No discurso do 112.º aniversário da Implantação da República, o Presidente
da República, na habitual sessão comemorativa na Câmara Municipal de Lisboa,
recuou 100 anos e fez alguns paralelismos. Como agora, então vivia-se um
pós-guerra (I Guerra Mundial) e um pós-pandemia (gripe espanhola), a inflação
disparava e, na Europa, a agitação social fragilizava os partidos e os
parlamentos e favorecia a ascensão de movimentos radicais.
Não deixa de ter razão, embora esqueça que agora, num mundo globalizado em
todos os âmbitos, a pandemia do novo coronavírus surgiu antes da guerra e é mais
abrangente e mais duradoura, quando, em 1922, se vivia no rescaldo da pandemia
que surgira no contexto da guerra.
Assinalou que, ao invés de há 100 anos, os países dispõem, para se
precaverem, de instrumentos de democracia e liberdade, mormente alternativas
democráticas. Porém, tais instrumentos, que não são eternos, precisam de ser
cuidados. Assim, há que assumir que a República e a Democracia se
constroem todos os dias, na certeza de que “não
há construções perfeitas”. Ao mesmo tempo, é preciso cuidar da qualidade
da democracia, no quadro da justiça, da administração interna, da educação, da
saúde, bem como da construção de alternativas em democracia.
Às fragilidades, abusos e omissões contrapõem-se liberdades e instrumentos
de fiscalização, de exigência de mais e de melhor e, no limite, de
“dissolução”. Por isso, Marcelo Rebelo de Sousa garantiu que “não vai acontecer
o que aconteceu à Primeira República, que acabou em ditadura porque não houve
alternativas que nascessem”. E vincou: “Ou a alternativa nasce do próprio
partido que está hoje no governo, ou nasce de ‘outros’. Cada um tem de fazer
valer o seu projeto.”
A incursão presidencial pela História não foi um ato desgarrado. Acabando a
extrema-direita de ganhar eleições e de ascender ao poder em Itália, o
Presidente da República lembrou que, em outubro de 1922, milhares de fascistas
fizeram a marcha sobre Roma que levou Benedito Mussolini ao poder. Também em
Portugal a jovem República enfrentava os desafios do pós-guerra e tinha de
“reencontrar-se com as pessoas”, num momento em que “novos problemas exigiam
novas respostas”. Porém, tal como a Itália, Portugal teve o seu golpe militar
de 28 de maio que abriria caminho à ditadura.
Observando que “sabemos como começam
as ditaduras, o que são e o que duram”, tal como “sabemos como é difícil
recriar a democracia depois delas”, o Presidente de todos os Portugueses
evocou as conquistas democráticas dos últimos 100 anos que nos dão, enquanto
país, mais capacidades de responder aos desafios e de encontrar alternativas
para travar os autoritarismos que espreitam sempre. E, à cabeça dessas, está a
República democrática, em que emergem poderes como o direito de voto, o
pluralismo, mais meios de informação, a Constituição, a educação, a saúde, a segurança
social, os instrumentos de regulação e de intervenção económica e um poder
específico do Presidente da República, que é o poder de veto e o poder de
dissolução do Parlamento, que provoca a queda do Governo e implica a marcação
de eleições antecipadas.
Numa semana em que o Governo enfrentou casos de alegadas incompatibilidades
de ministros, o chefe de Estado frisou que os instrumentos para evitar os
autoritarismos não bastam. Não é suficiente ter democracia na Constituição e
nas leis; importa tê-la nos factos, em melhores
leis e em justiça mais atempada, équa, célere e eficaz, “com mais controlo dos
abusos e omissões dos poderes e com mais força na prevenção e combate à
corrupção.
E Marcelo Rebelo de Sousa terminou a sua intervenção com uma referência ao presidente
da Câmara de Lisboa que tinha discursado antes, dizendo que é preciso a oposição
“exigir mais e melhor”, mostrando “indignações e insatisfações”, porque isso é
“saudável” em democracia, pois, em ditaduras, só “há uma verdade única”. E
repisou: “É saudável a exigência crítica, porque
em democracia cabe a todos não estagnar e fazer avançar. Nunca nos
resignamos. Há sempre mais realidades, mais soluções, mais energias de
mudanças. É isto que celebramos hoje.”
Efetivamente, Carlos Moedas acusou a estagnação económica do país e apontou
a necessidade de crescer mais do que a média da União Europeia (UE), visto que
estamos à beira da cauda da UE.
***
Entretanto, o Presidente da República, depois de
repetir alguns itens do discurso aos jornalistas no Palácio de Belém – neste
dia aberto ao público, aliás como o Parlamento e a Residência Oficial do
Primeiro-Ministro – e de sublinhar que é útil os Portugueses saberem que o
Governo não prevê uma recessão, partiu para Malta, dizendo ir aproveitar o 17.º
encontro de chefes de Estado do Grupo de Arraiolos (iniciativa de Jorge Sampaio,
tendo sido a primeira reunião do grupo na vila alentejana de Arraiolos) para
perceber as respostas dos vários países às consequências da guerra na Ucrânia,
ou seja, as respostas que estão a dar e vão dar para combater a crise social e
económica consequência da guerra. Com efeito, as expectativas para esse encontro
“são de preocupação”, visto que uns países “estão perto da guerra” e outros
“sofrem a parte económica e social”.
E vincou, ainda, que espera ver como é que o Governo
de António Costa vai encarar o próximo ano em termos de efeitos da guerra e que
vai “comparar” com o que encaram os presidentes dos outros países. Enfim,
estando sempre atento, não espera por 2024 para avaliar, como dizem.
***
Em
declarações aos jornalistas, o primeiro-ministro, reagindo aos discursos do
autarca de Lisboa e do Presidente da República, lembrou as funções dos autarcas
e as dos órgãos de soberania.
Disse que,
apesar dos paralelismos de Carlos Moedas para assinalar a implantação da
República, “Portugal está numa situação sem comparação”. E lembrou que o papel
dos políticos varia em “função do cargo que exercem”. Costa, que foi presidente
da Câmara de Lisboa, afirmou que o autarca fala para os lisboetas e para os
desafios que se lhes colocam. Em contraposição, “a função do primeiro-ministro
é estar bem atento ao que acontece no país e no mundo”, pois, temos “bem a
consciência de quais são as realidades”, sendo ao Governo que “compete encontrar
soluções”.
Admitindo
que é preciso “reforçar a confiança” dos portugueses, evocou os pacotes de
apoio criados pelo Governo. E, em resposta aos recados dos discursos, realçou
que “cada órgão de soberania deve falar
e agir conforme as suas competências”, atribuindo ao Presidente da
República a função de porta-voz “de todos os portugueses”. E, quanto ao
Governo, frisou que age, faz e resolve. “Escutando a voz dos portugueses, a nós
compete-nos o que não compete a mais ninguém, que é encontrar soluções para
resolver os problemas” – vincou.
Respondeu
ainda às críticas de Carlos Moedas (que falou em cenário de “alguma estagnação
económica”) afirmando que, ao invés do que acontece na Europa, Portugal
registará um “crescimento económico moderado” e acima da média da UE. Depois, insistiu
que Portugal foi o país com o crescimento económico “mais alto” e disse
acreditar que, no próximo ano, haverá uma “desaceleração significativa” da
inflação. Por isso, o Governo conta prosseguir a política de valorização de rendimentos
e competitividade da economia – no setor público e no privado.
Do Orçamento do Estado para 2023 (OE 23) disse que é ajustado às
realidades: “Somos o país da UE que teve o crescimento mais alto este ano; no
próximo ano, com a recessão que há em vários países, vamos crescer menos do que este ano, mas
não vamos ter um cenário de não-crescimento nem de recessão. Será um
crescimento moderado e ajustado à realidade.” E sublinhou, em tom de otimismo:
“Depois de termos este ano o crescimento bem acima dos 6%, que foi o mais
elevado da UE, este ano o crescimento não será desta ordem, mas há confiança de
que o país vai continuar a crescer acima da
média da UE” e a aproximar-se dos seus países mais desenvolvidos.
Como, para
isso, interessam os dados da inflação, segundo as previsões em que o Governo se
está a basear para trabalhar o OE 23, haverá, no próximo ano, “uma desaceleração significativa
da inflação” e a manutenção da taxa de emprego – que é a “chave
para a política económica” – sendo isso que permite manter o objetivo de
sustentável de aumentar o rendimento das famílias e a competitividade das
empresas. É nesse sentido que o primeiro-ministro pressiona os parceiros
sociais a chegarem a acordo em sede de concertação social, antes da entrega do
OE 23, para aumento do peso dos salários na economia nacional de modo atingir
os 48% do produto interno bruto (PIB) no final da legislatura. Salienta que se
trata de um acordo plurianual, para não perder poder
de compra no privado, tal como se fez para a Administração Pública. E
deixa os detalhes sobre a valorização de rendimentos para a apresentação do OE 23
(a 10 de outubro).
***
No geral, a oposição
acompanha as asserções do chefe de Estado na defesa e no aperfeiçoamento da
democracia e deixa farpadas ao Governo. Todavia, Rodrigo Saraiva, líder
parlamentar da Iniciativa Liberal, assumiu frontal discordância: “Parece que o
Presidente da República não aprendeu com a História. Não tem havido alternativa
democrática na História de Portugal, mas, sim, alternância democrática e coxa.
O PS está a governar nos últimos 20 de 27 anos.”
Por outro
lado, apontou o chefe de Estado como exemplo da pouca exigência aos poderes,
nomeadamente ao Governo e às oposições”, sustentando que Marcelo Rebelo de
Sousa “tem de fazer o que lhe compete para que exista alternativa na democracia
em Portugal”.
***
Desnecessária,
mas bem-vinda foi a incursão histórica do chefe de Estado, bem como a reflexão
sobre a democracia. Dispensava-se, porém, a menção dos poderes presidenciais com
explicitação do veto e da dissolução do Parlamento, o que dá a ideia de ameaça às
instituições e a de que o chefe de Estado é infalível na apreciação das
circunstâncias. Com efeito, apesar de o Presidente da República representar
todos os portugueses, não é o seu intérprete único nem privilegiado, que possa
sobrepor-se aos outros órgãos de soberania, a não ser na hierarquia da
precedência.
É certo que
o autarca de Lisboa fala para os lisboetas e Lisboa não manda no país. Porém,
como a República foi proclamada a partir dos seus Paços do Concelho, está
simbolicamente ligada à Câmara de Lisboa, pelo que, ressalvando os seus
eventuais desvios discursivos, é interessante que o país tenha ouvido, neste
dia, o estreante presidente da Câmara da capital.
2022.10.05 – Louro de Carvalho
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