Um despacho interno, de
1 de junho, do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Nuno Félix, instruiu
os serviços da Autoridade Tributária (AT) a cortar na fórmula de cálculo do
apoio às rendas destinado a inquilinos com rendimentos anuais até 38.632 euros,
referentes a 2021, e com taxa de esforço igual ou superior a 35%, alterando os
critérios previstos no Decreto-Lei n.º 20-B/2023, de 22 de março, segundo o
qual o
apoio ao arrendamento é atribuído, automaticamente, aos agregados que
ultrapassem a taxa de esforço de 35% e com rendimentos até ao 6.º escalão do
imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), sendo paga a diferença
entre a taxa de esforço e o valor da renda, no máximo de 200 euros mensais.
Assim, reduzem-se,
substancialmente, as prestações e haverá quem fique impedido de aceder ao
subsídio. Tudo, para manter a importância de 240 milhões de euros, prevista no Orçamento
do Estado, e não abrir um buraco orçamental de 760 milhões de euros, pois,
feitas as contas, o total de apoios rondaria os mil milhões de euros. Segundo o
Dinheiro Vivo (DV), o governo terá feito mal as contas sobre o impacto do apoio e,
quando se apercebeu de que o apoio custaria muito mais do que o previsto, mudou
as regras do jogo.
A resolução não pública
do ministério de Fernando Medina pede ao Fisco que tenha em conta os
rendimentos brutos e os sujeitos a taxas especiais, como a pensão de alimentos,
as mais-valias ou os relativos a rendas, para apurar o valor do subsídio,
contrariando o supracitado decreto-lei, que dita que devem ser considerados os
rendimentos para determinação da taxa apurado pela AT na liquidação do IRS. Ora,
isto diz respeito à matéria ao rendimento coletável, depois das deduções específicas,
em média 4.104 euros. Porém, a norma interna do secretário de Estado considera:
“A lei em causa recorre a um conceito de rendimento anual sem definição legal
expressa com correspondência na legislação fiscal e, consequentemente, quanto
ao rendimento mensal do agregado familiar.”
O fiscalista Luís Leon
e a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO) discordam, frisando
que rendimento anual para determinação da taxa de IRS diz respeito à matéria
coletável, depois do abate das deduções específicas mais os rendimentos
isentos, como o IRS Jovem. Assim, o despacho contraria o disposto no
decreto-lei”. Aliás, no formulário de liquidação do IRS, existe o campo 9,
relativo ao “total do rendimento para determinação da taxa” e não ao rendimento
bruto. Por isso, ao mudar-se a fórmula, os potenciais apoios a chegar às contas
bancárias das famílias elegíveis reduzem-se, podendo haver situações de
exclusão da medida, porque os ganhos considerados são bem superiores face ao
definido por lei.
Ao DV chegam dezenas de queixas de famílias que mostram cumprir todos
os critérios de elegibilidade, mas que se deparam com um apoio mensal inferior
ao que deveriam ter recebido. Só á título de exemplo, uma mãe divorciada com
duas filhas a cargo teve o rendimento coletável, em 2021, de 6. 951,65 euros
anuais ou de 496,54 euros a 14 meses, segundo a nota de liquidação de IRS, e
paga a renda mensal de 464,88 euros, o que corresponde à taxa de esforço de
93,6%. Feitas as contas, para baixar aquela percentagem para 35%, esta família
monoparental deveria ter direito ao subsídio mensal máximo, de 200 euros. Mas,
em vez disso, a Segurança Social (SS) pagou-lhe apenas 44,88 euros, menos
155,12 euros por mês, porque, na equação, foi considerado o rendimento bruto de
11.200,01 euros anuais, a que foi erradamente somada a prestação de alimentos,
de 5.600 euros, uma vez que não foi englobada no rendimento, tendo sido tributada
à parte. O total perfaz 16.800,01 euros brutos anuais ou 1.200 euros/mês e a
taxa de esforço 38,74%. Daí que o apoio atribuído seja só 44,88 euros por mês.
Para o governo, trata-se, contudo, de
justiça fiscal. Segundo esclarecimentos prestados pelos ministérios da
Habitação, das Finanças e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, para
assegurar um tratamento equitativo dos diferentes tipos de rendimento, o apoio
foi calculado com base no rendimento coletável, acrescendo: a correspondente
dedução específica; os rendimentos considerados para a determinação da taxa
geral do IRS aplicável; e os rendimentos considerados para a aplicação das
taxas especiais. Na prática, o governo têm em conta os rendimentos brutos e os
sujeitos a taxas especiais, como pensões de alimento e rendas auferidas.
O despacho estipula ainda que os inquilinos que tenham taxas de esforço
acima dos 100%, quando tomados em conta os rendimentos de 2021, e que ainda não
receberam o apoio, verão a taxa de esforço recalculada com base nos rendimentos
de 2022 (plasmados na declaração de 2023). Se o recálculo continuar a dar
origem a uma taxa de esforço superior a 100%, ainda não é claro o que acontece,
mas, sendo inferior, são elegíveis.
O apuramento do apoio será feito a partir dos rendimentos declarados na
mais recente declaração de IRS ou, em alternativa, dos rendimentos com registo
disponível na SS.
Por
estar em curso a campanha de IRS, referente aos rendimentos de 2022,
definiram-se os rendimentos de 2021 como base para o cálculo dos montantes a
atribuir. Ao detetar taxas de esforço acima dos 100% com base nesses
rendimentos, isto é, se o rendimento médio mensal for inferior ao valor da
renda, a AT, como responsável pela determinação dos montantes a atribuir,
procederá ao recálculo do apoio, mas com base na declaração entregue em 2023.
Com
efeito, dos ministérios envolvidos chegou a informação de que, se os dados dos
rendimentos transmitidos pela AT, pela SS ou pelo Instituto da Habitação e Reabilitação
Urbana (IHRU) não forem coerentes com os constantes dos contratos de
arrendamento, evidenciando taxas de esforço superiores a 100%, o pagamento do
apoio dependerá da verificação daquela taxa de esforço, em face do rendimento
declarado relativamente a 2022, nas declarações de IRS de 2023.
Os
referidos ministérios atualizaram também os números referentes ao mês de
estreia deste apoio. O universo de famílias elegíveis é de 185 mil,
representando cerca de 200 mil cidadãos. E o número de inquilinos sem o IBAN
atualizado na plataforma digital Segurança Social Direta é superior aos 20 mil
avançados, a 19 de junho, pelo Ministério da Habitação: são 36 mil os
beneficiários que deverão atualizar o IBAN, para que o apoio lhes possa cair na
conta.
Cerca
de 20 mil famílias “têm prestações inferiores a 20 euros, o que significa que
pode ainda não ter sido processado”. E “todas as pessoas abrangidas receberão
uma carta da Autoridade Tributária com a informação que determinou o valor a
ser pago, com a identificação do email (rendasapoio@at.gov.pt)
para o qual podem remeter qualquer dúvida que subsista”.
Contudo,
ficam por esclarecer o porquê de terem sido excluídos vários contribuintes com
rendimentos exclusivos da SS, como pensões, subsídio de desemprego ou
rendimento social de inserção – sendo, nestes casos, o cálculo feito com base
nos rendimentos constantes do sistema da SS – que deveriam ter recebido o apoio
a 30 de maio.
***
Porém, a oposição em peso critica as alterações, chamando-lhes “fraude
política” e “inaceitável injustiça”. O Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP), o
Partido Social Democrata (PSD) e o Chega já vieram criticar as notícias que dão
conta de uma interpretação do secretário de Estado, que, indo além da lei,
restringe o acesso dos inquilinos ao apoio público às rendas. Uns querem ouvir
os ministros das Finanças e da Habitação no Parlamento, outros enviam perguntas
formais e outros viram-se para a Provedoria de Justiça.
O PCP
endereçou três perguntas ao ministro das Finanças, Fernando Medina,
considerando que, se as notícias se confirmarem, se estará, no dizer do
deputado Bruno Dias, perante uma “autêntica fraude política, uma inaceitável
injustiça”. O BE e o PSD querem ouvir os ministros das Finanças e da Habitação
no Parlamento. Isabel Pires, do BE, quer explicações sobre as queixas de
cidadãos arredados dos apoios públicos e pretende perceber o que se passa,
porque se passa e como pretendem resolver o problema com a maior celeridade
possível. E Leitão Amaro, do PSD, identificou três problemas: a existência de
“mais de 100 mil portugueses” fora do apoio a que tinham direito e milhares de
portugueses com muito menos apoio do que o governo prometeu e a que a lei lhes
dava direito; a aparente ilegalidade, que consiste em um despacho contrariar a
lei, algo que, a confirmar-se, é inadmissível; e “uma fraude democrática”, ao
ter prometido um apoio automático, com certas condições e, por despacho
interno, dar bastante menos.
Já o Chega
anunciou ter pedido à Provedoria de Justiça a “urgente emissão” de um parecer
sobre a constitucionalidade e a legalidade do referido despacho do Ministério
das Finanças sobre o apoio às rendas e ter questionado o Governo sobre a
matéria.
***
Por sua vez, o Ministério das Finanças admite a necessidade de clarificar,
por via legislativa, as regras que definem o rendimento que serve de base ao cálculo
de apoios aos inquilinos. Na prática, isto significa que o conjunto de
rendimentos a ter em conta para se definir a taxa de esforço face à renda
mensal poderá ser maior, o que poderá implicar diminuição do número de
arrendatários elegíveis e do montante total dos apoios atribuídos.
Ao incluir mais rendimentos na base de cálculo, o rendimento médio mensal
apurado de cada inquilino – a divisão do rendimento total por 14 meses – aumenta
e a taxa de esforço diminui, o que implica uma diminuição dos montantes a pagar
face à expectativa inicial dos contribuintes, e a exclusão de locatários que
passam a não cumprir os critérios.
Perante críticas de fiscalistas e da oposição, que consideram que esta
interpretação não resulta da lei, as Finanças admitem revê-la: “O referido
despacho uniformizou e clarificou a aplicação do apoio extraordinário, em tempo
útil de este chegar ao terreno quando as famílias mais precisam e no
pressuposto de não estar a ser ultrapassado qualquer limite legal. Subsistindo
dúvidas e a bem da segurança jurídica, promover-se-á, por via legislativa, tal
clarificação.”
O despacho, segundo o Ministério das Finanças, “visa dar orientações
uniformes aos serviços sobre a aplicação concreta da medida de apoio às rendas,
assegurando os princípios que subjazem a todos os apoios de rigor orçamental,
de rapidez de aplicação, justiça e de equilíbrio.”
Para o cálculo do apoio, as Finanças têm, assim, de considerar as deduções
específicas e “não só o rendimento englobado e tributado à taxa geral de IRS,
como também o rendimento tributado às taxas especiais”, isto é, rendimentos
como mais-valias, rendimentos prediais, e pensões de alimentos, que são
tributados a taxas autónomas. E o despacho sublinha: “Uma vez que a lei não
qualifica o tipo de taxa, logo o rendimento para a determinação da taxa, pelo
que onde a lei não distingue não deve o intérprete distinguir.” Ficam também excluídos
do apoio, à data do levantamento dos dados para o apuramento, os arrendatários
que não tenham rendimentos, a menos que os aufiram através da SS, bem como os
contratos de arrendamento e de subarrendamento não renováveis que chegaram ao
seu termo; os arrendatários já falecidos à data da recolha dos dados; os inquilinos
que constem como não residentes no cadastro; e os inquilinos cujo domicílio
fiscal não coincida com a morada do contrato de arrendamento.
***
Do meu ponto de vista, o despacho faz uma interpretação conveniente, mas
forçada, do decreto-lei. Embora, em minha opinião, os dados a ter em conta
devessem ser os estabelecidos no despacho, pois, em geral, na Administração
Pública, as contas fazem-se pelo rendimento bruto, não me parece correto que
tais contas não tenham sido feitas previamente à elaboração do decreto-lei.
Agora, só uma alteração ao Orçamento de Estado para este ano, para legitimar os
sobreditos mil milhões de euros – por exemplo, através de orçamento
retificativo no Parlamento ou de transferência interna de verbas no âmbito do
orçamento do Ministério das Finanças – deixaria o governo em posição política
decente.
2023.06.21 –
Louro de Carvalho
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