É óbvio que a ideia não é interpretável literalmente, mas vinca uma
personalidade que não se verga ao peso das circunstâncias, por mais derrotistas
que se lhe afigurem.
Aquando da passagem do centenário do nascimento de Adriano Moreira, também
fiz a minha crónica, que não vou repetir. No entanto, no momento da morte do secular
advogado, académico e político, a quem todos (ou quase) vêm a terreiro a tecer
as mais sinceras ou as mais redundantes loas, não devo ficar em silêncio. Não
digo que tenha sido figura de vulto tanto no regime do Estado Novo como no
regime democrático, mas é justo afirmar que sempre labutou pelas causas em que
acreditava, nunca desistindo, mesmo quando as políticas e as instituições pareciam
bater no fundo. Conseguia manter-se à tona, de ânimo firme e sem stresse,
segurando-se nas ideias próprias e admitindo, com a tolerância e a paciência do
crente, as ideias com que não concordava, porque a sabedoria e a inteligência
não são monopólio de ninguém.
Dos quase 80 anos de intervenção pública, ressaltam alguns factos.
No longo tempo do Estado Novo, integrou um dos movimentos oposicionistas
com o objetivo de conseguir “eleições livres”, o impossível dentro do regime. Defendeu,
em tribunal, a causa da família de um general que entrou em discordância com o
ministro da Defesa, pelo que foi preso por falta de respeito à dignidade do Estado,
tendo-se encontrado na prisão com Mário Soares, o que os tornou amigos. Não
obstante, serviu como ministro do Ultramar, tomando medidas seguidistas do
regime, designadamente as atinentes à concretização ideário do lusotropicalismo
e à criação do campo de trabalho do Tarrafal. Porém, quando descobriu a urgência
do ímpeto reformista, inverteu o sentido de algumas medidas e acabou por
promover a abolição do Indigenato, que vigorou cerca de uma década e que
retirava da alçada da cidadania os naturais de Angola, de Moçambique e da Guiné.
Obviamente, entrou em colisão com Oliveira Salazar, saiu da cena política sem
escândalo e enveredou pela carreira e intervenção académicas. E, em certa
medida, fazia parceria, como dantes, com as ideias de D. Sebastião Soares de
Resende, Bispo da Beira, aquele que pretendia que o Concílio Vaticano II
declarasse solenemente que todos os homens são irmãos (“todo o homem é meu irmão),
o que veio a acontecer com o Papa Francisco, pela encíclica Fratelli tutti (3 de outubro de 2020),
redigida já depois da assinatura do Documento
sobre a Fraternidade Humana para a Paz e
Coexistência Mundial (4 fevereiro
de 2019).
No regime democrático, distinguiu-se como líder do Partido do Centro Democrático
Social (CDS), em dois breves momentos, quando o partido não estava nos seus
melhores momentos, e como deputado centrista, ouvido com respeito pelas
diversas bancadas parlamentares. Foi muito apreciado como professor e dirigente
académico e como formador de centenas de civis e militares, brilhante em
ciência política e em ciências jurídicas. E Chegou a ser conselheiro de Estado.
***
Adriano José Alves Moreira nasceu a 6 de setembro de
1922, em Grijó, concelho de Macedo de Cavaleiros. Ainda criança, foi para
Lisboa, onde a família se instalou, em Campolide. Porém, as férias continuaram
a ser na aldeia, com o avô. O pai, polícia, motivou dois filhos para cursos
superiores: Adriano entrou na faculdade com 16 anos e cursou Direito, a irmã,
Medicina.
O recém-licenciado só
ganhou verdadeira consciência política quando enveredou pela carreira
universitária, depois de ter sido advogado da Standard Electric, onde começou a
trabalhar a seguir ao estágio e onde chegaria ao conselho de administração.
Chamava as suas “quedas no mundo” aos acontecimentos
que lhe aumentaram o interesse pela política. O primeiro foi quando, depois de
ter sido convidado para ser professor na Escola Superior Colonial (antecessora
do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas), percorreu todas as
colónias portuguesas em África, devido ao pedido Sarmento Rodrigues, ministro
do Ultramar, para que estudasse o programa das prisões. Escreveu um livro que foi
a sua tese de doutoramento, O Problema
Prisional do Ultramar, que esteve na reforma do regime prisional levada a
cabo por aquele ministro. Chamava “queda” ao facto, segundo explicava, “porque conhecia o Direito, era o que ensinava,
mas vi que não era o Direito que estava em vigor”.
Outra “queda” está relacionada com o problema da
entrada de Portugal nas Nações Unidas, que o levou a integrar um grupo de
juristas que participou na delegação que foi a Nova Iorque defender a posição
portuguesa face à pressão descolonizadora. Foi aí que teve, pela primeira vez,
ocasião de ouvir representantes de povos colonizados a falar dos seus valores. Tornou-se diretor do Centro de Estudos do
Ultramar, participou em missões de investigação, situando aí o início da defesa
do fim do estatuto do indigenato, que levaria a cabo quando chega a ministro do
Ultramar, em 1961, chamado por Salazar, que lera os seus relatórios e lhe
perguntou se queria concretizar as reformas que defendia. Em síntese, pretendia “restabelecer a justiça social […], acreditar a
autenticidade de procedimentos do Governo português e chamar a uma cooperação
renovada as populações”. Queria criar universidades em Angola e Moçambique e
promover uma classe média local preparada para a independência. Ficou só dois anos como ministro, pois Salazar, que tinha
prometido apoiar as reformas, chamou-o e disse-lhe que é preciso mudar de
política.
Seguiram-se anos e anos de universidade, “sem
atividade política”. A Escola Superior Colonial passara a Instituto Superior de
Estudos Ultramarinos e, depois, a Instituto Superior de Ciências Sociais e
Políticas Ultramarinas (ISCSPU), integrado na Universidade Técnica de Lisboa,
que será a sua casa académica. É seu o novo nome que terá depois do 25 de
Abril: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, o ISCSP. A universidade,
para si, era “vocação”. Todavia, como nota Manuel de Lucena no livro Os Lugar-Tenentes de Salazar, “sob
Marcello Caetano, a marginalização política de Adriano Moreira acentuou-se,
transbordando da esfera política para a universitária quando, em 1969, o
ministro da Educação o demitiu de diretor do ISCSPU”.
Com a revolução abrilina, foi saneado. Estava no
Brasil em serviço pela universidade quando o Pinheiro de Azevedo, que fora seu
aluno, o aconselhou a não voltar a Portugal. Por lá ficou, alguns anos, como professor catedrático na
Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde fundou um Instituto de Relações
Internacionais e Direito Comparado. Voltou em 1978. Foi Ramalho Eanes quem o
reintegrou na universidade. No regresso, é desafiado para a política por Sá
Carneiro e Adelino Amaro da Costa. Convidado para o CDS por Amaro da Costa, por
Freitas do Amaral e por Narana Coissoró, que tinha sido seu assistente na
faculdade, começou nova carreira política.
Segundo Manuel de Lucena, Adriano Moreira, “otimista
precavido ou pessimista esperançado, tentou conciliar “idealismo e realismo,
ação criadora, consciência crítica e uma extensa curiosidade intelectual” e
marcou presença na política portuguesa em democracia.
Deixada a liderança partidária e o Parlamento,
continuou a intervenção pública na universidade e na imprensa, sobretudo no Diário de Notícias, onde continuou a
publicar artigos de opinião e análises ao país e ao mundo. O filho Nuno, já
falecido seguira-lhe os passos no CDS, mas a filha Isabel escolheu intervir
noutra família política bem diferente, o PS, mas dando sempre testemunho de
como a diversidade e a liberdade de pensamento lhe foi incutida em casa.
Escreveu Eunice Lourenço, no Expresso online, a 23 de outubro, que Adriano Moreira, aos 98 anos,
se despedia do filho, de 47, “mas, apesar de toda a dor, o seu ‘eixo da roda’
mantinha-o firme, permitindo-lhe continuar a rodar, a caminhar, a viver, a
pensar o país e o mundo”, sendo que “o eixo acompanha a roda mas não anda”. E,
para o sábio, “o eixo são os valores”, que são parâmetros axiais de vida,
marcada pela ética e pela estética, enquanto belas qualidades humanas.
Ficou-me na retina da memória a resposta a pergunta que um entrevistador de
TV lhe fez sobre o futuro, que marca bem a esperança de que era portador o entrevistado:
“Se me dissessem que o mundo acabaria amanhã, não tinha outro remédio que hoje ir
plantar maceiras” (cito de cor).
Os líderes que lhe sucederam no CDS – Manuel Monteiro,
Paulo Portas, José Ribeiro e Castro e, novamente, Paulo Portas, que o indicou
para o Conselho de Estado, e Assunção Cristas, que lhe prestou homenagem no
congresso de Lamego – sempre escutaram e invocaram o senador e a consciência de
um partido que chegou, neste ano, ao seu pior momento, com a perda de lugar na
Assembleia da República, situação pior do que no tempo em que era o partido do
táxi.
Porém, escreveu ao congresso de junho passado
lembrando: “O CDS foi o responsável português pela doutrina social da Igreja.
Nesta data, com o agravamento da crise na comunidade internacional, o que o
Papa faz é repor a importância e respeito pela humanidade, objetivos que o
nosso partido sempre assumiu. É por isso que o país não o pode dispensar. Acreditem
sempre, não desistam.”
E, a meu ver, é o apelo à não desistência, lançado na
rota da esperança, que está o principal legado do centenário político,
professor e publicista, assumível por ativistas de todos os quadrantes
políticos ou religiosos, com credo ou
sem credo.
2022.10.23 – Louro de Carvalho
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