A
30 de outubro, após um mandato de tumulto e fúria de Jair Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), exemplificado no tratamento abissal
da pandemia de covid-19, no saque da Amazónia, nos ataques à democracia e num
fluxo constante de declarações racistas, sexistas e homofóbicas, Luiz Inácio Lula
da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), venceu as eleições, tornando-se o
único cidadão eleito presidente para três mandatos (este é o terceiro), embora
não todos consecutivos, desde a redemocratização do Brasil (entre os anos 1975
e 1985).
Segundo a editorial do Le Monde, do dia 31
de outubro, a vitória de Lula da Silva representa “um alívio planetário”, sendo
rapidamente saudada em toda a América Latina, mas também em Washington e em
Bruxelas (o que pode inibir uma tentativa de golpe “trumpista” da parte de
Bolsonaro). Na verdade, nunca a vitória de um candidato de esquerda na
América Latina terá sido tão politicamente bem-vinda e saudada com tal
amplitude fora desse subcontinente como esta. Efetivamente, com as experiências
governativas de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, o mundo dito ocidental estava
quase em pânico, até porque a extrema-direita se mostrou em crescente ascensão
em vários países europeus e do mundo inteiro, como atesta Joe Mulhall no seu
livro Tambores ao longe (2022).
Resta,
assim, ao líder de extrema-direita, calado na noite eleitoral (o seu, pelos
vistos, aconselhado silêncio é ambíguo), uma obrigação para com o país:
reconhecer publicamente a derrota, o que não parece fácil, e preparar uma
alternância pacífica no topo do Estado, se tal for a sua vontade política. Não é
plausível que o homem que foi, muitas vezes, comparado ao ex-presidente dos
Estados Unidos, Donald Trump, o imite neste desfecho da campanha eleitoral mais
virulenta e violenta de sempre no Brasil. Com efeito, não é legítimo desafiar
as instituições, só porque as coisas não correram de feição e os resultados
marcam a vitória do adversário, que tem, agora, de pensar nos desafios que tem
pela frente.
Na
primeira volta, Lula ficou à frente dos demais candidatos, separado de
Bolsonaro por cinco milhões de votos. Nesta segunda volta, a que se
apresentaram dos dois candidatos mais votados, o vencedor arrecadou apenas pouco
mais de dois milhões de votos, obtendo 50,9% dos votos, ficando o derrotado com
a restante percentagem (49,1%), não obstante Lula da Silva ter obtido o apoio
explícito de candidatos que ficaram para trás na primeira e de ex-presidentes,
como Dilma Rousseff, Fernando Henrique Cardoso e José Sarney. Está visto que os
sequazes dessas ilustres figuras públicas não acolheram as suas indicações de
voto.
Foi
a primeira vez, depois da redemocratização, que o candidato derrotado ganhou em
mais unidades federativas que o candidato vencedor. Bolsonaro venceu com ampla
margem de votos no Acre, Distrito Federal, Espirito Santo, Goiás, Mato Grosso,
Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondónia,
Roraima, Santa Catarina e S. Paulo, com larga margem, e no Amapá com uma margem
pequena, apesar de Lula ter ali vencido na primeira volta. São 14 Estados. Já o
petista teve vitórias amplas nos Estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão,
Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe; e teve vitórias
menos expressivas no Amazonas, no Pará, em Minas Gerais e em Tocantins São ao
todo 13 Estados
Após
o escrutínio eleitoral da primeira volta, a 2 de outubro, vieram ao de cima
alegações que fragilizaram a candidatura do candidato do PT, por exemplo: não
ter especificado, na campanha, o seu projeto para a economia, a sua antiga
preferência, não revogada, pela exploração dos recursos fósseis (para várias
aplicações, nomeadamente combustíveis), assédio sexual enquanto esteve recluso
e a sua condição de condenado à prisão (muito embora nunca tenham sido
suficientemente esclarecidos os motivos da sua condenação por corrupção (de que,
afinal, foi completamente ilibado), pairando a ideia de que esteve na sua origem
a delação premiada).
A
estreiteza da vitória de Lula da Silva, que acabou por concretizar, aos 77 anos
e após uma passagem na prisão, uma das voltas ao poder mais espetaculares já
realizadas numa potência do tamanho do Brasil, mostra como a sua tarefa será imensa.
Enquanto, inicialmente, havia sido previsto um triunfo inequívoco, o
ex-sindicalista teve de suar as estopinhas para arrebatar os votos que lhe
permitiram chegar à frente de Jair Bolsonaro. Porém, o ora vencedor acreditava
ter colocado muitos trunfos em jogo, a começar por ir além da sua ancoragem
política original, a esquerda identificada com o PT, partido de que foi um dos
fundadores e figura de proa. Ante o presidente incumbente, apresentou-se à frente
de ampla coligação aberta aos centristas e mesmo aos conservadores, frente
ampliada que recebeu novos apoios entre as duas voltas eleitorais.
Essa
estratégia foi essencial, mas não impediu o recrudescimento de um populismo
agressivo e a passagem do bolsonarismo militante para o bolsonarismo institucional,
o que se confirmou nesta segunda volta, com várias intervenções dúbias da
polícia e a ambiguidade das forças armadas. Efetivamente, enquanto a campanha
presidencial fez vir à tona a vulnerabilidade do país às inverdades veiculadas
pelas redes sociais e a influência de alguns pastores evangélicos
ultraconservadores, o bolsonarismo está presente no Congresso do Brasil, bem
como em muitos dos seus Estados, a começar pelo mais rico, o de São Paulo, que
será, doravante, liderado por um ex-ministro do presidente derrotado.
No
entanto, agora, é de saudar a vitória de Lula da Silva, o velho operário e
sindicalista que é, de novo, o Presidente do Brasil, regressado à luta política
após a dolorosa experiência da injusta acusação, condenação e prisão por
alegada corrupção, ditada pela judicialização da política.
A recandidatura
vitoriosa do político petista face ao incumbente constitui um fabuloso exemplo
de combatividade e resiliência políticas, reveladoras de um forte carisma
pessoal e inabaláveis convicções que emolduram a personalidade do vencedor.
Todavia, é de
reconhecer que são agora bem mais difíceis os desafios do seu governo do que das
outras vezes. Com efeito, a vitória eleitoral não teve uma folga tão ampla como
se esperava (uma diferença de dois pontos percentuais em relação a Bolsonaro) e
advém sobretudo do voto nordestino. Por outro lado, é de registar a lamentável
situação económica e social em que o Presidente cessante deixa este grande país:
pobreza, abandono escolar, escandalosa assimetria de rendimento, apartheid social.
Além disso, sobressai a fragilidade da coligação que apoiou Lula da Silva, que
vai da extrema-esquerda à direita moderada e que espera dele a satisfação das
suas reivindicações. Por último, o Presidente vai debater-se com a falta de
apoio político no Congresso, onde o PT e a esquerda têm menos deputados e
senadores do que antes, tornando mais difícil a aprovação dos orçamentos e a da
legislação de que o governo precisa.
A tudo isto
acresce o “bolsonarismo social”, que, perpassando a sociedade brasileira,
cativou quase metade dos eleitores. Na verdade, apesar de o chefe ter perdido
as eleições, há os deputados e senadores bolsonaristas em Brasília, os
governadores bolsonaristas em Estados importantes (a começar por S. Paulo), as
redes de conspiração bolsonaristas nos média e nas redes sociais, os núcleos
bolsonaristas na polícia e nas forças armadas, a ação de muitas igrejas
evangélicas.
Lula da
Silva, portanto, vai precisar da sua destreza e capacidade política para construir
uma larga e consolidada base política e social para o seu governo, que tem de
ir muito além do PT, já que é preciso reunificar social e geograficamente o
País severamente dividido. Para tanto, importa concitar o apoio da comunidade
internacional democrática, sobretudo a da América Latina e poder contar que a
situação económica internacional e a situação política nos Estados Unidos da América
(EUA) lhe sejam favoráveis.
Não
se trata hoje só de clivagem entre esquerda e direita, entre ricos e pobres. É
um Brasil dividido em duas partes geográficas e sociais quase de igual tamanho,
que precisa de mais unidade, embora com a normal diversidade.
No seu
discurso de vitória, Lula da Silva prometeu restaurar a “paz” e a “unidade”, prejudicadas pelo atual
mandato, que terminará a 5 de janeiro de 2023. Também prometeu lutar
contra a pobreza e contra a fome que voltou, para recolocar o respeito pelo
meio ambiente no centro de sua ação e restaurar o lugar do Brasil no cenário
internacional. Mas será a sua grande experiência política suficiente para
superar os obstáculos? Cessarão a fome, a desflorestação, a agricultura seletiva
ao serviço dos grandes interesses capitalistas, a violência, a falta de
segurança, a desproteção social, o analfabetismo, a dificuldade do acesso à saúde
e à educação?
Para
seu crédito, terá em consonância consigo um continente sul-americano, onde o
progressismo de esquerda fez incursões históricas nos últimos meses, do Chile à
Colômbia, e contará com o apoio de muitos países, dos EUA à Europa, particularmente
preocupados com o destino de uma Amazónia que Jair Bolsonaro entregou à
exploração ilimitada dos grandes predadores.
De
facto, poucos dias antes da conferência do clima agendada para o Egito, a sua
eleição soa realmente como um “alívio planetário”, como refere o editorialista
do Le Monde. É, pois, necessário
acreditar na força da democracia e alegrarmo-nos com o seu funcionamento.
2022.10.31 – Louro de Carvalho
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