Na província de Panjshir, do Afeganistão, civis, detidos pelos Talibãs, são alvo de tortura e de
execuções extrajudiciais (assassinatos ilegais). Detenções arbitrárias e em massa
visam intimidar a população. Agnès Callamard sustenta que “milhares de pessoas
estão a ser varridas pela opressão contínua do Talibãs.
São estas as
principais evidências do novo relatório da Amnistia Internacional (AI) “Your
Sons Are in the Moutains: The Collective Punishment of Civilians in Panjshir by the
Taliban” (em Português: “Os vossos filhos estão nas montanhas: A punição
coletiva de civis pelos Talibãs em Panjshir”), publicado a 8 de junho, que documenta
graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário,
pelos Talibãs, em Panjshir, tais como execuções extrajudiciais, tortura e
prisões e detenções arbitrárias em massa.
O relatório
foi elaborado com base em entrevistas e em investigações de fonte aberta de
material disponível nas redes sociais.
Na verdade, a
AI entrevistou 29 habitantes de Panjshir. Todos os entrevistados solicitaram
que não fossem revelados os seus nomes, por receio de represálias, por parte
dos Talibãs.
Em paralelo,
a organização realizou investigações de fonte aberta de material disponível nas
redes sociais e analisou 61 fotografias e vídeos, alguns dos quais foram
detetados online e outros fornecidos, em privado, por
testemunhas, através de transferência segura. Provavelmente, muitos dos vídeos
foram filmados por membros dos Talibãs.
Depois, a 25
de maio de 2023, a AI solicitou resposta oficial dos Talibãs aos casos
documentados no relatório. Porém, aquando da publicação desta investigação, os
Talibãs ainda não tinham fornecido qualquer declaração ou dado qualquer
resposta.
***
Devido ao
regresso dos Talibãs ao poder, em agosto de 2021, vários membros das forças de
segurança do antigo governo fugiram, com equipamento e armas, e juntaram-se à
Frente Nacional de Resistência (NRF) em Panjshir. Por conseguinte, as
autoridades do país estão a retaliar contra os combatentes, que vão detendo, e
contra a população civil, provocando medo, submissão e sofrimento
generalizados.
Como afirmou
Agnès Callamard, secretária-geral da AI, “em Panjshir, a tática cruel dos
Talibãs de atacar civis, por suspeitarem da sua filiação à NRF, está a propagar
miséria e medo”.
A lista de
crimes de guerra e de outras violações do direito internacional humanitário
cometidos pelos Talibãs é extensa: execuções extrajudiciais, tortura, tomada de
reféns, detenções ilegais e destruição de casas de civis (sobretudo por
incêndios). Cada ato individual é abominável e, no seu conjunto, tal conduta
constitui uma punição coletiva – em si mesma, crime de guerra. E Agnès
Callamard é perentória: “Milhares de pessoas estão a ser vítimas da opressão
contínua dos Talibãs, com o propósito muito claro de intimidar e de punir. A
associação dos civis em Panjshir como um alvo a abater tem de cessar
imediatamente.”
Prenderam
homens adultos e rapazes mais velhos em toda a província, sem qualquer acusação
e sujeitam-nos a espancamentos e a outros abusos. Impuseram o único recolher
obrigatório noturno em todo o Afeganistão, confiscaram casas de civis e
restringiram o acesso dos pastores às suas terras de pastagem tradicionais.
Perante estes
factos, a AI apela às autoridades para que investiguem os casos documentados e
realizem os julgamentos justos perante tribunais civis comuns, sempre que tal
se justifique. Entretanto, porque os Talibãs não se têm mostrado disponíveis
nem capazes de conduzir investigações genuínas, nem de responsabilizar
quaisquer membros das suas forças em julgamentos justos, a AI renova o seu
apelo ao Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas sentido de criar um
mecanismo internacional independente de responsabilização, centrado na
preservação de provas para futuros processos judiciais, incluindo ações penais,
bem como relatórios públicos e monitorização.
O relatório
apresenta vários casos de execuções extrajudiciais em massa de combatentes da NRF
pelos Talibãs. Num dos casos, pelo menos seis pessoas – possivelmente nove –
foram executadas em setembro de 2022, na encosta de uma montanha perto de Darea
Hazara, que faz parte da aldeia de Pochava, no distrito de Darah.
O Crisis Evidence
Lab (em Português, Gabinete de Provas de Crise) da AI verificou e examinou,
em pormenor, cinco vídeos que retratam partes do processo de execução. O
primeiro mostra membros dos Talibãs a escoltarem seis homens com as mãos atadas
atrás das costas, por uma encosta íngreme. Os entrevistados identificaram os
seis como combatentes da NRF capturados pelos Talibãs: Mohammad-u Din, Ishaq,
Daniyar, Modir Ahmad, Amir Hatam e Mohammad Yar.
Nos vídeos,
os olhos dos detidos estão tapados com vendas e os membros armados dos Talibãs
estão posicionados na encosta, atrás dos detidos. A seguir, as
autoridades de facto do país disparam as armas, durante 19
segundos, matando cinco homens e fazendo com que os seus corpos deslizem pela
encosta. Pelo menos cinco homens armados recorrem à combinação de espingardas
de ferrolho e Kalashnikovs totalmente automáticas, o que
torna difícil determinar o número exato de tiros disparados.
Com base na
direção da luz solar e das sombras nos vídeos, entrevê-se que os assassinatos
tenham ocorrido logo após o nascer do sol, pelas 05h30. Embora os vídeos mostrem,
claramente, cinco pessoas a ser baleadas e mortas, uma testemunha entrevistada
pela AI relatou que nove pessoas foram mortas nesta execução coletiva. As
outras três vítimas foram designadas pelas vítimas como Feroz, Torabaz e Shah
Faisal.
Em, pelo
menos, três situações em Panjshir, os Talibãs torturaram, até à morte, civis
previamente detidos. As vítimas eram agricultores e criadores de gado, que
trabalhavam segundo as normas tradicionais que permitiam o envio dos animais
para as montanhas no verão, acreditando que tinham autorização dos responsáveis
Talibãs locais para aceder a zonas reservadas para o efeito.
Duas das
vítimas, Noor Mohammad e Ghulam Ishan, eram residentes no distrito de Darah e
foram torturadas no distrito de Rokha, quando procuravam o gado, em outubro de
2022. O terceiro homem, Abdull Muneer Amini, foi detido em Bazarak, em junho de
2022. Vídeos e fotografias capturadas depois de os seus corpos terem sido
recuperados foram partilhados, nas redes sociais e em privado, com a AI. De
acordo com a análise de um patologista forense, consultado pela AI, os três
corpos apresentavam sinais extensos de tortura, como hematomas graves,
provavelmente causados por violentas agressões.
Os Talibãs
procederam a detenções arbitrárias de homens civis e de rapazes mais velhos por
suspeita de filiação na NRF. Foram detidas cerca de 200 pessoas de cada vez. Em
grande parte, estas detenções ocorreram nos distritos de Darah, Abshar e Khenj,
entre maio e agosto de 2022. Esta prática ocorreu, quer nas detenções em massa,
em toda a aldeia, quer visando agregados familiares que os Talibãs suspeitassem
ter-se verificado a adesão das pessoas à NRF.
A detenção de
membros da família para obrigar os combatentes a renderem-se foi verificada na
investigação, sendo equivalente a tomada de reféns e constituindo crime de
guerra. Os detidos permaneceram sob custódia dos Talibãs, em períodos que
duravam de horas a meses.
No distrito
de Darah, um homem afirmou que os Talibãs prenderam o pai na aldeia, em junho
de 2022, na tentativa de o encontrar a si e aos irmãos, por suspeitas de adesão
à NRF: “Levaram o meu pai por volta da uma da tarde. Levaram-no para a
mesquita, onde lhe tiraram a venda dos olhos. Obrigaram-no a sentar-se num
colchão. Aí, começaram a interrogá-lo: ‘Onde estão os teus filhos? Dizem que os
teus filhos estão nas montanhas’.”
A detenção de
familiares de pessoas suspeitas de serem combatentes da NRF, a prisão e a detenção
em massa de civis, a tortura e as execuções dos pastores são outros exemplos da
campanha de punição coletiva dos Talibãs contra civis, em Panjshir. Outras
táticas talibãs de intimidação incluem a destruição e o confisco, a longo
prazo, de bens de civis, bem como a imposição de restrições à circulação de
civis.
***
O povo do
Afeganistão tem sofrido crimes à luz do direito internacional e outras graves
violações de direitos humanos, que permanecem impunes, tanto antes como depois
de agosto de 2021. A falta de infraestruturas nacionais credíveis para a
responsabilização significa que as provas desses crimes enfrentam o sério risco
de desaparecer ou de ser destruídas.
Uma vez mais,
o apelo da AI vai para o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, para
que estabeleça um mecanismo internacional independente de responsabilização
para o Afeganistão, com um mandato para monitorizar e informar, publicamente,
os desenvolvimentos da situação no país e para recolher e preservar provas para
futura justiça internacional. E a AI insta a que o mandato do Relator Especial
das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos no Afeganistão seja
dotado de todos os recursos necessários e a que os Estados-membros das Nações
Unidas e o Tribunal Penal Internacional (TPI) utilizem essas provas para
conduzir investigações exaustivas sobre todas as partes envolvidas no conflito.
A este
respeito, Agnès Callamard considera: “As pessoas que sofreram estas atrocidades
em Panjshir e todas as outras vítimas dos crimes cometidos pelos Talibãs, no
Afeganistão, merecem que se abra um caminho claro para a justiça, [para a] verdade
e [para a] reparação, sem espaço para a impunidade. É essencial a criação de um
mecanismo internacional independente de responsabilização, centrado na recolha
e preservação de provas para responsabilizar todos os suspeitos de
responsabilidade criminal.”
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Os crimes de
guerra são cometidos em contexto bélico. O Afeganistão não está em guerra com
outro país, nem formalmente em guerra civil. Não obstante, o ambiente é de
severa repressão, as autoridades prendem, torturam e abatem combatentes da
resistência e, como os atos que vêm sendo praticados são excessivamente
violentos e sem responderem a uma ofensiva militar, são equivalentes a crimes
de guerra. Com efeito, mesmo em guerra, há regras a observar, de acordo com as
convenções internacionais, cuja inobservância pode comportar crimes de guerra, crimes
que violam as leis ou os costumes de guerra
definidos pelas convenções de Genebra e de Haia. Incluem ataques a civis,
tortura, execução ou maus-tratos a prisioneiros.
Quanto à
tortura, que é legal e desumana, é de referir que ocorre quando uma autoridade
causa intencionalmente, dor e sofrimento com uma finalidade específica, como
obter informações ou uma confissão, castigar, intimidar ou ameaçar. Pode ser
física (por exemplo, espancamento) ou obrigar a uma situação dolorosa ou de
natureza sexual como a violação. Pode ser psicológica, como privação do sono ou
humilhação pública. Tem propósito cruel: quebrar
o espírito humano, vencer toda a resistência física, psicológica e emocional
dos seres humanos, pelo sofrimento. É prática bárbara, proibida
internacionalmente, mas continua a ser usada, não raro, impunemente.
***
O Afeganistão
está longe de ser o único país a cometer atos equivalentes a crimes de guerra,
nomeadamente, prisão sem julgamento, tortura, assassinato e execuções em massa.
Porém, sobressai pela desumanidade, pela jugulação da resistência e pelo
contraste com o regime anterior. A par de tudo isto, o país regrediu no aspeto
cultural, como a opressão das crianças e das mulheres (obrigatoriedade do uso do
véu islâmico e proibição de estudos a seguir ao ensino básico). Há todo um
caminho civilizacional por fazer ou por refazer.
2023.06.09 – Louro de Carvalho
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