Celebrou-se, a 16 de junho, nove dias após a solenidade do
Corpo e Sangue de Cristo, a celebração móvel da solenidade do Sagrado Coração
de Jesus, que mais não é do que o mistério de Deus que ama o ser humano, todo e
em todas as pessoas, simbolizado no coração, enquanto órgão do corpo humano culturalmente
símbolo do amor oblativo. Não é o coração físico que se adora, mas o que ele
significa da parte Deus, cujo Filho unigénito Se encarnou para viver a vida
humana e Se doar em redenção de toda a Humanidade, sem qualquer exceção.
A liturgia, no Ano A, ensina que a essência do Deus uno e trino
em quem acreditamos “é amor”, pelo que somos convidados a contemplar a bondade,
a ternura e a misericórdia de Deus, a deixarmo-nos enrolar nessa dinâmica de
amor, amor não carnal ou erótico, mas de doação.
***
Desde logo, a 1.ª leitura (Dt 7,6-11) mostra que foi o amor – eterno, gratuito e incondicional
– que levou Deus a eleger Israel, a libertá-lo da opressão, a fazer com ele uma
Aliança, a derramar a sua misericórdia na História daquele povo,
O Livro do Deuteronómio
é o livro da Lei ou livro da Aliança descoberto no Templo de Jerusalém no 18.º
ano do reinado de Josias (622 a.C.). Nele, os teólogos deuteronomistas lançam
os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por
todo o Povo, num único local de culto (Jerusalém); Deus amou e elegeu Israel e
fez com Ele uma aliança; e o Povo de Deus deve ser único, a propriedade pessoal
de Javé. Não fazem sentido as divisões.
Literariamente, é o conjunto de três discursos de Moisés,
pronunciados nas planícies de Moab, na margem oriental do rio Jordão, à vista
da Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da morte, Moisés, em testamento
espiritual, lembra os compromissos assumidos, pelo povo, para com Deus, e
convida-o a renovar a aliança.
O trecho em apreço, que integra o segundo discurso de Moisés
(Dt 4,44-28,68), tem introdução (Dt 4,44-11,32), secção legal (Dt 12-25) e conclusão (Dt 26-28).
A introdução tem duas classes de textos: relatos históricos e
passagens de tipo parenético. A passagem em análise integra o bloco parenético,
que vai de Dt 6,4 a 9,7a. Depois de definir Javé como o único Deus de Israel, o
hagiógrafo define Israel como Povo consagrado ao Senhor.
Dizer que Israel é “um Povo consagrado ao Senhor” é dizer que
Israel é um Povo santo, separado, “reservado para o serviço do Senhor”. A
santidade é nota constitutiva da essência de Deus e, aplicada ao Povo,
significa que este entrou na esfera divina. Fica, porém, claro que o responsável
pela eleição de Israel é Deus. Não foi Israel que se consagrou ao serviço de
Deus, mas foi Deus que, por sua iniciativa, escolheu Israel de entre todos os
outros povos, fez dele um Povo especial e pô-lo ao seu serviço.
Segundo a catequese deuteronomista, a eleição divina de
Israel não se baseia na sua grandeza, mas no amor gratuito de Deus e na sua
fidelidade ao juramento feito aos antepassados. Toca-se aqui o mistério do amor
insondável e gratuito de Deus para com o seu Povo, amor estranho e inexplicável,
mas inquestionável e eterno. A eleição divina de Israel é realidade que Israel
pôde confirmar na sua História. A libertação do Egipto, a derrota do poder opressor
do faraó e a fuga do Povo oprimido para a segurança libertadora do deserto
confirmam a eleição de Israel e o amor de Deus pelo seu Povo. Por isso, Israel
deve reconhecer que Javé “é que é Deus”. E a resposta do Povo ao amor de Deus
deve traduzir-se na observância dos “mandamentos, leis e preceitos” que Javé
continua a propor. Os mandamentos são os sinais que permitem a Israel manter-se
em comunhão com Deus, como Povo santo consagrado ao Senhor.
***
A 2.ª leitura (1Jo 4,7-16) diz, taxativamente, que “Deus é
amor”. E esse amor manifesta-se, de forma concreta, clara e inequívoca, em
Jesus Cristo, o Filho de Deus que Se tornou um de nós para nos manifestar – até
à morte na cruz – o amor do Pai.
A 1.ª Carta de João foi escrita por alguém que pertence ao
mundo joânico: João, algum discípulo do apóstolo João, um membro da sua escola
ou um porta-voz da comunidade onde João viveu e testemunhou o Evangelho de
Jesus. Sem destinatário explícito, provavelmente, dirige-se a um grupo de
Igrejas da Ásia Menor, comunidades que vivem grave crise, graças à difusão de
doutrinas heréticas, incompatíveis com a revelação cristã.
É provável que os pregadores dessas doutrinas corporizem um
movimento judaizante pré-gnóstico de pessoas que pretendem conhecer a Deus e
viver em comunhão com Ele, mas que se recusam a ver em Jesus o Messias e o
Filho de Deus, que o Pai enviou ao Mundo e que incarnou no meio dos homens.
Dizem não ter pecado e não guardam os mandamentos, em particular o do amor
fraterno. São “anticristos” e “profetas da mentira”. Assim, o objetivo do
epistológrafo é advertir os cristãos contra as pretensões daqueles pregadores
heréticos. É uma fase da História da Igreja em que os líderes das comunidades se
preocupam com a manutenção da comunidade na fidelidade ao Evangelho, face aos
desafios e aos ataques das heresias.
Para tanto, os crentes os crentes são elucidados sobre os
critérios da autêntica vida cristã, ou seja, sobre a via da verdadeira comunhão
com Deus. Após a apresentação de Deus como Luz e da proposta aos crentes da
vida em comunhão, vem à tona o modo como se vive em comunhão com Deus, ficando evidentes,
neste âmbito, os dois grandes pilares da vida cristã – a fé e o amor.
No trecho que a liturgia da solenidade dá à meditação, o epistológrafo
quer persuadir os crentes de que o amor é o elemento essencial da identidade
cristã, distinguindo os que são de Deus dos que o não são. Isto, porque Deus é
amor, ou seja, o amor é a essência de Deus, a sua caraterística fundamental, a
sua atividade mais significativa. Ao relacionar-se com o homem, Deus toca-o, indefetivelmente,
com toda a sua bondade, misericórdia e ternura.
Não se trata de uma qualidade abstrata de Deus, mas de ações
concretas em prol do homem. O amor de Deus manifesta-se, de forma insofismável,
no envio de Jesus, o Filho, que Se tornou homem como nós, partilhando a nossa
humanidade, e que nos ensinou a viver a vida de Deus, levando ao extremo o seu
amor pelos homens, com a morte na cruz.
E, como Deus é amor, os que nasceram de Deus e que são de
Deus devem viver no amor. “Se Deus nos amou, também nós devemos amar-nos uns
aos outros”. Não basta descobrir que Deus nos ama e contemplar esse amor. O
amor de Deus transforma o coração do homem e insere-o num dinamismo de vida
nova. Como o amor de Deus por nós, também o nosso amor pelos irmãos deve ser
gratuito e incondicional. Viver no amor é escolher Deus em permanência e viver
em comunhão com Ele. O Espírito reside em nós e opera, por nós, obras
grandiosas em prol dos homens, obras que testemunham a inefabilidade do amor
divino.
Os heréticos que julgam possível conhecer Deus, sem aceitar
Jesus Cristo como o Filho de Deus incarnado e sem amar os irmãos podem fazer
gala de todas as pretensões que quiserem de conhecer a Deus, mas estão longe
d’Ele. Por isso, necessitam de genuína conversão.
***
O Evangelho (Mt
11,25-30) garante que o Deus-amor tem um desígnio de salvação para todos os
homens. Porém, dirige-se, em especial, aos pequenos, aos humildes, aos
oprimidos, aos excluídos, aos que jazem em situações de sofrimento. São os mais
necessitados e os mais disponíveis para acolher o dom de Deus. Só quem acolhe e
segue Jesus poderá viver como filho de Deus, em comunhão com Ele.
O trecho em referência integra a secção em que o evangelista
apresenta as reações e as atitudes das várias pessoas e grupos perante Jesus e
ao Reino de Deus (Mt 11,2-12,50).
Nos versículos que antecedem este episódio, Jesus criticou os
habitantes de cidades situadas à volta do lago de Tiberíades (Corozaim, Betsaida,
Cafarnaum), porque testemunharam a salvação e se mantiveram indiferentes. Cheios
de si e calcificados em preconceitos, não se questionavam para abrir o coração
à novidade de Deus. Agora, Jesus manifesta-Se convicto de que a salvação,
rejeitada por aquelas cidades, encontrará acolhimento nos pobres e
marginalizados, desiludidos com a religião oficial e ansiosos pela libertação
que Deus lhes oferece.
O trecho proclamado consta de três sentenças, provavelmente,
pronunciadas em ambientes diversos deste que Mateus apresenta. Duas, comuns a
Lucas, devem provir de um documento que reuniu os “ditos” de Jesus e que os
dois evangelistas utilizaram na composição dos seus Evangelhos. A terceira,
exclusiva de Mateus, deve provir de fonte própria.
A primeira sentença (Mt
11,25-26) é uma oração de louvor que Jesus dirige ao Pai, porque Ele escondeu
“estas coisas” aos “sábios e inteligentes” e as revelou aos “pequeninos”.
Esses sábios e inteligentes são os fariseus e os doutores da
Lei (há tantos em todos os tempos e lugares) que absolutizam a Lei e que se
consideram justos e dignos de salvação por cumprirem escrupulosamente a Lei,
não deixando pôr em questão o sistema religioso em que se instalaram e que, na
sua ótica, lhes garante, automaticamente a salvação. Os pequeninos são os
discípulos, os primeiros a responder à oferta do Reino; e são os pobres e
marginalizados, os doentes, os publicanos, as mulheres de má vida – o povo da
terra, que Jesus encontra, todos os dias, pelos caminhos da Galileia –
considerados malditos pela Lei, mas que acolhem, com alegria e entusiasmo, a
libertação trazida por Jesus de Nazaré.
A segunda sentença (Mt
11,27) explica o que foi escondido aos sábios e inteligentes e revelado aos
pequeninos: o conhecimento de Deus, isto é, a experiência profunda e íntima de
Deus. Os sábios e inteligentes estão convictos de que o conhecimento da Lei
lhes dá o conhecimento de Deus. Por isso, arvoram-se em detentores da verdade, representantes
legítimos de Deus, capazes de interpretar o desígnio e a vontade divinos. E Jesus
deixa claro que, para a experiência profunda e íntima de Deus, tem de se aceitar
Jesus e segui-Lo. Ele é o Filho e só Ele tem a experiência profunda de
intimidade e de comunhão com o Pai. Quem rejeitar Jesus não poderá conhecer
Deus. Encontrará imagens distorcidas de Deus e aplicá-las-á para julgar o mundo
e os homens.
A terceira sentença (Mt
11,28-30) é o convite a ir ao encontro de Jesus e a aceitar a sua pessoa e
missão: “vinde a Mim”; “tomai sobre vós o meu jugo…”.
Para os fariseus, a imagem do jugo é aplicada à Lei de Deus,
a suprema norma de vida. A Lei, para eles, não é jugo pesado, mas jugo
glorioso, que deve ser carregado com alegria. Porém, de facto, é um jugo
pesadíssimo. A impossibilidade de cumprir os 613 preceitos da Lei escrita e
oral cria consciências atormentadas. Os crentes, incapazes de a cumprir, sentem-se
malditos, afastados de Deus e indignos da salvação. A Lei aprisiona, em vez de
libertar, e afasta os homens de Deus, em lugar de os introduzir na comunhão com
Ele.
Jesus veio libertar o homem da escravidão da Lei. E a libertação
é, para os doentes (tidos por vítimas de castigo de Deus), para os pecadores
(publicanos, mulheres de má vida, todos os que tinham comportamentos política,
social ou religiosamente incorretos), para o povo simples (que, pela dureza da
vida, não podem cumprir os ritos), para todos os que a Lei exclui e amaldiçoa.
Jesus garante que Deus não os exclui, antes os convida a integrar o mundo novo
do Reino. Aí encontrarão a alegria e a felicidade.
Porém, o Reino de Deus não é exclusivo de uma classe
determinada – os pobres, os fracos, os marginalizados – em detrimento de outra,
a dos ricos e poderosos, os da situação. O Reino é para todos os homens e
mulheres. Todavia, aos ricos e poderosos, cheios de si, dos seus interesses e dos
seus esquemas, custa-lhes aceitar a novidade de Deus. E são os pobres e débeis,
os que desesperaram do socorro humano que têm o coração mais disponível para
acolher Jesus. Acolhendo Jesus e seguindo-O, os pobres e oprimidos encontrarão
o Pai, tornar-se-ão filhos de Deus e encontrarão a vida em plenitude.
***
Ícone do coração misericordioso do Pai espelhado no corpo de
Jesus, o Cristo, é o lado aberto do Crucificado rompido pela lança do soldado romano.
Dele jorrou sangue e água para a vida eterna, ganha, para nós pelo sangue de
Jesus, a quem aderimos pelo Batismo e que festejamos na Eucaristia.
2023.06.17
– Louro de Carvalho
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