
não raro, evocada pelo Presidente da República (PR).
Uns pretendem que o chefe de Estado se remeta ao
estrito limite das funções presidenciais, as quais – se entendidas em sentido estrito,
para lá do poder de veto político ou de solicitação da fiscalização prévia da
constitucionalidade das leis e decretos-leis, bem como da sua fiscalização
sucessiva (não exclusiva do PR), e do poder de dissolução da Assembleia da
República (AR), proibida nalgumas circunstâncias – se cingem ao papel de
árbitro, moderador ou notário dos demais órgãos de soberania (promulga, nomeia,
exonera, dirige mensagens, etc.). Com efeito, a maioria das suas competências
resultam de proposta ou de autorização, a não ser a designação de membros do
Conselho de Estado e do Conselho Superior de Defesa Nacional.
É certo que é o comandante supremo das forçar armadas,
mas o conteúdo desta prerrogativa é ténue em efetividade. É o garante do
regular funcionamento das instituições democráticas e pode, em nome desta
prerrogativa, demitir o governo, faltando definir os critérios objetivos do não
regular funcionamento dessas instituições. É o garante do regular funcionamento,
que não do ótimo, mas não é lícito que as instituições funcionem irregularmente
por ruído provocado pelo chefe de Estado. Obviamente, muitos querem, por força
do descontentamento pela ação do governo, que o PR esteja mais atento, fale
mais e seja mais rápido. Quando a oposição é superficial, ocupada com casos e
casinhos, que se podem resolver de uma penada, e se distrai da discussão dos
temas que realmente interessam ao país, feito de cidadãos, de tecido
empresarial e de malha associativa, põem os lhos e as esperanças no chefe de
Estado, esperando dele competências que a Constituição não lhe outorga.
Por isso, os presidentes da República têm lançado mão
da chamada magistratura de influência: presidências abertas, roteiros,
discursos, presença em celebrações significativas, etc.
Em artigo de 5 de junho no Expresso online, o advogado José Conde Rodrigues, face à atual
situação política, interroga-se sobre “como evoluirá a função e o desempenho do
órgão de soberania Presidente da República”.
Vincando que a discussão no espaço público, “a propósito do exercício menos
feliz das competências do governo” e do “exercício, mais ou menos exacerbado da
função presidencial”, leva muitos a confundirem “o regime político com o
sistema político e o discurso sobre a qualidade ou degradação do primeiro, com
a eventual necessidade de introduzir melhorias no segundo”, o ilustre causídico
– que foi governante, magistrado, autarca e docente – sustenta que é preciso
considerar a diferença entre regime e sistema e entre estado de degradação do
sistema e necessidade de lhe corrigir erros e de lhe introduzir melhorias.
Na verdade, não é de bom senso varrer tudo, cedendo à onda populista contra
o regime, que se iniciou, alegadamente, contra a inépcia de governantes e
contra os erros do funcionamento do sistema. Porém, muitos dos populistas de
agora beneficiaram dos erros do sistema, incluindo a corrupção ou a colocação
do poder democrático ao seu serviço ou ao dos compadres. E a pertença à União
Europeia (UE) não nos imuniza contra a ascensão da onda totalitária, como se vê
pelo que sucede na Polónia, na Hungria e na Itália.
Ora, em vez de mudar de regime, é preciso afinar o sistema e introduzir-lhe
melhorias. Não há dúvida de que é “desejável conservar o regime democrático”,
com “os direitos fundamentais”, e com separação, cooperação e interdependência
de poderes, mas tentando encontrar “o modelo de governação mais adequado aos
tempos em que vivemos e aos desafios que temos pela frente”, onde se inclui “o
questionamento da função presidencial”.
Na atualidade, os regimes políticos podem ser “totalitários, autoritários
ou democráticos”, embora o conceito de democracia não seja unívoco. Será
paupérrimo um regime democrático que se confine à democracia representativa
formal esgotável em eleições, sem cuidar do mínimo humano decente de democracia
económica, cultural e social, mas promovendo e respeitando os direitos da
cidadania do indivíduo e do grupo e visando o bem-estar da comunidade. E uma
democracia que se desenvolva com a mira na igualdade a todo o custo,
obnubilando as aspirações pessoais e de grupo, dificilmente se tem de pé, sem
cair em alguma forma de totalitarismo. Pensamento único e uniformidade total
nunca foram saudáveis em democracia.
Já um sistema político pode ser presidencial, parlamentar ou semipresidencial.
Apesar de todos os erros, o nosso regime é democrático e as instituições
funcionam com a regularidade exigida pela Constituição. O povo tem a palavra,
regularmente, em eleições presidenciais, em eleições legislativas (neste caso,
por vezes, com legislaturas interrompidas e ocasionadoras de nova eleição), em
eleições regionais e em eleições autárquicas. E, de vez em quando, é chamado a
referendar alguns temas. A AR legisla, fiscaliza o governo e designa os seus
representantes nos órgãos institucionais. O governo legisla nas matérias da sua
competência, nas comuns com a AR e nas de reserva relativa da AR, por
autorização desta; executa as leis; exerce a função regulamentadora; e
superintende na administração pública. Quando a AR lhe rejeita o programa,
aprova moção de censura ou não aprova moção de confiança, torna-se
demissionário. E os tribunais mantêm-se no terreno a administrar a justiça em
nome do povo, com demora e com imparcialidade, por vezes discutível e pouco
escrutinada do exterior.
Entretanto, dada a ambiguidade de que se pode revestir, na prática, a
função presidencial, Conde Rodrigues sugere reflexão “sobre a natureza e o
papel do Presidente da República”, mormente na resolução de crises políticas ou
de disfuncionamento do exercício do poder executivo.
Reconhece que o PR não é, no quadro constitucional vigente, órgão de
governo direto, assistindo-lhe o papel de moderador ou de árbitro, perante a AR
e perante o governo.
O governo não depende politicamente do PR (enunciado que me suscita dúvidas,
como justifico adiante), mas da AR e tem competência exclusiva na condução da
política geral do país e na superior coordenação da administração pública.
Assim, a relação entre governo e PR “não é funcional”, mas de “responsabilização”
e de “confiança meramente institucional”. Não sei o que é a confiança meramente
institucional.
A AR legisla e fiscaliza a ação do governo. Não pode demitir o PR, a menos
que este não cumpra o dever de pedido de autorização ou de assentimento para
deslocações ao estrangeiro. Todavia, pode rejeitar o programa do governo, aprovar
moções de censura ou recusar a aprovação de moção de confiança, situações que
acarretam a demissão do governo. Porém, a dependência do Governo perante a AR “não
exige um apoio maioritário”, mas que “não haja oposição maioritária”.
Relembra Conde Rodrigues que o sistema evoluiu, face ao figurino plasmado
na Constituição de 1976. Com efeito, com a revisão constitucional de 1982, “desapareceu
a responsabilidade política do governo perante o presidente”, afastando, assim,
“embora ligeiramente” – Vital Moreira discorda desta adverbialização), o
sistema da sua inspiração francesa, na designação de Maurice Duverger). E
quatro maiorias absolutas de um partido, resultantes de eleições legislativas,
na ótica de Conde Rodrigues, reforçaram a vertente parlamentar do sistema.
Desta forma, com governos suportados numa forte maioria parlamentar, dilui-se a
vertente presidencial do sistema, a ponto de alguns considerarem que o modelo
virou “para um parlamentarismo de chanceler à alemã”.
É verdadeiro o arrazoado. Todavia, é de ter em conta que, mesmo sem a
maioria de um partido, a vertente parlamentar se acentuou e funcionou bem,
perante um governo minoritário de um partido que, não tendo vencido as
eleições, concitou o apoio de todos os partidos à sua esquerda. Aí, o debate
público centrou-se na AR. E o PR nunca teve argumento para acenar com a
dissolução parlamentar. Além disso, a vertente parlamentar ficou vincada com a
revisão constitucional de 1982, independentemente da vontade do chefe de
Estado, que não pode livremente demitir o governo, nem recusar uma solução
parlamentar de governo. Ou, se o fizer, pode sair mal da situação. E é
discutível a dissolução da AR decretada por Jorge Sampaio, face a maioria
parlamentar, embora bipartidária, que funciona como um precedente.
Atualmente, tem-se acentuado – a meu ver, à revelia da Constituição – o
semipresidencialismo à francesa, ou seja, cresce a preponderância do PR, face
ao governo, com “um maior ativismo e presença política”. O PR reúne “diretamente
com ministros, com responsáveis por serviços públicos”, acompanha “diretamente
a gestão política interna” e perde “alguma da tradicional distância simbólica,
enquanto último pilar do sistema político”.
Conde Rodrigues questiona se funcionamento dos órgãos políticos é imune à
personalidade dos seus titulares e se a personalização do poder não se
transferirá, definitivamente, para o PR. E, considerando que este modelo
semipresidencial (um híbrido) não ajuda à legitimação responsável de quem
governa, a resposta é negativa. Com efeito, num Estado de Direito, a vontade do
titular não se sobrepõe à norma constitucional, sob pena de a sombra do “decisionismo”,
poder levar à mudança do próprio regime, “abrindo caminho a uma qualquer forma
de ditadura”.
Como deixei entreler, o constitucionalista Vital
Moreira, no blogue “Causa nossa”, a 6 de junho diz estar de acordo com a tese
principal de Conde Rodrigues sobre
a função presidencial de que, “num
Estado de Direito, a vontade do titular [de um órgão político] nunca se deve sobrepor
à norma [constitucional]”, mas não o acompanha na leitura do sistema de
governo estabelecido desde a revisão constitucional de 1982. Com efeito, em sua
opinião, a alteração principal foi “a de abandonar a responsabilidade política
do governo perante o PR, perdendo este o poder de demissão discricionária do
executivo”. Não se trata de “afastamento
ligeiro” do “modelo semipresidencial francês”, mas de “substancial
alteração, que retirou ao sistema a “natureza mista” da versão constitucional
originária, nos termos da qual o governo dependia politicamente tanto da AR
como do PR.
Assim, “o governo
passou a ser o único titular da condução política do país e a derivar a sua
legitimidade política das eleições parlamentares, respondendo politicamente
somente perante o parlamento”, e “o PR passou a ser um ‘poder moderador’
neutral, exterior à dialética governo-oposição, não compartilhando do poder
executivo e não podendo interferir na orientação política e na atuação do governo
e ficando encarregado sobretudo de velar pelo regular funcionamento das
instituições”. Ou seja, o PR não governa nem cogoverna, nem tem tutela política
sobre o governo. Por outras palavras, o sistema perdeu
a principal caraterística do semipresidencialismo, em sentido estrito.
Portanto, a presidencialização ou o sebastianismo do sistema, que alguns
políticos desejam, “não tem cabimento constitucional.
***
Concordando, no essencial, com os renomados colunistas,
objeto que a norma (condução da política e coordenação da administração) que
define o papel do governo se mantém inalterada desde 1976. Porém, então, a
norma da responsabilidade estabelecia que o governo é “politicamente responsável”
perante o PR e perante a AR; desde 1976, é “responsável” perante o PR e perante
a AR. De que tipo de responsabilidade se trata? A responsabilidade institucional
é política! Porém, a norma retira cada membro do governo da tutela do PR e da
AR: só responde “perante o primeiro-ministro” (PM) (como dantes), que responde
perante o PR e, “no âmbito da responsabilidade política”, perante a AR. Dantes,
o PM respondia “politicamente” perante o PR e, “no âmbito da responsabilidade
governamental”, perante a AR.
É por esta ambiguidade concetual que o PR vai demasiado longe
no uso do poder!
2023.06.06
– Louro de Carvalho
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