Face à onda
de crime que a denúncia – furtiva ou sistemática – tem posto a nu, sobretudo no
seio da Igreja, além da condenação inequívoca dos erros e da preservação da
dignidade da pessoa, seja ela quem for (mesmo do prevaricador, a quem deve ser
dado o justo castigo, mas não a excomunhão), importa pedir ao Senhor que nos
aumente a fé, para que ela não definhe e as pessoas não sejam empecilho ao
advento do Reino de Deus, nem os promotores do Reino sejam generalizadamente
descredibilizados. Ninguém está imune ao pecado e ninguém é irrecuperável.
A Palavra de Deus, proclamada e meditada no 27.º domingo do
Tempo Comum no Ano C, que inspira vários temas, como a fé, a salvação, a
radicalidade do “caminho do Reino de Deus”, etc., traz ao de cima a reflexão
sobre a atitude correta que o homem deve assumir perante Deus.
Em primeira
leitura é-nos oferecido um texto de Habacuc, de cuja pessoa nada se sabe: nem o
lugar de nascimento, nem a família, nem o período em que viveu. Todavia, esta
falta de dados não impede de ver no livro de Habacuc alguém profundamente
enraizado na História do seu tempo e em toda a problemática da ação de Deus na
História.
A menção dos
caldeus, “aquele povo feroz e impetuoso / que se espalha pela superfície da
terra / para se apoderar de habitações que não são suas” (Hab 1,6), leva a
colocar a profecia de Habacuc na época em que os Babilónios começaram a dominar
todas as regiões do Próximo Oriente Antigo (final do século VII a.C.) e
impuseram o jugo a Judá. Era no tempo do rei Joaquim (609-597 a.C.) ou no
período a seguir a 597, data da primeira deportação para a Babilónia.
Muitos
elementos cultuais presentes no livro (o mais claro de todos é o capítulo 3)
levam alguns comentadores a relacioná-lo com as liturgias penitenciais de
tempos posteriores. Porém, importa discernir se os oráculos proféticos foram retocados
para uso litúrgico ou se os elementos da liturgia foram reelaborados em forma
profética. Como essa distinção não é fácil, mantém-se no início do domínio
babilónico a provável composição do livro.
O livro está
estruturado em três partes: diálogo
entre o profeta e Deus (1,2-2,4), com duas queixas do profeta (1,2-4 e
1,12-17) e duas respostas de Deus (1,5-11 e 2,1-4); maldições contra o opressor (2,5-20), com cinco imprecações
condenatórias de todos os crimes cometidos pela tirania dos poderosos; e um salmo (3,1-19), a celebrar o
triunfo definitivo de Deus na Natureza e na História. A primeira das queixas do
profeta coloca o problema da justiça: “porque triunfam os ímpios?” A primeira
resposta divina não satisfaz o profeta, pois os babilónios acabam por se
exceder e são mais cruéis do que os outros. Por isso, o profeta queixa-se de
novo, não compreendendo como Deus olha silencioso para os traidores. E a
segunda resposta aponta para o cumprimento da palavra divina: o profeta recebe
a palavra e aguarda o seu cumprimento.
Em termos
teológicos, o grande tema do livro é a justiça divina. Deus é o Senhor da
História, mas a sua soberania de Deus só se entende na fé. A sucessão de crimes
e violências que emolduram os impérios leva o profeta a interrogar-se diante de
Deus, esperando o castigo dos opressores. Mas o castigo violento gera violência
e o problema insolúvel. O profeta supera a questão, convicto de que Deus é a
única fonte de fortaleza e todo o império opressor acabará por ser punido,
mesmo que não se compreendam as circunstâncias históricas.
O trecho assumido para a liturgia desta dominga (Hab 1,2-3;
2,2-4) insere-se na primeira parte acima descrita. O rei de Judá é Joaquim
(609-598 a.C.), um rei fraco e incompetente, que explora o povo, deixa aumentar
as injustiças e cavar um fosso cada vez maior entre ricos e pobres. A par
disso, desenvolve uma aventureirista política de alianças com as superpotências
coevas. Apesar das simpatias de Joaquim pelo Egito, Judá sente o peso do
imperialismo babilónio e vê-se coagido a pesado tributo a Nabucodonosor.
Prepara-se a queda de Jerusalém nas mãos dos babilónios, a morte de Joaquim, a deportação
de Joaquin, seu filho e sucessor (que reinou três meses), e o exílio de parte
da classe dirigente de Judá (primeira deportação: 597 a.C.).
O texto em referência começa pela queixa de Habacuc: “Até
quando, Senhor, clamarei sem que me escutes? Até quando gritarei ‘violência’,
sem que me salves?” O profeta, sentindo-se interpelado pelo ambiente que o
rodeia, grita a sua impaciência e a do seu Povo e questiona a complacência de
Deus para com o pecado, pois não concebe que Deus, o libertador e salvador na
história do Povo, que Se proclama fiel aos seus compromissos para com os
homens, não ponha fim às grosseiras violações do seu plano para o mundo. O
profeta não se cinge a escutar a Palavra do Senhor e a transmiti-la, mas toma a
iniciativa de interpelar Deus, exigindo respostas. E, qual sentinela vigilante,
fica à espera de que Deus Se justifique. Por sua vez, Deus responde com uma
mensagem de esperança, pois não ficará indiferente ante o mal que desfeia o
mundo, antes está para vir o momento da vingança divina, restando ao homem
esperar com paciência o tempo da ação de Deus, pela qual o orgulhoso e o
prepotente receberão o castigo e o justo triunfará.
Enfim, ante a injustiça e a opressão, o Senhor, que parece indiferente
e ausente, encontrará o momento oportuno para intervir, punindo o imperialismo,
o orgulho, a injustiça e a opressão.
***
O texto lucano do Evangelho (Lc 17,5-10) mantém-nos nos
passos do caminho de Jerusalém com as lições que preparam os discípulos para o
repto de compreender e testemunhar o Reino. Porém, desta feita, junta-se um
dito de Jesus sobre a fé e uma parábola que insta à humildade na realidade da
vida. Jesus avisara os discípulos da dificuldade de percorrer o caminho do
Reino (“entrar pela porta estreita”; humildade e gratuitidade; amar mais o
Reino do que a família, os interesses os bens próprios; perdão como atitude
permanente; …). Admiravelmente, neste passo, são os discípulos que, preocupados
com a exigência do “Reino”, pedem mais “fé”.
O dito desta passagem evangélica sobre a fé, que aparece num
teor um pouco diferente em Mt 17,20 (há um dito análogo em Mc 11,23 e Mt 21,21,
acerca da figueira seca), serve para Lucas manifestar a preocupação dos
discípulos com a dificuldade em percorrer o caminho do Reino.
Depois das exigências que Jesus lhes apresentou, quanto ao
caminho que devem percorrer, a reação dos discípulos foi: “aumenta-nos a fé”.
No Novo Testamento, em geral, e nos evangelhos sinóticos, em particular, a fé
não é, primordialmente, a adesão a dogmas ou a verdades abstratas sobre Deus,
mas a adesão à pessoa de Jesus e ao seu programa do Reino. Porém, os discípulos
têm consciência de que não é cómoda e fácil tal adesão, pois requer um compromisso
radical, a luta pela vitória sobre a própria fragilidade. Portanto, pedir a
Jesus que lhes aumente a fé significa, para os discípulos, pedir o aumento da
coragem da opção pelo Reino e pela sua exigência.
Jesus aproveita para recordar aos discípulos o resultado da
fé. A imagem a que recorreu (a ordem à amoreira para se arrancar da terra e ir
plantar-se ela própria no mar) mostra que tudo é possível com a fé, ou seja,
quando o discípulo adere a Jesus com coragem e determinação, a sua pessoa fica totalmente
transformada e, por consequência, gera a transformação do mundo que a rodeia.
Aderir ao Reino com radicalidade é ter na mão a chave da mudança da história,
mesmo que isso pareça impossível. Quem adere ao Reino a sério é capaz de
autênticos “milagres”.
Em seguida, o evangelista descreve a atitude que o homem deve
assumir ante Deus. Os fariseus estavam convictos de que bastava cumprir os
mandamentos da Torah para alcançar a salvação: se o homem cumprisse as regras,
Deus não teria outro remédio senão salvá-lo. A salvação dependia, nesta perspetiva,
dos méritos do homem. Deus seria apenas o notário dos factos que o homem
desejoso da salvação protagoniza. Ora, Jesus coloca as coisas numa dimensão diferente.
A atitude do discípulo ante Deus não deve ser a de quem sente que fez tudo
muito bem feito e que, por isso, Deus lhe deve o équo favor, mas a de quem desempenha
o seu múnus com humildade, sentindo-se um servo que apenas fez o que lhe
competia e que está sempre disponível para mais e melhor.
Isto não quer dizer que os senhores possam explorar até
exaustão os seus servidores (Respeite-se imperativamente a dignidade e compreendam-se
as limitações de cada pessoa!), mas que o servidor do Reino deve estar
disponível para servir sempre e em todo o lugar aonde seja chamado.
O que Jesus pede no Evangelho desta dominga é que
percorramos, com empenho e coragem, o caminho do Reino. E, cumprida a sua
missão, resta ao discípulo sentir-se servo humilde de Deus, agradecer-Lhe pelos
seus dons e entregar-se confiada e humildemente nas suas mãos.
***
Também o texto escolhido para 2.ª leitura (2Tm 1,6-8.13-14) constitui
um acervo de conselhos pastorais, tal como o da 1.ª Carta a Timóteo, grande
colaborador e sucessor de Paulo na animação das Igrejas da Ásia, ele que
acompanhou o apóstolo nas suas viagens missionárias e que, segundo a tradição,
foi bispo de Éfeso.
Tal como na primeira, também na 2.ª Carta a Timóteo é
duvidoso que seja Paulo o autor literal do texto. A linguagem é diferente da utilizada
habitualmente pelo apóstolo, tal como o estilo, as doutrinas e, sobretudo, o
contexto eclesial que nos situa mais no final do século I ou nos princípios do
século II do que da época de Paulo. Em todo o caso, quem se apresenta na pele
de Paulo está na prisão e pressente a proximidade da morte. Exorta
insistentemente Timóteo a perseverar no ministério e a conservar a sã doutrina.
É uma espécie de testamento, em que Timóteo, em representação de todos os animadores
das comunidades cristãs, é instado a manter-se fiel ao ministério e à doutrina
recebidos dos apóstolos. Recomenda a Timóteo que reanime o carisma que recebeu
quando Paulo e os anciãos lhe impuseram as mãos, consagrando-o para o ministério
apostólico. Mesmo tendo já sido tomada a opção de doar a vida a Deus e aos
irmãos, essa decisão fundamental precisa, cada dia, de ser confirmada e
aprofundada, pois as desilusões e os fracassos, a monotonia e a rotina, a
fragilidade humana e a tentação do comodismo esfriam o entusiasmo.
Na sequência, são recordadas a Timóteo três das qualidades de
base que devem estar sempre presentes: a fortaleza ante as dificuldades, o amor
que o impele à entrega total a Cristo e aos homens e a prudência (ou moderação)
adequada à animação e à orientação da comunidade.
Num segundo momento, Timóteo é exortado a conservar-se fiel à
sã doutrina recebida de Paulo, pois, sobretudo em tempo de apostasia, de
heresia e de pecado nefando, propício a contaminar a comunidade, a animador
comunitário tem o dever de ensinar a sã doutrina e de defender a comunidade de
tudo o que a afasta da verdade do Evangelho de Jesus, fielmente transmitido
pelo testemunho apostólico. E, por sua vez, o crente deve implorar o aumento do
dom da fé, que leve a resistir a todo o género de mal e de tibieza, deve apoiar
a sua fé pessoal na fé comunitária e estar disponível para ajudar a reforçar a
fé de todos, pois a fé é dom e fruto de esforço.
2022.10.02
– Louro de Carvalho
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