Tendo
sofrido derrotas militares e condenações generalizadas no Ocidente, o líder russo
declarou, a 30 de setembro, que Kherson, Zaporíjia, Lugansk e Donetsk passam a
ser da Rússia. Com efeito, após um discurso de 40 minutos e da pompa, em
cerimónia no salão de São Jorge, no palácio do Kremlin, Vladimir Putin, o homem
que mexe nas fronteiras dos países vizinhos desde 2008, dirigiu-se aos
moscovitas e proclamou: “A vitória será nossa!” E assinou os convenientes
decretos de anexação, pela Federação Russa, daquelas repúblicas pró-russas da
Ucrânia.
O presidente russo, reportando-se aos referendos naquelas regiões, observou
que “os resultados são conhecidos” e que “as pessoas fizeram a sua escolha
clara”. Mais disse estar convicto de que a Duma (parlamento russo) iria apoiar estas novas regiões – o que efetivamente
aconteceu –, “porque é a vontade
de milhões de pessoas” e um “direito inabalável”, inscrito no n.º 2 do artigo
1.º da Carta das Nações Unidas como “princípio da igualdade e autodeterminação
dos povos”.
E, recordando que “os nossos
antepassados também defenderam estas regiões”, o chefe de Estado russo frisou
que os habitantes daquelas quatro regiões “são nossos cidadãos para sempre”, já que “as pessoas quiseram
voltar à sua verdadeira pátria”.
Disse que se
deve terminar com o conflito e a guerra, iniciados em 2014, e voltar às
conversações, para o que a Rússia está pronta, mas sem abdicar das quatro regiões em causa. Prometeu defender
todo o território nacional “com todos os meios que temos à nossa disposição”,
pois trata-se da “grande missão de libertação do nosso povo”. Garantiu a
reconstrução das escolas e das cidades que foram destruídas, bem como o aumento
da segurança naquelas regiões.
Sobre o fim
da União Soviética, em 1991, para si a maior tragédia, Vladimir Putin relevou
que o Ocidente achava que a Rússia nunca mais renasceria, mas que a Rússia se reforçou.
Efetivamente, as elites de então (de Moscovo, Minsk e Kiev) decidiram dissolver
a URSS sem ouvir a vontade dos cidadãos, e as pessoas foram subitamente
afastadas da sua pátria. Isto, segundo o chefe de Estado russo, “desmembrou a
nossa comunidade, tornou-se numa catástrofe nacional” e gerou a ideia que nega
aos Ucranianos e aos Bielorrussos) o direito à soberania e autodeterminação.
Assegurando
que o povo russo nunca viverá segundo a vontade dos outros, acusou o Ocidente
de manter um sistema neocolonial para pilhar o mundo. A este respeito, vincou: “O
Ocidente procura novas oportunidades para nos atingir. Sempre sonhou em dividir
o nosso Estado em estados menores que lutarão uns contra os outros.” Ao mesmo
tempo, acusou alguns Estados de serem vassalos dos Estados Unidos da América (EUA),
que “deixam apenas ruína” à sua passagem, pois criaram o precedente da
utilização de armas nucleares, como foi o caso lançamento das bombas atómicas
contra Hiroshima e Nagasaki, no Japão. E disse que “os países do Ocidente dizem
que dão liberdade e democracia a outros povos”, mas fazem “exatamente o
contrário”.
No seu ataque
ao Ocidente, Putin quis ganhar pontos junto de países que foram colonizados. “As
elites ocidentais continuam a ser colonizadoras como sempre foram. Dividiram o
mundo nos seus vassalos – os chamados países civilizados – e em todos os outros”,
vincou. Daí que, num exercício que na língua colonizadora por excelência se
chama de whataboutism, o líder russo disse que os países ocidentais
não têm “qualquer direito moral” a criticar a anexação em causa.
Também acusou
os anglos saxónicos de terem organizado
explosões nos gasodutos Nord Stream 1 e Nord Stream 2: “Começaram a destruir
uma infraestrutura europeia. Começaram uma guerra relâmpago contra a
Rússia. A maioria dos Estados recusa isto e quer várias formas de cooperação
com a Rússia. Os Estados ocidentais não estavam à espera disto. Querem, através
de chantagem e subornos, conseguir os seus objetivos. Ficaram no passado e
querem ser exclusivos.”
Apontou a “propaganda agressiva” por parte do Ocidente que
acusa de difundir informações falsas. Continuou a criticar os países
ocidentais, no atinente às sanções impostas à Rússia. Ironizou: “Na Europa é
preciso convencer os cidadãos europeus de que devem usar roupa mais quente em
casa.” E, atacando os valores ocidentais “satânicos”, que vão contra os valores
“tradicionais” e “religiosos”, afirmou que o colapso da hegemonia ocidental,
que já começou, “é irreversível” e que “o mundo nunca mais será o mesmo”.
Assim, para Putin,
a invasão da Ucrânia representa um momento de viragem. “O campo de batalha para
o qual o destino e a história nos chamaram é o campo de batalha do nosso povo,
para uma grande Rússia histórica”, disse piscando os olhos aos nacionalistas.
Entretanto, trinta
habitantes de Zaporíjia não viveram o dia histórico que Putin proclamou, após ter
assinado a anexação da região, bem como de outras três ucranianas: um ataque de
mísseis (Kiev imputa a autoria a Moscovo e vice-versa) atingiu, na manhã de 30
de setembro, um antigo mercado de automóveis onde estavam reunidos muitos dos que
iam levar bens aos familiares ao lado ocupado pelos russos. Além daqueles mortos,
houve 88 feridos, no ataque mais sangrento a civis na Ucrânia desde o bombardeamento
da estação ferroviária de Kramatorsk, em abril.
Mais tarde,
Yevhen Balitsky, o suposto representante das vítimas foi visto com Vladimir
Putin e com os outros três chefes designados pelo Kremlin para as regiões ocupadas.
E todos bradaram pela Rússia – espetáculo encenado para legitimar uma ilegal pretensão
e mascarado com o discurso presidencial centrado nas mágoas do passado e nos
ataques ao satanismo ocidental.
Cinco mil
soldados russos, cercados pelo exército ucraniano, tentavam escapar de Lyman e
retirar-se para Kremina e Svatove, em Lugansk (os próximos locais a recuperar
por Kiev). E Seth Jones, do grupo de reflexão Centro de Estudos Internacionais
e de Segurança, sediado em Washington, sustentou que a queda de Lyman realçará “a
desconexão do Kremlin entre a fantasia e a realidade”. E disse que Putin, com
os referendos fraudulentos”, tenta consolidar o controlo de áreas que, na realidade,
está a perder e capturar territórios
que não controla.
Em Kherson,
a outra região que Moscovo considera sua, os militares russos estão
entrincheirados em largas quantidades, embora nas últimas semanas os ataques
continuados de artilharia com precisão estejam a levar a grandes dificuldades
logísticas. Na noite de 30 de setembro, um bombardeamento atingiu as
instalações da cidade de Kherson onde vários oficiais russos viviam.
***
A anexação
oficial já era esperada após os referendos – terminados a 22 de setembro – nas
áreas controladas pela Rússia na Ucrânia, cujos habitantes, alegadamente,
apoiaram esmagadoramente a anexação formal destes territórios pela Rússia (o “sim”
terá oscilado entre os 87% e os 99%).
Kiev, os EUA e os aliados ocidentais condenaram os referendos, que
classificaram de “farsa”, e afirmaram que não reconhecerão a anexação dos
territórios.
Por sua vez, o
secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, avisou a Rússia de que
a anexação de territórios ucranianos “não terá valor jurídico e merece ser
condenada”, vincando que “não pode ser conciliada com o quadro jurídico
internacional”.
Para o líder
da ONU, a Carta da das Nações Unidas “é
clara”. Assim, como realçou, “qualquer anexação do território de um Estado por
outro Estado resultante da ameaça ou uso da força é uma violação dos princípios
da Carta da ONU e do direito internacional”. E, segundo António
Guterres, a Rússia, como um dos cinco membros permanentes do Conselho de
Segurança, tem a particular responsabilidade de respeitar os princípios da
Carta das Nações Unidas.
Após ter
reunido o Conselho de Defesa e Segurança Nacional, o presidente ucraniano
respondeu a Putin, dizendo-se pronto para negociações, mas “com um presidente
russo diferente”, e pediu a adesão rápida à Organização do Tratado do Atlântico
Norte NATO – um dos argumentos do Kremlin, as suas preocupações de segurança
devido à expansão da Aliança Atlântica a leste.
A iniciativa
de Volodymyr Zelensky recebeu palavras encorajadoras dos chefes da diplomacia
dos EUA e do Canadá, mas, para já, é sobretudo simbólica. O secretário-geral da
NATO Jens Stoltenberg, que juntou a sua voz à larga maioria dos líderes
ocidentais para condenar as ações russas, lembrou a “política de portas abertas”
e o direito da Ucrânia de decidir o seu caminho. Porém, uma decisão dessas tem
de obter consenso e o enfoque da organização agora é dar apoio imediato à
Ucrânia, para a ajudar a defender-se contra “a invasão brutal russa”.
Enquanto a União
Europeia, o Reino Unido e os EUA se preparam para mais sanções à Rússia em
resultado da “maior escalada desde o início da invasão”, o presidente
norte-americano advertiu que nem o seu país nem os aliados se deixarão “intimidar”.
Os EUA estão preparados, com os aliados da NATO, para “defender cada centímetro
do território da NATO”.
***
No discurso,
Vladimir Putin visa públicos diversos: aos ocidentais promete a defesa do
território russo (e, por extensão, o ucraniano ocupado) com todos os meios,
repetindo a ameaça nuclear. Aos grupos extremistas avisa que as democracias
ocidentais são ditaduras responsáveis pelo declínio da fé e dos valores tradicionais
e que a cultura ocidental é racismo, não com caraterísticas de religião, mas de
satanismo absoluto; e aos povos colonizados (de África, Ásia e Américas) aponta
os responsáveis históricos pelo flagelo. Será tudo bluff? A Rússia caminha para
a derrota final ou para a vitória total? Estaremos enrolados numa complexa teia
de contradições? Veremos.
2022.10.03 – Louro de Carvalho
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