A liturgia do 28.º domingo do Tempo Comum no Ano C coloca-nos
na posição de quem, tendo implorado e obtido um benefício do Senhor, mais do
que observar os formalismos legais, deve pautar a vida pelo agradecimento, que
é apanágio da pessoa bem formada e que é, enquanto ação de graças (Eucaristia) por toda a obra salvífica, a
expressão da Igreja como comunidade diaconal, sacrificial e de comunhão, pela
unidade na diversidade. A Eucaristia é a expressão da Igreja.
O trecho bíblico tomado como primeira leitura (2Rs 5,14-17)
refere o episódio do sírio Naaman, leproso, para mostrar que só o Senhor pode oferecer
ao homem a vida e a salvação, sem limites e sem exceções, restando-lhe acolher
o dom de Deus e, grato, reconhecer em Deus o único salvador.
O texto veterotestamentário em referência situa-nos em Israel
(reino do Norte), no reinado de Jorão (853-842 a.C.). Os reis de Israel –
preocupados em fazer do país um estado moderno e em marcar agenda no xadrez
político do antigo Médio Oriente – mantêm intercâmbio muito vivo com os povos
limítrofes. Mas tal política ocasiona a invasão de deuses, de cultos e de
valores estrangeiros, que ameaçam a integridade da fé javista. E, apesar de
Jorão ter tirado “as estátuas que o pai erigira a Baal” (2Rs 3,2), os deuses
cananeus ganham significativo protagonismo e Baal substitui Javé no coração e
na vida de muitos israelitas.
Neste contexto, surge Eliseu como o grande defensor da fé javista
e o continuador da obra de Elias, seu antecessor. Eliseu integrava uma comunidade
de “filhos dos profetas” (2Rs 2,3; 4,1), provavelmente, um círculo profético
cujos membros eram seguidores incondicionais de Javé e em quem o Povo buscava
apoio, ante os abusos dos poderosos.
O capítulo 5 do 2.º Livro dos Reis, contam-nos a história do
general sírio Naaman, um dos heróis da Síria, que era leproso. Sabendo, por uma
serva, que em Israel havia um profeta que podia curá-lo do seu mal, veio ao
encontro de Eliseu, carregado de presentes. E Eliseu mandou, apenas, que Naaman
se banhasse sete vezes no rio Jordão (cf 2Rs 5,1-13). Num primeiro momento, Naaman,
que esperava uma cura espetacular, fixou desiludido, até porque, na Síria,
havia rios bem mais interessantes do que o Jordão, mas, a instâncias de um
servo, fez o que o profeta mandara.
A passagem proclamada nesta dominga descreve a cura de Naaman
e as reações dos envolvidos. Porém, mais do que fazer reportagem, os autores
deuteronomistas tecem considerações teológico-catequéticas, para que os
israelitas, atraídos pelo culto de Baal, redescubram as bases da sua fé.
Primeiro, deixam claro que Javé é o Senhor da vida, tem o
projeto de libertação do homem e só Ele pode salvar o que parece condenado à
morte. Deus pode servir-se de homens para agir no mundo, mas é só d’Ele que
brotam a salvação e a vida – o que os israelitas devem reconhecer, como o
estrangeiro fez.
Em seguida, mostram que a intervenção salvadora de Javé não é
ação circunstancial, que resolve apenas os problemas externos, mas ação que atua
a nível profundo, transformando radicalmente a vida do homem. Naaman ficou curado
de uma doença física que punha em risco a sua vida, mas a intervenção de Deus
saldou-se numa transformação espiritual que fez do sírio um homem novo e o
levou a deixar os ídolos para servir o verdadeiro e único Deus. Por isso, afirmou
que “não há outro Deus em toda a terra senão o de Israel” e garantiu que jamais
iria “oferecer holocausto ou sacrifício a quaisquer outros deuses, mas apenas
ao Senhor, Deus de Israel”.
Por outro lado, clarificam que a oferta da salvação não é dom
exclusivo de alguns, reservado a privilegiados ou a uma raça especial. Naaman é
sírio e, como tal, inimigo tradicional do Povo de Deus. Mas Deus não faz
distinção de pessoas e oferece a sua graça a todos. O que é decisivo é acolher
o dom de Deus e aceitar deixar-se transformar por Ele.
Também a catequese deuteronomista realça a gratidão de Naaman.
Liberto das maleitas que o afrontavam, quis agradecer a cura cumulando de
presentes Eliseu. Mas o profeta ajudou-o a ver claro que não era a um homem que
tinha de agradecer o dom da vida, mas a Deus. E a sua gratidão manifestou-se na
adesão total a Javé. É esta a resposta que Deus espera do homem.
Por último, sobressai a atitude de Eliseu de nunca ter
vontade de se aproveitar da intervenção de Deus em favor de Naaman para
benefício próprio. Ao recusar aceitar qualquer presente de Naaman, dá a entender
que não é a ele mas a Javé que o general sírio deve agradecer a cura. Haverá aqui
uma implícita denúncia irónica da postura dos líderes religiosos de então, que
usavam Deus em benefício dos seus esquemas.
O Evangelho (Lc 17,11-19) apresenta-nos um grupo de leprosos
que se encontram com Jesus, em quem descobrem a misericórdia e o amor de Deus. Representam
toda a humanidade, envolta na miséria e no sofrimento, sobre quem Deus derrama
a bondade, o amor, a salvação. Também aqui se releva a resposta do homem ao dom
de Deus: todos os que experimentam a salvação que Deus oferece devem reconhecer
o dom, acolhê-lo e manifestar a Deus a sua gratidão.
Continuamos no caminho de Jerusalém, em que os discípulos
progridem na aprendizagem e na interiorização dos valores e da realidade do
Reino de Deus. No caminho de Jesus e de discípulos, surgem dez leprosos. O
leproso era o protótipo do marginalizado, do excluído (do excomungado). Além de
causar repugnância pela aparência e de infundir medo de contágio, o leproso é
um impuro ritual (cf Lv 13-14), a quem a teologia atribuía pecados
especialmente gravosos (a lepra era o castigo de Deus para tais pecados). Por
isso, o leproso não podia entrar na cidade de Jerusalém, para não a
despurificar. Devia afastar-se de qualquer convívio humano a fim de não
contaminar os outros com a sua impureza física e religiosa. Em caso de cura,
devia apresentar-se ao sacerdote, para que ele, tal como declarara a lepra,
comprovasse a cura e lhe permitisse a reintegração na vida normal (cf Lv 14).
Podia, depois, retomar a participação nas celebrações cultuais.
Um dos leprosos (o que desempenha o papel principal no
episódio) é samaritano. Os samaritanos eram desprezados pelos judeus, por causa
do seu sincretismo religioso. A desconfiança dos judeus sobre os samaritanos
começou quando, em 721 a.C. (após a queda do reino do Norte), os colonos
assírios invadiram a Samaria e se misturaram com a população local. Para os
judeus, os habitantes da Samaria começaram a paganizar-se. Após o regresso do
exílio da Babilónia, os habitantes de Jerusalém recusaram a ajuda dos
samaritanos na reconstrução do Templo e evitaram os contactos com essa “raça
misturada com pagãos”. A construção do santuário samaritano no monte Garizim
consumou a separação e, na ótica judaica, lançou, em definitivo, os samaritanos
nos caminhos da infidelidade a Javé. Picardias mútuas nos séculos subsequentes
consolidaram a inimizade entre judeus e samaritanos. Na época de Jesus, a
relação era de grande hostilidade.
O episódio dos dez
leprosos (exclusivo de Lucas) insere-se na ótica teológica de um evangelho cujo
objetivo é apresentar Jesus como o Deus que Se fez pessoa para trazer, com
gestos concretos, a salvação/libertação a todos os homens, em especial aos
oprimidos e marginalizados.
Lucas mostra que Deus tem um desígnio de vida e de libertação
para todos os homens. O número 10 tem o significado simbólico de totalidade (o
judaísmo julgava necessária a presença de, pelo menos, 10 homens para haver oração
comunitária, porque o “dez” representa a totalidade da comunidade. Ora, a
presença de um samaritano no grupo insinua que a salvação oferecida por Deus,
em Jesus, não se destina só à comunidade do Povo eleito, mas a todos os homens
de todos os povos, mesmo aos que o judaísmo considerava arredados da salvação.
Porém, o acento do episódio – mais do que na cura – é colocado
no facto de só um dos dez curados ter voltado para agradecer a Jesus e no facto
de este ser um samaritano. Lucas está empenhado em mostrar que quem recebe a
salvação deve reconhecer o dom de Deus e deve ser grato. E avisa que,
frequentemente, são os hereges, os marginais, os desprezados, os que a teologia
considera à margem da salvação, que estão mais atentos ao dom de Deus. Há,
aqui, alusão à autossuficiência dos judeus que, por se sentirem o Povo eleito, achavam natural que Deus os
cumulasse de dons, mas não reconheceram a salvação que, por Jesus, Deus lhes
ofereceu. É premente, aqui, o apelo aos discípulos a que não ignorem o dom de
Deus e Lhe respondam com a gratidão e com fé, entendida esta como adesão à pessoa
de Jesus e à sua proposta de salvação. Sobressai, aqui, a crítica à hipervalorização
dos formalismos rituais e sociais (como a apresentação aos sacerdotes), face à
necessidade da valorização do encontro e da atitude de gratidão que uma relação
intimista consolidada impõe – mais percetível por parte dos estranhos, que não
se julgam com direitos aos benefícios, do que por parte dos da casa, que se julgam
com direito a tudo, nada sobrando para os outros, ainda que mais necessitados.
Por fim, a segunda leitura (2Tm 2,8-13) define a existência
cristã como identificação com Cristo. Quem acolhe o dom de Deus torna-se
discípulo: identifica-se com Cristo, vive no amor e na entrega aos irmãos e
chega à vida nova da ressurreição.
Depois de exortar Timóteo à dedicação total ao ministério, o
autor epistolográfico apresenta o motivo supremo em que radica tal entrega: o
exemplo de Cristo, que chegou à glória pelo caminho da cruz e do dom da vida. O
próprio Paulo, porque seguiu esse duro caminho, está preso, mas não preocupado,
pois o essencial é que a Palavra de Deus continue a transformar o mundo. Aliás,
é preciso que alguns entreguem a própria vida para que a libertação em Jesus chegue
a todos os homens, valendo a pena sofrer, a fim de que tal objetivo se
concretize.
O parágrafo final corrobora as afirmações precedentes. O
cristão é chamado a identificar-se com Cristo na entrega da vida e no serviço
aos irmãos. Essa entrega não termina no fracasso, mas – a exemplo de Cristo – na
ressurreição, na vida nova. E o cristão não pode recusar fazer da vida um dom
de amor, se quiser identificar-se com Cristo. Cristo tem de ser o fulcro da sua
vida e o protótipo do seu agir.
2022.10.09
– Louro de Carvalho
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