A Solenidade da Santíssima Trindade, que celebramos
no domingo subsequente ao domingo do Pentecostes, não visa a decifração do
mistério escondido por detrás
de “um só Deus em três pessoas”, iguais e distintas, mas tem em vista concitar
a contemplação e a adoração silenciosas, festejar a beleza, a grandeza e a misericórdia
do nosso Deus e testemunhar, claramente, pela palavra e pela vida, a
proximidade e o companheirismo de Deus com os homens, com o Povo. Configura o
convite a adorar e a amar o Deus que é amor, que é família, que é comunidade.
Para nos ajudar à reflexão sobre a realidade da Trindade Santa, neste Ano
A, dispomos de trechos do Livro do Êxodo,
da 2.ª Carta aos Coríntios e do Evangelho de João.
São João da Cruz, poeta, sacerdote carmelita espanhol e Doutor da Igreja,
considerava que, perante o mistério do Deus Triuno, a atitude do crente devia
ser o silêncio. O mistério é insondável e Deus fala no silêncio, que
proporciona o nosso recolhimento e atenção, enquanto o barulho distrai e perturba.
Por isso, nunca é excessiva a reflexão silenciosa e orante.
No trecho da 2.ª Carta aos Coríntios
(2Cor 13,11-13), Paulo exprime – com a
fórmula litúrgica de saudação “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e
a comunhão do Espírito Santo estejam convosco” – a realidade de um Deus que é
comunhão, que é família e que pretende atrair os homens para essa dinâmica de
amor.
A 1.ª Carta aos Coríntios, ao criticar
alguns membros da comunidade por atitudes pouco condicentes com os valores
cristãos, provocou uma reação que originou uma campanha para desacreditar o
apóstolo, o qual, informado de tudo, se dirigiu, apressadamente, para Corinto e
confrontou os detratores. Depois, retirou-se para Éfeso. Tito, seu amigo, partiu
para Corinto, a tentar a reconciliação. Entretanto, Paulo partiu para Tróade,
onde reencontrou Tito, regressado de Corinto, que lhe trazia notícias animadoras:
o diferendo fora ultrapassado e os Coríntios estavam, de novo, em comunhão com o
apóstolo. E Paulo, reconfortado, escreveu uma serena apologia do seu
apostolado, a que juntou o apelo a uma coleta para os pobres da Igreja de
Jerusalém. É a 2.ª Carta de Paulo aos
Coríntios, nos anos 56/57.
O trecho em apreço é a conclusão desta missiva. Se
compararmos esta despedida com a da 1.ª
Carta aos Coríntios, ficamos surpreendidos pela sua brevidade e por uma
certa impessoalidade. Afasta-se da tipicidade da despedida própria de uma carta
de reconciliação, parecendo deixar entrever o tom da despedida entre partes em
que persiste alguma tensão relacional. Contudo, vinca-se o vocativo “irmãos”, a
saudação de todos os santos (era o denominativo dos cristãos, ao tempo) e a recomendação
do “ósculo santo”.
Paulo deixa recomendações de caráter geral aos membros
da comunidade, entendíveis no contexto das dificuldades e tensões vividas
recentemente. Pede que sejam alegres, procurando, sem desistir, a perfeição; e
que, na relação fraterna, se animem mutuamente, tendo os mesmos sentimentos e
vivendo em paz. Porém, o mais notável da Carta é a fórmula final de saudação:
“a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo
estejam convosco”. É a fórmula mais claramente trinitária do Novo Testamento
(NT), certamente de origem litúrgica. Seria a fórmula que os cristãos utilizavam
quando, na celebração eucarística, faziam a saudação da paz. Esta fórmula
constitui impressionante confissão de fé no Deus trino. Manifesta a fé dos
crentes neste Deus que é amor e, portanto, que é família, que é comunidade. E,
ao utilizá-la, os crentes reconhecem-se como membros da família de Deus e
reconhecem que ser família de Deus exige que todos façam parte da única família
de irmãos. Convocados para viverem em unidade, vivem em comunhão com Deus e em
união com todos os irmãos.
No trecho do Livro do Êxodo, tomado como 1.ª leitura (Ex 34,4b-6.8-9), autoapresenta-se-nos o
Deus da comunhão e da aliança, apostado em estabelecer laços familiares com o
homem: o Deus clemente e compassivo, lento para a ira e rico de misericórdia.
O texto faz parte das tradições sobre a aliança do
Sinai, cujo denominador comum é a reflexão sobre um compromisso (“berit” –
“aliança”) que Israel assumiu com o Javé, o Senhor.
No texto bíblico, não há indicações suficientes para
identificar o monte da aliança. Em si, o nome “Sinai” não designa um monte, mas
a grande península de forma triangular, com mais ou menos 420 quilómetros de extensão
norte/sul, entre o mar Mediterrâneo e o mar Vermelho (no sentido norte/sul) e o
golfo do Suez e o golfo da Áqaba (no sentido oeste/este). É um deserto árido, acidentado,
com várias montanhas que chegam a atingir 2400 metros de altura.
O texto pode ter sido a primitiva versão Javista da
aliança do Sinai (século X a.C.), mas, na versão final do Pentateuco (séculos
V-IV a.C.), foi utilizado para descrever a renovação da aliança, rompida pelo
pecado do Povo.
No estado atual do Pentateuco, o esquema é: Israel
comprometeu-se com Javé; mas, na ausência de Moisés, no cimo do monte, o Povo
construiu um bezerro de ouro para representar Javé, o que era interdito pelos
mandamentos; então, Moisés intercedeu e Deus renovou a aliança com Israel.
Obtido o perdão de Deus, Moisés subiu sozinho à
presença do Senhor, levando as duas novas tábuas de pedra que havia talhado e
sobre as quais seriam gravados os mandamentos da aliança.
É aqui que o autor insere a teofania. Deus aproxima-se
de Moisés “na nuvem”. A nuvem, entre o Céu e a Terra, é o símbolo privilegiado
da expressão da presença do Deus que vem ao encontro do homem. E, escondendo e
manifestando, simultaneamente, indica o mistério de Deus, escondido e presente,
cujo rosto o homem não pode ver, mas cuja presença sente.
A teofania continua com a autoapresentação do Senhor. Deus
não refere a sua grandeza e omnipotência, mas vinca os atributos que O que
fazem o parceiro ideal na aliança: é o “Deus clemente e compassivo, sem pressa
para Se indignar e cheio de misericórdia e fidelidade”. Num desenvolvimento que
aparece no texto bíblico, mas que o trecho em apreço não contém, Javé fala da
sua misericórdia “até à milésima geração”, que é ilimitada e desproporcional, se
comparada à sua ira, “até à terceira e à quarta geração”. Os números, aqui, são
uma forma de representar a desproporcional misericórdia de um Deus,
infinitamente mais inclinado para o perdão do que para o castigo. E Israel é
convidado a conhecer e a comprometer-se com esse Deus que é fiel aos seus
compromissos e solidário com todos os que d’Ele necessitam e n’Ele creem.
Deus ama o seu Povo e cuida dele com bondade e
ternura. A sua misericórdia é ilimitada e irá sempre triunfar. Israel, o Povo
da aliança, pode estar confiante o Deus do amor e da misericórdia, garante a
sua fidelidade a esses atributos que O caraterizam. Moisés responde à teofania
com petições a Javé: que acompanhe o Povo em caminhada da terra da escravidão
para a terra da liberdade; que entenda a dureza do coração do Povo e lhe perdoe;
e que renove a eleição. E Deus, confirmando a sua autoapresentação, perdoa ao Povo
e propõe-lhe a renovação da aliança.
No Evangelho (Jo
3,16-18), João convida-nos a contemplar um Deus cujo amor pelos homens é tão
grande que enviou ao Mundo o seu Filho único; e Jesus, o Filho, obedecendo ao
Pai, fez da sua vida dom total, até à morte na cruz, para oferecer aos homens a
vida definitiva. Nesta história de amor, espelha-se a grandeza do coração de
Deus.
O trecho em referência insere-se na secção
introdutória do Quarto Evangelho (cf Jo
1,19-3,36), em que o Evangelista apresenta Jesus e procura – pelos contributos
das diversas personagens que vão ocupando o centro do palco – dizer quem é
Jesus. E a passagem proclamada na Solenidade em causa faz parte da conversa
entre Jesus e Nicodemos, chefe dos judeus, que foi visitar Jesus “de noite”, o
que dá a entender que não queria arriscar a sua posição na estrutura religiosa.
Membro do Sinédrio, aparecerá, mais tarde, a defender Jesus, perante os chefes
dos fariseus e estará presente quando Jesus for descido da cruz e colocado no
túmulo.
A conversa apresenta três etapas: Nicodemos reconhece
a autoridade de Jesus, graças às suas obras e Jesus considera que isso não é
suficiente, pois o essencial é reconhecê-Lo como o enviado do Pai; Jesus
anuncia que, para entender a sua proposta, é preciso nascer de Deus, explicando
que esse nascimento é o nascimento “da água e do Espírito”; e Jesus descreve o
plano de salvação, como iniciativa do Pai, tornada presente no Mundo e na vida
dos homens, através do Filho, e que se concretizará pela cruz/exaltação de
Jesus. O trecho em apreço pertence a esta última etapa. Após explicar a Nicodemos
que o Messias tem de “ser levantado ao alto”, como “Moisés levantou a serpente”
no deserto (evocando o episódio da caminhada pelo deserto em que os hebreus,
mordidos pelas serpentes, olhavam uma serpente de bronze levantada num poste
por Moisés e se curavam), a fim de que “todo aquele que n’Ele crê tenha vida
definitiva”, Jesus expõe como a cruz se insere no plano de Deus. Esta explanação
de Jesus procede em três passos.
Primeiro, indica o significado último da cruz. O Homem
a levantar na cruz veio ao Mundo, assumiu a história humana, compartilha a
nossa fragilidade; e, em consequência de uma vida gasta a lutar contra as forças
das trevas e da morte os homens, foi preso, torturado e morto numa cruz. A cruz
é o último ato de uma vida vivida na doação.
Este Homem é “o Filho único de Deus”. A expressão
evoca o sacrifício de Isaac: Deus comporta-Se como Abraão, que se desprendeu do
próprio filho por amor a Deus e ao seu desígnio em favor dos homens. A cruz é,
portanto, a expressão suprema do amor de Deus pelos homens. E o objetivo de
Deus, ao enviar o seu Filho único ao encontro dos homens, é libertá-los da
alienação e dar-lhes a vida eterna. Com Jesus – o Filho único que morreu na
cruz – os homens aprendem que a vida está na obediência ao plano do Pai e no dom
da vida aos homens.
Em segundo lugar, torna-se clara a intenção de Deus,
ao enviar ao mundo o seu Filho único: Jesus veio ao Mundo, porque o Pai ama os
homens e quer salvá-los. O Messias não veio com missão judicial, nem veio
excluir ninguém. Ao invés, veio oferecer a todos os homens a vida definitiva,
ensinando-os a amar e dando-lhes o Espírito que os transforma em Homens Novos.
Deus não enviou o seu Filho único ao encontro de
homens perfeitos, mas enviou-O ao encontro de homens pecadores. E o amor de
Jesus – bem como o Espírito que Jesus deixou – transformou os homens egoístas,
orgulhosos, autossuficientes e inseriu-os na dinâmica de vida nova e plena.
Por fim, vêm as duas atitudes que o homem pode tomar: se
aceita a oferta de Jesus, adere a Ele, recebe o Espírito, vive no amor e na
doação, escolhe a vida; se continua escravo de esquemas de egoísmo e de autossuficiência,
autoexclui-se da salvação. A salvação ou a condenação não são prémio ou castigo
de Deus ao homem pelo seu bom ou mau comportamento, mas o resultado da escolha
livre do homem, face à oferta incondicional de salvação que Deus lhe faz.
Na perspetiva joânica, mais do que o julgamento
futuro, no final dos tempos, em que Deus pesa os pecados dos homens, a ver se
os há de salvar ou condenar, o juízo realiza-se “aqui e agora”, dependendo da
atitude que o homem assume face à proposta de Jesus. Porque ama a Humanidade,
Deus enviou o seu Filho único com a oferta de salvação, que nunca foi retirada,
antes continua aberta e à espera de resposta. O homem pode escolher a vida
eterna ou excluir-se da salvação.
***
Feito o silêncio que a contemplação do mistério impõe e
recolhidos os frutos da aprendizagem que o mesmo silêncio proporciona, os crentes
não podem calar-se. Têm de festejar as maravilhas de Deus e vir para a rua (a
festa é em comunidade). Têm de as proclamar de viva voz ou na discrição atitudinal,
por palavras e por gestos de vida de amor, de entrega, pessoal e comunitária.
Embora a fórmula paulina da saudação do final da 2.ª Carta aos Coríntios seja a fórmula
mais claramente trinitária em todo o NT, os Evangelhos e as Cartas estão perpassados
do fenómeno unitivo de Pai e Filho, a par da procedência do Espírito Santo do Pai
e do Filho. Assim o entenderam os Padres da Igreja. Assim, o entendem e vivem os
crentes. Assim o testemunham a literatura, a liturgia e as artes visuais.
2023.06.04 – Louro de Carvalho
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