Estão na berlinda,
neste momento – aliás como outros o estiveram em tempos não muito recuados –, Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, e Manuel
Pizarro, ministro da Saúde.
Abrunhosa é apontada por alegadamente favorecer a empresa do marido na
atribuição de fundos comunitários a candidatura que apresentou, bem como por,
alegadamente, o cônjuge ter alinhado com um empresário corrupto. E Pizarro, por
ser casado com a bastonária da Ordem dos Nutricionistas, não despacha os assuntos
relacionados com a dita Ordem, ficando esses por conta da Secretária de Estado
da Promoção da Saúde. Por outro lado, é dito que é sócio-gerente de uma empresa
de consultadoria, cuja dissolução apenas está dependente da venda de um imóvel.
Na verdade, o Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pela Lei n.º 18/2008,
de 29 de janeiro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 30/2021,
de 21 de maio), pelo 5.º B, n.º 2, estipula que “os contratos com
objeto passível de ato administrativo e demais contratos sobre o exercício de
poderes públicos ficam sujeitos às normas constantes do Código do Procedimento
Administrativo (CPA), com as necessárias adaptações”. Por isso, os casos apontados têm de ser vistos à luz
do (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, cuja última alteração
foi introduzida pela Lei n.º 72/2020, de 16 de novembro, e pela Lei n.º
52/2019, de 31 de julho, cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º
4/2022, de 31 de julho.
A ministra da Coesão Territorial escuda-se num parecer da Secretaria-Geral
da Presidência do Conselho de Ministros (PCM) e num parecer do Conselho
Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), ambos de 2021 (o primeiro,
de março, e o segundo, de maio), pedidos por si, não em razão de dúvidas, mas
de transparência. Ambos foram remetidos ao Parlamento pela ministra, como
solicitou o Partido Social Democrata (PSD).
Como
o parecer da PCM tem a marca da casa, o primeiro-ministro aconselhou a ministra
a solicitar o parecer do Conselho Consultivo da PGR, o qual não vê, segundo a conclusão
n.º 37, “incumprimento
de deveres de conduta por parte da ministra da Coesão Territorial”, de
acordo com a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, na sua redação atual, que
estabelece o “Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos
e Altos Cargos Públicos”.
Contudo,
nas conclusões seguintes, a PGR alerta para outros fatores que podem estar em
causa e insta o legislador –o Parlamento e o Governo, que é “o órgão superior
da Administração Pública” –, a olhar o “duplo fator de obscuridade” que pode
estar presente na lei e a “ponderar cuidadosamente” se
a lei deve ser alterada ou não. E justifica:
“A
fixação literal nos conceitos de contratação pública e de pessoa coletiva
representa um duplo fator de obscuridade que deve ser ponderado cuidadosamente,
quer pelo legislador parlamentar, quer pelo Governo,
enquanto órgão superior da Administração Pública e, ao mesmo tempo, dotado de
amplos poderes de iniciativa legislativa em matérias de competência reservada
da Assembleia da República.”
Assim,
à luz da lei das incompatibilidades, nada impedia o marido da ministra da
Coesão Territorial de concorrer e de aceder aos fundos em causa, mas a PGR sugere que se olhe
para a aplicação das garantias de imparcialidade consagradas no CPA que
possam recair sobre a ministra, no projeto de candidatura em que o cônjuge é interessado, nomeadamente o regime de
impedimentos (artigo 69.º) e o regime de escusas e
incidentes de suspeição (artigo 73.º).
Efetivamente,
o artigo 69.º do CPA estipula que os titulares de cargos públicos “não
podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito
público ou privado da Administração Pública” quando, “por si ou como
representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse o
seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges,
algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral,
bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham
uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil”.
A outra dúvida respeita ao dever de escusa dos titulares de
cargos públicos quando há dúvidas de “imparcialidade da conduta”, por
envolvimento do cônjuge ou de familiar direto. Com efeito, os conceitos de “contratação pública” e de “pessoa coletiva” podem não
estar claros na lei (“duplo fator de obscuridade”) e é isso que a PGR pede que
o Governo ou o legislador clarifiquem.
Conforme
estão expressos na lei, a PGR não vê qualquer incumprimento na conduta da
ministra, pois “a inibição que recai sobre o cônjuge respeita, estritamente, a
procedimentos de contratação pública,
e não sobre subvenções ou outros benefícios atribuídos por meio
de ato administrativo”.
Além
disso, em nenhum dos trabalhos legislativos que levaram à aprovação das
alterações à lei das incompatibilidades, em 2019, a PGR encontrou “indícios de
o legislador ter tido em vista um conceito mais amplo de contratação pública
suscetível de incluir a atribuição de subvenções por ato administrativo”. E
nenhum dos projetos de lei dos partidos da oposição continha modificações que
estendessem os impedimentos e inibições a outros procedimentos administrativos
concorrenciais e com peso na despesa pública nacional e da [União Europeia] (UE)”,
argumento aduzido
pelo primeiro-ministro no último debate parlamentar em defesa da conduta da
ministra.
Assim
sendo, à luz da lei atual nada indicia que a ministra, apesar integrar o mesmo conceito de “pessoa coletiva” [o Estado] que as
estruturas de missão dos Programas Operacionais Regionais,
tenha tido responsabilidade na atribuição direta dos fundos à empresa do
marido, nem que tal empresa estivesse inibida de concorrer por via do parentesco.
Porém, ao invés do parecer da PCM, que conclui que “não se constata impedimento
que impeça o cônjuge de apresentar candidatura a apoios comunitários (…) desde
que não ocorra a realização de qualquer tipo de procedimento de contratação
pública”, o parecer da PGR vai mais longe e remete para o Governo e para o
Parlamento um olhar cuidadoso para a lei e para a eventual clarificação dos
conceitos em causa.
O que a lei diz, segundo o deputado socialista Pedro Delgado Alves no
programa “Linhas Vermelhas”, da SIC,
no dia em que o caso foi noticiado, é que a ministra não pode tomar parte em
qualquer decisão relacionada com a empresa do familiar, além de que as empresas
do familiar já têm um conjunto de inibições em procedimentos de contratação
pública nas áreas tuteladas por ela, por serem detidas pelo familiar da
governante. O impedimento, contudo, diz respeito à contratação pública e não ao
acesso a fundos comunitários. O “equilíbrio é fino”, dizia o deputado, admitindo
que “ou reconhecemos que não há necessidade de trabalho legislativo nesta
matéria, ou disparamos para todos os lados” aumentando o leque de impedimentos.
Para Delgado Alves, “a lei
pode ser aprimorada e melhorada, mas de tudo o que foi relatado, tudo o
que tem sido discutido, a legislação atual garante que não só não há
intervenção dos membros do Governo ou qualquer outro responsável político
quando estão em causa matérias relativas a seus familiares próprios, como, para
além disso, estes são objeto de inibições.”
Delgado Alves salientou que, ante propostas que
aprofundem as garantias e que assegurem, de forma transparente e com clareza,
que a legislação é boa, “o PS tem manifestado recetividade para isso nesta
legislatura ou nas anteriores.” E, em relação ao caso em concreto, referiu que o
que tem sido discutido não é a situação atual da ministra, mas funções que, ao
longo da sua vida de serviço público, desempenhou em que, “potencialmente, se
entrecruzava com matérias que diziam respeito a fundos comunitários”. E
acrescentou: “Grande parte desta legislação resultou de iniciativas do PS.
Grande parte destas normas sobre contratação pública, sobre reforço da
transparência e integridade no exercício de funções públicas tem trabalho de
muitos anos.”.
Segundo
a ministra, como escreveu no jornal Público,
de 3 de outubro, mudar a lei daria um sinal errado sobre os direitos
disponíveis a todos os portugueses e ampliaria o clima de suspeição já
existente em torno da classe política. Com efeito, tal mudança ampliaria “ainda mais um quadro de
supressão de direitos e a alimentar um clima de desconfiança e permanente
suspeita sobre a classe política, tornando ainda mais difícil trazer pessoas
competentes para o serviço público”.
A
ministra mostra-se assim contra o que tinha sido sugerido antes pelo
deputado e vice-presidente da bancada do PS Pedro Delgado Alves, que admitiu
poder ser possível “aprimorar” a lei para estender a inibição que já existe
para casos de contratação pública de familiares de governantes a casos de
acesso a subsídios estatais ou comunitários.
Ana Abrunhosa também opina que retirar o direito de acesso a fundos comunitários
às empresas do cônjuge de ministro só por ser cônjuge da ministra que tutela,
em parte, a pasta dos fundos, é fazer dele “um
cidadão de segunda”. E diz que as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento
Regional (CCDR), as entidades que gerem os fundos e os programas dirigidos ao
território, não dependem “de qualquer análise prévia ou homologação da tutela”.
Logo, não é o ministério da Coesão Territorial que decide que empresas acedem
aos fundos.
***
Do meu ponto de vista, os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos devem comunicar exaustivamente a quem de direito
todos os seus rendimentos, património e interesses, para que as suas decisões e
atividades, sobre as quais possam recair suspeitas, possam rigorosa, atempada e
exaustivamente escrutinadas pela competente entidade inspetiva e pelos agentes
públicos.
Considero penoso ter o político de deixar uma empresa ou ter de a dissolver,
para exercer o cargo.
Já deixar a lei como está põe os políticos sob suspeita, mas aprimorá-la restringe
mais o exercício de direitos e a tomada de iniciativas úteis à economia ou ao
desenvolvimento social ou cultural do país. O titular do cargo exerce-o na situação
de capitis diminutio. Afastam-se potenciais
bons servidores da causa pública. E reforça-se a tentação para ações de
hipocrisia administrativa. O administrador ou membro de órgão colegial não
decide, nem participa em discussão e votação de matéria atinente a familiares e
equiparados, mas pode agendar a discussão e influenciar, na sombra, debate e deliberação.
E, em delegação e/ou subdelegação de competências, o delegante ou o
subdelegante podem, segundo o artigo 49.º do CPA, “emitir diretivas ou instruções vinculativas para
o delegado ou subdelegado sobre o modo como devem ser exercidos os poderes
delegados ou subdelegados” (n.º 1); e avocar, anular, revogar ou
substituir “o ato praticado pelo delegado ou subdelegado ao abrigo da delegação
ou subdelegação” (n.º 2). Para quê a exceção?
Não apertem a lei,
instem à fiscalização e ao escrutínio!
2022.10.04 – Loro de Carvalho
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