Já os profetas, que eram chamados a falar ao povo em nome de
Deus, arrostaram com as agruras da calúnia e da perseguição. João Batista, o
precursor dos tempos messiânicos e do Messias, foi vítima da ousadia de
enfrentar a imoralidade de Herodes. E Jesus, o Messias ou Cristo, pagou, com a
morte na cruz, o arrojamento de britar a frieza da interpretação da Lei e de
apresentar, com autoridade, a doutrina que não era sua, mas do Pai que O
enviou.
Ora, os discípulos, que Jesus tornou apóstolos e seus irmãos
(no que nós nos assimilamos pelo batismo), não são mais do que o seu Mestre.
A Liturgia da Palavra do 12.º domingo do Tempo Comum, no Ano
A, releva a dificuldade em viver como discípulo, dando testemunho do desígnio
de Deus para o Mundo. Com efeito, a calúnia e a perseguição, estando sempre no
horizonte do discípulo, garantem a solicitude e o amor de Deus, que não abandonam
o discípulo que testemunha a salvação.
***
A 1.ª leitura (Jr
20,10-13) apresenta o exemplo de Jeremias (o que chora muito), profeta do
Antigo Testamento (AT), como o paradigma do profeta sofredor, que experimenta a
perseguição, a solidão, o abandono por causa da Palavra, mas que não esmorece
na confiança em Deus e no anúncio – coerente e fiel – da oferta da salvação por
Deus à Humanidade.
Jeremias, nascido em Anatot por volta de 650 a.C., ficou
admirado com a sua vocação à profecia e exerceu o múnus profético desde 627/626
a.C., sobretudo no reino de Judá, até depois da destruição de Jerusalém pelos
Babilónios (586 a.C.).
A sua mensagem traduz-se, numa primeira fase, no constante
apelo à conversão, à fidelidade a Javé e à aliança, principalmente pelo
abandono da idolatria.
Na segunda fase, surge a crítica às injustiças sociais (às
vezes, fomentadas pelo rei) e à infidelidade religiosa (traduzida, sobretudo,
na busca de alianças políticas). Jeremias está convicto de que Judá ultrapassou
todas as medidas e de que está iminente a invasão babilónica, para castigo dos
pecados do Povo de Deus. Di-lo aos habitantes de Jerusalém. E as previsões
funestas concretizam-se em 597 a.C., com Nabucodonosor a invadir Judá e a deportar
para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém.
No trono de Judá, fica Sedecias (597-586 a.C.). É quando
decorre a terceira fase do múnus profética de Jeremias. Discordando da
reiterada política das alianças com o Egito, o profeta é ignorado pelo rei e
pelos notáveis, que o consideram um amaro “profeta da desgraça”. E Jeremias só
consegue criar o vazio à sua volta.
Num momento de euforia nacional, anuncia novo cerco e a
destruição de Jerusalém. Acusado de traição, é preso e corre perigo de vida. E,
enquanto Jeremias prega a rendição, Nabucodonosor toma Jerusalém, destrói a
cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).
Jeremias é o paradigma do profeta que sofre pela Palavra. Sensível
e cordial, este homem de paz, que anseia pelo sossego da família e pelo
convívio com os amigos, não foi feito para o confronto. Porém, como o Senhor o
chamou para “arrancar e destruir, para exterminar e demolir”, para predizer
desgraças e anunciar a violência, a destruição e a morte, apaixonou-se pela
Palavra de Deus e criou em si a convicção de que não teria descanso, se não a
proclamasse com fidelidade.
Como consequência, foi continuamente objeto de desprezo e de
irrisão, todos se afastavam dele e o maldiziam. E este homem bom, sensível e
delicado sofria terrivelmente pelo abandono e pela solidão a que a missão
profética o votava.
Por isso, nos momentos negros de solidão e de frustração,
deixou, às vezes, que a amargura que lhe ia no coração lhe subisse à boca e se
transformasse em palavras. Dirigia-se a Deus e censurava-O por causa dos
problemas que a missão lhe trazia. Chegou a comparar-se a uma donzela inocente
e ingénua, de quem Deus se apoderou e a quem forçou a fazer o que o profeta não
queria.
O Livro de Jeremias
apresenta, a cada passo, queixas e lamentos de um homem condenado à vida de
aparente fracasso. Alguns desses segmentos textuais perfilam-se como
“confissões de Jeremias”, em que o profeta expõe a Javé, com sinceridade
rebelde, a suas desilusão, amargura e a frustração. O trecho desta dominga faz
parte de uma dessas “confissões”.
O profeta descreve o quadro que o envolve: a multidão,
saturada de anúncios de castigos e de terrores, quer pôr um ponto final no
derrotismo de Jeremias, calando-o. Jeremias, o “terror por toda a parte” (é
dessa forma irónica que a multidão o designa), é preso, julgado e silenciado.
Todo o ambiente sugere a montagem de um esquema de julgamento sumário e de
linchamento popular. No entanto, o que mais dói a Jeremias é que até os amigos
mais íntimos lhe voltaram as costas e se juntaram aos que maquinavam a sua
perda.
Porém, o lamento de Jeremias é bruscamente cortado por um
inesperado hino de louvor ao Senhor, expressão extraordinária da confiança no Deus
que não falha. Este hino, provavelmente entoado por Jeremias noutro contexto, reproduz
a certeza de que, apesar do sofrimento e da incompreensão que tem de enfrentar,
o profeta não está só: confia em Deus, no seu poder, na sua justiça, no seu
amor; e sabe que o Senhor nunca abandona o pobre que n’Ele confia (aqui, entenda-se
“pobre” no sentido de desprotegido ou perseguido injustamente pelos poderosos).
***
No Evangelho (Mt 10,26-33),
Jesus, ao enviar os discípulos, alerta-os para a inevitabilidade da incompreensão
e das perseguições. Porém, exorta: “Não temais.” E garante-lhes a presença
contínua, a solicitude e o amor de Deus, em toda a sua peregrinação pelo Mundo.
Os discípulos – que Jesus chamou e que responderam ao
chamamento, que escutaram o seu ensino e que testemunharam os seus sinais – vão
ser enviados ao Mundo, para continuarem a obra libertadora e salvadora de
Jesus. É o “discurso da missão”, que vai de 9,36 a 11,1.
Em Roma, nos anos 81 a 96, pontifica o imperador Domiciano,
que não está disposto a tolerar o cristianismo. No horizonte das comunidades
cristãs, está a hostilidade crescente, que rapidamente se converterá em
perseguição organizada contra o cristianismo. De facto, no ano 95, por
iniciativa de Domiciano, começa uma terrível perseguição contra os cristãos em
todo o Império.
A comunidade cristã a quem Mateus e dirige (talvez a
comunidade de Antioquia da Síria) tem grande sensibilidade missionária e está
empenhada em levar a Boa Nova de Jesus a todos. No entanto, os missionários
convivem, dia a dia, com as dificuldades e com as perseguições e manifestam um
certo desânimo e alguma frustração. Neste contexto, o evangelista compôs uma
espécie de “manual do missionário cristão”, que é o discurso da missão. Para
mostrar que a atividade missionária é imperativo da vida cristã, Mateus visa a
missão dos discípulos como a continuação da obra libertadora de Jesus e define
os conteúdos do anúncio e as atitudes fundamentais que os missionários devem assumir,
enquanto testemunhas do Reino.
O tema central do trecho em apreço é sugerido pela exortação
“não temais”, que se repete por três vezes ao longo do texto. É uma exortação frequente,
no AT, dirigida a Israel ou a um profeta. O contexto é sempre o da eleição:
Javé elege alguém (Povo ou pessoa) para o seu serviço. Confia ao eleito uma
missão profética no Mundo e, porque sabe que o eleito se confrontará com forças
adversas, que lhe trarão sofrimento e perseguição, assegura-lhe a sua presença,
ajuda e proteção.
Assim, ao enviar os eleitos, Jesus dá-lhes aquelas garantias,
para eles superarem o medo e a angústia que resultam da perseguição. As
palavras de Jesus correspondem à última bem-aventurança: “Bem-aventurados
sereis quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo,
disserem todo o mal contra vós!” (Mt
5,12).
Esta ordem de envio comporta três postulados: o medo não pode
impedir a proclamação aberta da Boa Nova; não pode haver medo da morte física;
é necessária absoluta confiança em Deus.
Jesus pede aos discípulos que não deixem o medo impedir a
proclamação da Boa Nova nas praças. Com efeito, a mensagem libertadora não pode
correr o risco de ficar – por causa do medo – circunscrita a um pequeno grupo fechado
numa redoma, sem correr riscos, nem incomodar a ordem injusta das sociedades.
Ao invés, porque é o bem universal, tem de ser proclamada com coragem, com
convicção, com coerência, de cima dos telhados, para mudar o Mundo e se tornar
Boa Nova libertadora para todos os homens e mulheres.
Depois, Jesus recomenda aos discípulos que não se deixem
vencer pelo medo da morte física. O que é decisivo, para o discípulo, não é que
os perseguidores o possam eliminar fisicamente, mas evitar a perda da
possibilidade de chegar à vida plena e definitiva. Ora, o cristão sabe que essa
vida definitiva é um dom de Deus aos que O acolhem e que aceitam pôr a própria
vida ao serviço do Reino. Quem percorre, fielmente, a rota de Jesus não vive angustiado
pelo medo da morte.
Por último, Jesus convida os discípulos a descobrirem que
Deus merece a nossa confiança absoluta. Para ilustrar a solicitude de Deus, o evangelista
evoca duas imagens: os pássaros de que Deus cuida (que revela a ternura e
preocupação de Deus por todas as criaturas); e os cabelos que Deus conta (que
revela a forma única e profunda como Deus conhece o homem, com os seus problemas
e dificuldades). Deus é aqui apresentado como um Pai, cheio de amor e de
ternura, sempre preocupado em cuidar dos seus filhos, em entendê-los e em
protegê-los. Ora, depois de terem descoberto este rosto de Deus, os discípulos não
têm qualquer razão para o medo. A certeza de ser filho de Deus alimenta a
capacidade do discípulo em empenhar-se na missão. Nada nem ninguém consegue
calar o discípulo que confia na solicitude e no amor de Deus Pai.
As últimas palavras do trecho em causa contêm uma séria
advertência de Jesus: a atitude do discípulo face à perseguição condicionará o
seu destino último. Quem se mantiver fiel a Deus e ao seu desígnio e
testemunhar, com desassombro, a Palavra encontrará a vida definitiva; mas quem
procurar proteger-se, comodamente instalado numa vida morna, sem riscos e sem
coerência, recusa a vida em plenitude, pelo que não fará parte da comunidade de
Jesus.
***
Na 2.ª leitura (Rm
5,12-15), Paulo mostra aos cristãos de Roma como a fidelidade ao desígnio de
Deus gera vida e a vida organizada na dinâmica de egoísmo e de autossuficiência
gera morte.
Para deixar bem claro que a salvação foi oferecida por Deus
aos homens através de Jesus Cristo, o apóstolo recorre à antítese, figura
literária que aparece, com alguma frequência, nos seus escritos: em concreto,
expõe o seu raciocínio num jogo de oposições entre Adão e Jesus.
Adão é a figura da Humanidade que prescinde de Deus e do seu desígnio,
escolhendo rumos de egoísmo e de autossuficiência. Tal escolha produz injustiça,
alienação e desarmonia. Porque a Humanidade preferiu, tantas vezes, esse rumo,
o Mundo entrou na economia de pecado, que gera morte. E essa morte é físico-biológica,
mas é, sobretudo, morte espiritual e escatológica, pois configura afastamento
temporário ou definitivo de Deus, fonte da vida.
Por sua vez, em contraste, Cristo propôs um outro caminho. Viveu
na permanente escuta do Pai e na obediência total ao desígnio do Pai. Ora, esse
caminho, levando à superação do egoísmo e da autossuficiência, faz nascer o
Homem Novo, livre, que vive em comunhão com o Deus que é fonte de vida. Foi
esse o grande desafio que Jesus fez à Humanidade. Jesus Cristo libertou os
homens da economia de pecado e introduziu uma dinâmica nova, uma economia de
graça que gera a vida plena, a salvação.
É claro que, para o apóstolo, a intervenção de Cristo na História
da Humanidade se traduz num dinamismo de esperança, de vida nova. Cristo propõe
à Humanidade a rota de comunhão com Deus e de obediência ao seu desígnio. E
direciona o homem para a vida plena, para a salvação.
Cristo chama à vida, envia à missão. E esta postula o
confronto com as dificuldades. É a sina do profeta, do discípulo, do missionário,
do cristão!
2023.06.25
– Louro de Carvalho
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