Fenómenos
políticos, sociais e económicos devem ser explicados segundo categorias do
mesmo teor, e não por categorias religiosas ou mediúnicas, embora as orações
ditadas pela fé dos crentes possam influenciar as boas decisões políticas, sociais
e económicas. Não obstante, perante surtos de crise, a explicação ultracientífica
mobiliza clientes e agentes adequados ao mister.
Nestes
termos, refere a revista Nova Gente,
de 10 de outubro, que António Costa está a ser alvo de bruxaria feita por
Fernando Nogueira, o bruxo de Fafe, que se tornou militante ativo do Chega,
partido liderado por André Ventura, e que relatou, em exclusivo, à revista tudo
o que está a fazer para afastar do governo o Partido Socialista (PS). Diz que o
faz de 15 em 15 dias, porque tem de “tomar as rédeas do jogo e continuar com o
trabalho”, pois, segundo crê, “essa gente não governa, governam-se, e têm que
ser destruídos, porque o Governo está possuído pelo demónio”.
O
bruxo explicou tudo o que tem feito para afastar António Costa do Governo: “Os
trabalhos que me são pedidos nesses termos funcionam da seguinte maneira: faço
os desbloqueios e depois, com a fotografia da pessoa, vou ao mar, vou à Capela
da Senhora da Guia, em Vila do Conde, à Capela da Senhora da Boa Morte, em
Ponte de Lima, e faço encruzilhadas em alguns cemitérios.”.
O
conhecido médium revela que este ‘trabalho’ foi encomendado e conta que ajudou
André Ventura a ganhar votos nas últimas eleições.
***
Possessão demoníaca ou simplesmente possessão é, segundo muitos sistemas
de crença, o controlo de pessoa, animal ou objeto por ente maligno
sobrenatural. Alguns casos incluem danos à saúde, mudança de comportamento e
até memórias ou personalidades apagadas, com convulsões e desmaios como se
a pessoa estivesse a morrer. Outros casos incluem o acesso a conhecimento
oculto (gnósis) e a línguas
estrangeiras (glossolalía),
mudanças drásticas na entoação vocal e na estrutura facial, súbito aparecimento
de lesões (arranhões, marcas de mordedura…) ou lesões e força sobre-humana. Ao
invés da canalização mediúnica ou de outras formas de possessão, a
pessoa não controla a entidade que a possui, pelo que permanece nesse estado
até que a entidade seja forçada a deixá-la, normalmente através de exorcismo.
Muitas culturas
e religiões adotam o conceito de possessão, mas os detalhes variam. As mais
antigas referências vêm dos Sumérios, segundo os quais todas as doenças do
corpo e da mente eram causadas por demónios
de doenças (gidim ou gid-dim). O sacerdote
exorcista era o ashipu (feiticeiro), oposto ao asu (médico),
que aplicava pomadas, bandagens ou massagens. Muitas tábuas cuneiformes contêm
orações aos deuses pedindo proteção contra os demónios; outras pedem aos deuses
para expulsar os demónios dos corpos.
As culturas xamânicas
creem em possessões e os xamãs fazem os exorcismos. As doenças são, muitas
vezes, atribuídas à presença, no corpo do paciente, de espíritos vingativos (demónios),
descritos como espectros de animais e/ou de pessoas injustiçadas pelo
portador; e os ritos de exorcismo são, compostos de ofertas respeitosas ou
ofertas de sacrifício.
Para o cristianismo,
a posse deriva do Diabo (Satanás) ou de um dos seus demónios, descritos
como anjos caídos. Os mais suscetíveis de serem possuídos são pessoas com
limites fracos e com baixa autoestima, o que, para céticos acerca da
possessão, representa o envolvimento do ego
disfuncional em manifestações deste fenómeno, em vez de reais entidades
externas.
O Evangelho relata vários episódios em que Jesus Cristo expulsou o
demónio de possessos, tendo transmitido esse poder sido aos apóstolos, aquando da
Ascensão. O exorcismo é um sacramental da Igreja Católica (quase em
desuso) que um exorcista, designado pelo Bispo, administra para libertar
pessoas e coisas da possessão. A causa da possessão em pessoas está associada a
malefícios contra estas: mau-olhado, participação em rituais de ocultismo,
prática de reiki,
adivinhação, tarot, magia, etc.,
bem como idolatria do sexo e vida em pecado mortal.
A possessão não
é diagnóstico psiquiátrico reconhecido pelo DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders – Manual
de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais),
mas é-o pelo CID-10 (International
Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados com a Saúde): item F44.3 (Estados de transe e de possessão). São transtornos
caraterizados por perda transitória da consciência da própria identidade,
associada à conservação da consciência do meio ambiente. Devem ser incluídos só
os estados de transe involuntários e não desejados, excluídos os de situações admitidas no
contexto cultural ou religioso do sujeito. Quem crê em
possessões demoníacas descreve, por vezes, sintomas comuns a várias doenças
mentais (histeria, mania, psicose, síndrome de Tourette, epilepsia,
esquizofrenia ou transtorno dissociativo de identidade). Dos casos de
transtorno dissociativo de identidade, em que a personalidade é questionada quanto
à identidade, 29% são possessões demoníacas. E há uma forma de monomania
(“demoniomania” ou “demonopatia”), em que o paciente crê estar possuído por um
ou mais demónios.
Às vezes, o
exorcismo funciona em pessoas com sintomas de possessão por efeito do placebo e
pelo poder de sugestão. Algumas pessoas supostamente possuídas são
narcisistas ou sofrem de baixa autoestima e agem como a pessoa
possuída por um demónio, para concitar atenção.
Historicamente,
a possessão era a causa da loucura. Um clássico, relegado a segundo
plano por opção religiosa, sobre o tema é o livro A Loucura sob novo prisma, do homeopata e cirurgião Bezerra de
Menezes (1831-1900). E, no desenvolvimento da psiquiatria no Brasil, o tema foi
abordado pela escola baiana, entre outros sobretudo por Nina Rodrigues
(1862-1906) que, apesar dos preconceitos e da patologização de manifestações
religiosas (tidas como epiléticas ou histéricas) reuniu e produziu considerável
material etnográfico sobre as religiões africanas.
A
interpretação psicanalítica inaugurou uma forma de estudo até hoje válida, no quadro
da relação entre conteúdo religioso e manifestações criminosas. Pode-se tomar
como marco da abordagem o trabalho de Sigmund Freud Uma neurose demoníaca do século
XVII (1922).
Ao invés da
Idade Média e do século XVII, hoje, considera-se a maioria dos casos de possessão
como de distúrbio sociológico, não patológico. Dalgalarrondo, em revisão
de trabalhos publicados desde o final do século XIX sobre messianismo, loucura
religiosa e trabalhos contemporâneos a relacionar religião, uso de álcool e
drogas, além de algumas condições clínicas (esquizofrenia e suicídio), refere a
ausência duma linha de pesquisa que leve à boa articulação entre investigação
empírica e análise teórica, bem como a um diálogo próximo da psiquiatria com
as ciências sociais (antropologia e sociologia da religião) para avanço maior
nesta matéria. Com efeito, a ciência, mesmo em estado avançado, não resolve a angústia
existencial, que requer vias alternativas.
****
A aplicação da obra diabólica à política não é de agora. A 11 de
fevereiro de 2013, oJornal de Notícias (JN),
avisava que, em tempo de crise, os consultórios de bruxos e de videntes estavam
cheios de clientes que procuravam a ‘luz ao fundo do túnel’, Mas para os
profissionais do sobrenatural a conclusão era simples: “O Governo está possuído
pelo demónio (…) basta olhar para o ministro das Finanças.” E uma professora desempregada, casada
e com dois filhos, confessava ao JN que os
consultórios de bruxos e de videntes estavam cheios porque “a vida corre tão
mal, tão mal que vai além do que é humanamente possível”.
As
dificuldades que os portugueses enfrentam estão na origem do fenómeno. A culpa,
diziam os profissionais do sobrenatural, é da crise e do Governo: “O Governo é
que está possuído pelo demónio, sem quaisquer dúvidas, não é o povo. Qualquer
pessoa com poderes, basta olhar, por exemplo, para o ministro das Finanças
[Vítor Gaspar]. Vê-se logo que está possuído” – afirmava já então ao JN o bruxo de Fafe, Fernando Nogueira, garantindo,
ainda assim, que a feitiçaria e o mau-olhado continuam por aí: “Continua a
haver muita feitiçaria e muito mal à solta.”
O custo
destas ‘consultas’ não está definido, o cliente “dá o que quiser dar”. O que
ajuda ao negócio numa altura de crise. “Os governantes governam mal e as
pessoas vêm ter comigo para as ajudar a não desistir da vida”, conta o mestre
Alves, o das “limpezas espirituais” no Norte.
Mais tarde,
em maio de 2015, falando da necessidade de ganhar as eleições de outubro com
maioria, Passos Coelho avisava os seus correligionários de que se tal não
acontecesse, viria o Diabo. Ganhou as eleições, mas o Diabo “inspirou” a maioria
de esquerda que possibilitou o sucesso de legislatura por parte de um governo minoritário
do PS. E, em julho de 2016, anunciou que, em
setembro, o diabo aterrorizaria este cantinho à beira mar plantado, mas o Diabo
não veio e os orçamentos do Estado foram passando no Parlamento até fins de
2021.
E, recentemente,
José Mário Leite, no jornal Nordeste,
escreveu que o Diabo chegou e aí está a assombrar o Governo com as
trapalhadas ministeriais (Se a TAP foi renacionalizada e reforçada com três mil
milhões para evitar que o HUB vá para Madrid, como se justifica a ausência do
risco ao ser privatizada?), com as reduções do imposto sobre o rendimento das
pessoas coletivas (IRC), com as incompatibilidades dos gabinetes ministeriais e
com as pressões para apagar gravações e excluir de atas, de intervenções
alheias. E a procissão do mafarrico ainda vai no adro.
***
E se se
proceder a um exorcismo político?! Nada de encharcar de químicos como faz o
psiquiatra!
2022.10.17 – Louro de Carvalho
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