A romancista
francesa Annie Ernaux, de 82 anos, autora de Os
anos e O acontecimento, ambos
publicados, neste ano, em Portugal, pelo grupo Porto Editora, foi laureada com o Prémio Nobel da Literatura de 2022,
“pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, estranhamentos e
constrangimentos coletivos da memória pessoal”, como anunciou a Academia Sueca
ao final da manhã do dia 6 de outubro, em Estocolmo.
Ernaux é a
17.ª mulher a receber o Nobel da Literatura, que foi instituído em 1901 e cujo
vencedor – escolhido, de acordo com a vontade de Alfred Nobel, pela “produção
no campo da literatura do trabalho mais excecional” com uma “direção ideal” –
recebe um prémio monetário equivalente a aproximadamente 985 mil euros. Reagindo
à atribuição, a laureada disse ao canal de televisão sueco SVT que considerava o prémio “uma grande
honra” e “uma grande responsabilidade”.
Aquando do
anúncio, a Academia informou que não tinha ainda conseguido entrar em contacto
com a escritora, mas que esperava conseguir fazê-lo em breve.
Por sua vez,
a romancista referiu à agência de notícias sueca TT que estivera a “trabalhar de manhã” e que “o telefone esteve
sempre a tocar”, mas que não atendera. Segundo a Associated Press, foi apanhada de surpresa, tendo ficado a par da
atribuição após uma chamada de um jornalista sueco. “Tem a certeza?” –
questionou a escritora.
Posteriormente,
a romancista falou aos jornalistas em conferência de imprensa a partir dos
escritórios da editora francesa Gallimard, que publica os seus livros desde o
início da sua carreira literária, nos anos 70. “Estou muito comovida. Para mim,
representa algo enorme, em nome daqueles de que provenho”, referiu, citada pelo
The New York Times, aludindo à
sua proveniência e meio familiar economicamente remediados. “Receber o Prémio
Nobel significa, para mim, responsabilidade em continuar e em estar aberta ao
curso do mundo, atenta a um desejo de paz que me guiou sempre. E falando da
minha condição enquanto mulher, não me parece que nós, mulheres, tenhamos
liberdades e poderes iguais [aos dos homens]”, acrescentou.
Questionada
sobre as restrições ao aborto nos Estados Unidos da América (EUA), Ernaux, que publicou,
em 2000, o livro O Acontecimento, escrito a partir
da sua experiência na década de 1960, apontou: “Nunca imaginei que 20 anos
depois [da publicação], o direito ao aborto estaria a ser posto em causa
novamente”. E, inquirida sobre se o presidente francês lhe telefonou para lhe
dar os parabéns, respondeu que tinha desligado o telefone.
Autora de
mais de 30 trabalhos literários, Ernaux nasceu em 1940. Cresceu numa
pequena aldeia na região da Normandia, no norte de França, onde os pais tinham
um café e uma mercearia.
Na sua obra,
que tem como principal inspiração a sua própria vida, a romancista “examina,
consistentemente e de diferentes ângulos, a vida marcada por fortes
disparidades em relação ao género, língua e classe”. Escrever é, para a autora,
um ato político, que serve para abrir os olhos dos leitores para a
“desigualdade social”. “Acredita manifestamente na libertação da força da
escrita. O seu trabalho é intransigente e escrito numa linguagem simples,
limada. E, quando, com grande coragem e acuidade clínica, revela a agonia da
experiência da classe, descrevendo a vergonha, humilhação, inveja ou
incapacidade de ver quem somos, alcançou alguma coisa admirável e duradoura”,
referiu Anders Olsson, presidente do Comité do Nobel, vincando o seu “longo e
difícil” caminho até à carreira literária.
Interpelado
sobre se a Academia Sueca pretendia enviar algum tipo de mensagem com a escolha
de uma autora que aborda questões sociais nas suas obras, Anders Olsson,
que fez a apresentação da laureada e respondeu às perguntas dos jornalistas
presentes em Estocolmo, declarou que o Comité se concentra na “literatura e na qualidade
literária”, não tendo nenhuma mensagem para o mundo”. Não obstante, o Comité
considera importante que “o trabalho do laureado tenha uma consequência
universal, que consiga chegar a toda a gente” e, nesse aspeto, “a mensagem é
que isto é literatura para toda a gente”. E, sobre o facto de o galardão não
ter sido atribuído a um escritor não-europeu, Olsson explicou que o júri segue diferentes
critérios e que não é possível satisfazê-los a todos. “Podemos apenas
assegurar-nos de que aquilo que procuramos é qualidade literária”, afirmou, em
resposta a uma pergunta do jornalista da Associated
Press.
Tendo, em
2021, sido galardoado Abdulrazak Gurnah, escritor (romancista e contista) não-europeu
(nascido na Tanzânia, mas residente no Reino Unido desde os anos 60) – pela “capacidade
de mergulhar de forma intransigente, mas também compassiva, nos efeitos do
colonialismo e nos destinos dos refugiados que estão num abismo, divididos
entre culturas e continentes”, pela “dedicação à verdade” e pela “aversão às
simplificações –, o presidente do Comité do Nobel salientou que, neste ano, o
prémio foi atribuído a uma mulher. Houve, de facto, poucas mulheres laureadas
no passado. Por isso, tem-se tentado alargar o
espetro do Prémio Nobel, mas o foco “deve ser a qualidade literária” –
precisou.
A última
mulher a receber o prémio foi a poeta norte-americana Louise Glück, em
2020. Nos últimos anos, o Comité tem procurado incluir mais mulheres, que
raramente eram contempladas, atribuindo o Nobel da Literatura a uma mulher de
dois em dois anos desde 2013, quando foi galardoada a canadiana lice Munro.
O presidente
francês, Emmanuel Macron, congratulou Annie Ernaux pela sua distinção com o
Prémio Nobel da Literatura. Em reação à atribuição do prémio, através de uma
nota difundida nas redes sociais, Macron escreveu: Annie Ernaux tem vindo a
escrever, ao longo de 50 anos, o romance da memória coletiva e íntima do nosso
país. A sua voz é a da liberdade das mulheres e dos esquecidos do século. Ela
junta-se, graças a esta consagração solene, ao grande círculo de vencedores do
Nobel da nossa literatura francesa.”
Por seu
turno, a editora São José Sousa, da Livros do Brasil (responsável pela
publicação da obra de Annie Ernaux em Portugal), encara a entrega do Prémio
Nobel da Literatura à autora francesa, de 82 anos, como uma distinção
“absolutamente justa” e um “reconhecimento muito merecido” a uma “escrita muito
original e de coração aberto”. Para a editora, Ernaux “é uma autora que
consegue pegar nas histórias mais íntimas da sua própria história para criar
narrativas com universalidade, por falar de temas que são muito humanos e que, por
isso, falam de todos nós.”
São José
Sousa apontou que “é realmente muito original” a capacidade que Ernaux tem de “pegar
nos acontecimentos mais pequeninos da vida, na especificidade de cada momento
da sua história, e procurar esses reflexos no que contam sobre o país e o
momento e o mundo em que vive”. E recordou que a “autoficção”, género literário
que mistura ficção com relatos pessoais e biográficos, “tem vindo a ser muito
trabalhada nos últimos anos”, mas, se “há alguns autores que se destacam nesse campo,
a Annie é, sem dúvida, uma mestre a fazer a esta ponte. E é curioso que o faça “com uma escrita que é tão despida, tão
direta, por vezes até um bocadinho crua, sem artifícios e sem pudores, sem
necessidade de embelezar nada, porque a vida como ela é e com a
simplicidade com que se pode relatá-la acaba por ganhar mais força”.
Já sobre o
impacto da atribuição do Nobel na publicação de livros de Annie Ernaux em
Portugal, a editora da Livros do Brasil disse não poder “especificar” se já
existem obras previstas para editar ou reeditar, de entre a vasta produção
literária da autora que está disponível em tradução portuguesa só em parte. Mas
“a vontade é que aconteça isso mesmo”. Na verdade, como explica, “não sendo
propriamente uma autora bestseller, era uma autora
com um público fiel”, mas “agora, com certeza, será a oportunidade para que
mais leitores a descubram.
Junta-se
Ernaux ao painel dos outros 15 franceses laureados com o Nobel da Literatura (entre parêntesis, as áreas em que se
distinguiram): Sully Prudhomme (1901, poesia e ensaio), Frédéric Mistral
(1904, poesia e filologia), Romain Rolland (1915, romance), Anatole France (1921,
romance e poesia), Henri Bergsson (1927, filosofia), Roger Martin du Gard
(1937, romance), André Gide (1947 romance e ensaio), François Mauriac (1952,
romance e conto), Albert Camus (1957, romance, conto, drama, filosofia e
ensaio); Saint-John Perse (1960, poesia), Jean-Paul Sartre (1964, romance, filosofia,
drama, crítica literária e roteiro), Claude Simon (1985, romance), Gao Xingjian
(2000, romance, drama e crítica literária), Jean-Marie Gustave Le Clézio (2008,
romance, conto, ensaio e tradução) e Patrik Modiano (2014, romance).
Apesar
do estilo clássico, a autora autointitula-se “uma etimologista de si mesma”,
mais do que uma escritora de ficção. A ambição de quebrar os padrões da ficção
conduziu-a a uma tentativa de reconstituir metodicamente o seu passado, num tom
autobiográfico que a Academia Sueca descreve como “uma prosa em bruto sob a
forma de diário”.
Para
José Mário Silva, crítico literário do Expresso,
que prestou declarações à TSF, “é uma autora muito peculiar, porque escreve
sobre ela própria, sobre a sua vida, sobre a sua história, como se fosse uma
personagem de ficção” e “vai buscar factos reais da sua vida e transforma-os em
romances”.
***
É
mais um motivo de congratulação e de festa para a literatura mundial num mundo tão
utilitarista!
2022.10.06 –
Louro de Carvalho
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