No início de setembro, o Papa concedeu a Maria
João Avilez uma entrevista que a TVI e a CNN Portugal transmitiram no dia 5 e
em que aflora vários temas eclesiais e diplomáticos. Aqui se respinga o que
parece essencial na conversa, em que sugere que se reze por ele, não contra
ele.
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Das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) diz que
são ideia de S. João
Paulo II para relacionarem a juventude de várias regiões do mundo e tornar
possível a universalização da juventude, que se sentirá apoiada e a exprimir a
sua linguagem peculiar, muito criativa. E, sobre a JMJ de 2023, em Lisboa, não
garante a sua vinda pessoal, mas que virá o Papa, seja Francisco, seja João
XXIV.
Quanto ao
modo como olha para os jovens de hoje, Bergoglio reconhece que tem se ir ao
encontro da linguagem deles, a da sua cultura “progressista, que vai em frente”,
ouvindo-os “no seu modo de interpretar as coisas” e respondendo-lhes de modo que
entendam.
De como fazer para que a JMJ 2023 seja um momento de reconciliação para
estas dificuldades que a Igreja em Portugal está a viver, aponta que “é a
distância” que “acentua as dificuldades”. Se ela se encurta, há diálogo, talvez
discussão, mas as pessoas acabam por se reconciliar. E admite que os adultos, pela experiência que têm da vida, se
defendem mais, ao passo que os jovens são mais audazes. Portanto, há que fazer
aproximação.
Questionado se a sua tranquilidade e alegria genuína dão para receber
algo do diálogo com os jovens, mencionou um encontro com jovens de diversas
proveniências e culturas, em que lhe
colocaram dificuldades enormes. Não se preocupou tanto em responder à
dificuldade, porque era como jogar pingue-pongue, mas tentou ver qual era a
cultura subjacente para o colocarem perante aquelas dificuldades. Por isso,
respeita a espontaneidade. O que lhe é difícil é o diálogo com os adultos, que
vem eivado do duplo sentido, a linguagem diplomática, em que uma pessoa diz uma
coisa, mas pensa outra. É a hipocrisia (do Grego hipo e crisis:
pensar, hipo, por baixo).
Falando do valor e da importância do diálogo intergeracional, Francisco
frisou que “os jovens têm
de ter uma visão rumo ao futuro e uma visão do passado”. Quem olha só para o
futuro fica sem sustentação. Para que a árvore dê fruto, tem de vir algo da
raiz. Mas refugiar-se nela, implica renunciar ao fruto. Mas só se olha para as
raízes com o diálogo com os mais velhos. Ouvindo os idosos e discutindo com
eles, sentem-se com raízes.
Fátima serviu de pretexto para recordar a
sua educação familiar na devoção a Maria, sob o título de Nossa Senhora
Auxiliadora. Mas Fátima deixou-o “mudo”. Fátima é a Virgem do silêncio.
Concorda com as muitas pessoas que
dizem que “não há nenhum silêncio como o de Fátima”. É universal. Para
Francisco, “Portugal é Fátima”. “Que não se zanguem os portugueses” – pede.
No atinente ao modo de rezar, o Papa confessa que não o alterou, admite
que o tenha aprofundado. Reza o terço; reza com a Bíblia e medita; e reza o ofício litúrgico todos os dias. Coloca-se
diante de Deus e às vezes distrai-se, mas Ele não Se distrai. “Rezar
é estar na presença de Deus e deixar que Ele fale. Não rezar sem liberdade. E cada
um tem de rezar como o Espírito Santo o inspira.”
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Sabendo que “uma parte do mundo está hoje zangada com a Igreja”, admite
que podia responder de forma elegante “que a Igreja está a sofrer” e outras
coisas. Porém, quis ser claro: “o abuso
de homens e mulheres da Igreja – abuso de autoridade, abuso de poder e abuso
sexual – é uma monstruosidade, porque o homem ou mulher da Igreja – padre,
religioso ou religiosa ou leigo ou leiga – foi chamado a servir e a criar
unidade, a contribuir para o crescimento, e o abuso destrói”.
Concorda que “a diferença é que agora se sabe”. Mas aponta: “o que não se sabe, porque ainda se
esconde, é o abuso no seio da família”, pois 42% ou 46% dos abusos ocorrem
na família ou no bairro. Depois, há as percentagens nas escolas, no
desporto, nos campos de desportos, nos clubes. Com homens e mulheres da
Igreja ocorrem 3% dos abusos. Não se diga que é pouco, pois, ainda que fosse um
só era uma monstruosidade. Infelizmente, a cultura do abuso está muito
disseminada. E o Papa acusa os filmes pornográficos, em que se filmam
abusos de menores, e os serviços de alguns telefones que permitem que se entre
em serviços sexuais, alguns de abuso de menores, outros de outras coisas, ou
seja, a nossa cultura é abusadora. Por isso, ao falar de abuso, é preciso ter
visão de conjunto, procurar que não se escondam as coisas e não ter em
conta só as percentagens. Depois, o Pontífice nega a relação do celibato com o
abuso sexual, pois, nas famílias, não há celibato e também ocorre. Não obstante, conclui que um sacerdote
não pode continuar sacerdote, se é abusador, porque é doente (provavelmente) ou
criminoso. O sacerdote existe para encaminhar os homens para Deus e não para
destruir os homens em nome de Deus.
Sobre a necessidade da carta apostólica dedicada à liturgia e à formação
litúrgica, revela que se confrontou com uma situação de crise, de formação litúrgica deficiente e da falta de piedade
na celebração da missa, que alguns celebram sem gosto. Ora, “a liturgia é
a grande obra da Igreja”, obra de adoração e louvor. Assim, “Igreja que não
celebre bem a liturgia é uma igreja que não sabe louvar a Deus, que não sabe
viver.
Da inclusão de três mulheres no dicastério dos bispos, o Papa diz que “os homens e as mulheres são batizados” e que a igreja é
feminina (é a esposa de Cristo). Dizer que é “a igreja” e não “o igreja” não
colhe. Concílio (concilium) era
neutro e Povo (populus ou démos) é masculino (E Igreja é o Povo de
Deus). Seja como for, no povo e nas suas assembleias, há mulheres e homens. Por
isso, faltando mulheres na administração da Igreja (agora há várias), cometia-se
injustiça, fuga a um direito, provocada pela cultura. Não é, pois, moda
feminista, é um ato de justiça que culturalmente tinha sido posto de lado.
Por outro lado, no seu instinto materno, a mulher tem uma peculiar forma de
sentir e de administrar e é mais vinculada ao sangue dos filhos, que “é sangue
do seu sangue”. Por isso, é capaz de levar por diante “a qualidade de Deus que
é a ternura”.
Entre as
mulheres bíblicas que o inspiram, o Papa destaca Judite, mulher corajosa, que
defende o seu povo; e Maria, a Virgem, que é a mulher, a feminina por
antonomásia, em que se “encontra força, serviço… feminilidade”.
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E, sobre o humor que o peculiariza, assinala que,
há mais de 40 anos, reza a oração de S. Tomás Moro a pedir o sentido de humor: “Dá-me,
Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir”. Copiou-a para a exortação
apostólica Exsultate, Jubilate (erro
de memória ou de transcrição, pois o título é: Gaudete et exsultate). E diz que Mozart tem um “Exsultate, Jubilate” maravilhoso.
Falando do caminho sinodal em curso, refere que, ao terminar o Concílio, Paulo VI se apercebeu de que a
Igreja latina perdera a dimensão sinodal, quando as Igrejas orientais têm
sínodos. Portanto, criou a Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos para que se
fossem habituando. E, quando se cumpriram 50 anos desde a criação, Francisco
explicou, num discurso. “o que se tinha dado e os fundamentos teológicos da
sinodalidade”. Depois, fez-se consulta a todos os bispos sobre o tema do
próximo Sínodo. Surgiram dois temas-chave: os
sacerdotes ou a sinodalidade.
Escolheu a sinodalidade para encerrar a catequese da sinodalidade. E contrapõe
à ideia parlamentar de sínodo a dinâmica de assembleia que ouve o Espírito
Santo. Cada um diz o que sente ou pensa e, depois, juntos procuram a harmonia
do Espírito Santo. No caminho sinodal está a diversidade, o que cada um vai dizendo,
mas é o Espírito que gera a harmonia. Temos, pois, de ter a atitude sinodal de
discernimento. E é o que a Igreja, graças a S. Paulo VI, tem vindo a aprender.
Das
divergências na Igreja, verifica, sem drama, que, “em todos os processos, há os
que estão bem no processo, os que vão mais à frente, os que vão mais atrás”,
sendo de deixar que os processos acabem. E, no amadurecimento, há quem não ache
bem, esperam, estão mais atrasados. É a teologia do caminho: uns vão à frente a correr e outros para
atrás. E o que tem a função de pastor, o bispo, tem de se saber mover entre
o povo de Deus, tem de estar com os que estão mais à frente, tem de estar no
meio e tem de estar atrás. Pastor só num sítio não serve.
Sobre a inspiração do ortodoxo Bartolomeu na “Laudato si” e do grande imã
Ahmad Al-Tayyeb na “Fratelli tutti”, diz que a fé se fortalece e expande no
diálogo inter-religioso, porque este não consiste em criar
equilíbrios, mas ver como nos vamos pôr de acordo. É
ouvir, ver e argumentar, mas caminhar em conjunto como pessoas. É preciso
dialogar. Ao dialogar, nunca se perde.
Questionado sobre o que é possível dizer aos presidentes Putin e Zelensky,
pois anunciou que gostaria de ir a Kiev e a Moscovo, diz que não sabe: já dialogou com os dois, que o vieram visitar. E sempre
acredita que, “se dialogarmos, conseguimos avançar”. Só os animais é que não
sabem dialogar, que são puro instinto. E o diálogo é deixar de lado o instinto
e ouvir. O diálogo é difícil. Mas
começa na família. Se nela não se dialoga e há só gritos e discussões, as
crianças não aprendem a dialogar. A ida
a Kiev ou a Moscovo “está no ar”. O Papa está a dialogar com eles. Mas a
Kiev foram três careais em representação do Pontífice. Um deles foi três vezes
e esteve lá toda a Semana Santa. E foi o subsecretário de Estado, o
encarregado das Relações Internacionais. Agora, o Papa não pode ir, porque,
após a viagem ao Canadá, a recuperação do joelho ressentiu-se e o médico
proibiu-o de viajar até ao Cazaquistão. Mas tem mantido contacto por
telefone.
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Transformou
a residência de Castel Gandolfo em museu, pois havia muitas coisas no Museu do
Vaticano, que não tinham espaço para serem expostas. Porém, há sítios para onde
ir, se quiser, porque há mais dois locais. Passa as férias a ler, ouvir música,
rezar mais um pouco. Gosta muito de ópera, sobretudo de Wagner. Quando não está em férias, gosta de se
organizar. Levanta-se cedo, às quatro da manhã, mas, às 22, já dorme. E acorda
sem querer. Às quatro, faz as
orações. Às vezes, celebra a missa a essa hora ou quando não tem mais
tarde. Depois, começa o trabalho. Deita-se às nove da noite e, às dez, apaga a
luz.
A força com que crê na vitória do Bem sobre o Mal ou a raiz da sua fé
está em Jesus Cristo, Senhor da História.
As coisas más que ocorrem agora aconteceram noutras épocas de outro modo.
O trigo e o joio estão juntos. Cada
época teve o seu Bem e o seu Mal e há coisas muito boas, hoje.
Desafiado a deixar uma palavra que ponha luz e reconciliação no caminho
da Igreja em Portugal, que vive um momento difícil, até às JMJ, manda olhar
para a janela e ver se cada vida tem uma janela aberta. Se não tiverem, abram-na quanto antes, sem vistas
curtas. Face a um problema, é de considerar que “estamos a caminhar para
o futuro, que há um caminho”, para o qual é preciso olhar. Enfim, o conselho
que dá é: “Abram a janela. Vejam além do nariz, além. Olhem, abram, olhem para
o horizonte. E alarguem o coração.”
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Palavras de
um reformista de 85 anos, sem papas na língua, com linguagem que todos
entendem. Dá conta das suas dúvidas existenciais e da sua sabedoria do
essencial, anelando por um sucessor que gere na Igreja novo aggiornamento (é premonitória a
referência a um João XXIV).
2022.09.11 – Louro de Carvalho
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