Nos
termos do protocolo, Marcelo Rebelo de Sousa, pela manhã do dia 7, chegou
primeiro à Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para participar no desfile
cívico-militar de celebração dos 200 anos da independência do Brasil. Quase 20
minutos mais tarde, Jair Bolsonaro apeou-se do Rolls-Royce e subiu a rampa para
assistir à parada. O Presidente português estava pronto para lhe apertar a mão,
seguido pelos chefes de Estado de Cabo Verde e da Guiné Bissau, bem como pelo
secretário executivo da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
Durante
quase três horas, à frente dos convidados VIP (very importante persons) do Governo, passaram, em grandiosa loa ao
Presidente, centenas de crianças, ginastas e outros desportistas, militares,
representantes das forças policiais ou de segurança, bombeiros e equipas de
saúde. Tanques, motos, 28 tratores em representação da indústria agrícola, sem
contar o sobrevoo de aviões militares, os paraquedistas que aterraram na
Esplanada dos Ministérios, os helicópteros…
Soaram
nos ares o Hino Brasileiro, o Hino da Independência e uma canção de cariz
religioso “Minha pátria para Cristo”. E Bolsonaro encerrou o desfile com um comicieiro
discurso.
A tudo
e ao lado de Bolsonaro, o Presidente português assistiu impávido e, questionado
por jornalistas portugueses foi sobre se sentiu sempre confortável, respondeu
sem hesitação: “Sim.”
Também
não sentiu desconforto ao estar e conversar animadamente com Luciano Hang, um dos oito empresários que estão a ser investigados
pelo STF em razão da troca de mensagens com intenção de
promover um golpe de estado. Proprietário da cadeia Havan, uma das maiores
redes de lojas de departamento brasileiras e que o tornaram, segundo a revista Forbes, o 21.º homem mais rico do
Brasil, Hang surgiu antes da chegada de Bolsonaro, a inflamar a assistência, já
excitada pela ocasião e pela proximidade do “mito”, como os apoiantes Bolsonaro
lhe chamam.
Para
Marcelo, a proximidade com Hang resulta de situação que lhe escapa ao controlo,
recordando ocasiões em que se deixou fotografar com pessoas com antecedentes
criminais, como sucedeu em 2019, no Bairro da Jamaica, na região de Lisboa. Interessante
e oportuna justificação!
Marcelo,
vincando que as relações bilaterais ultrapassam os mandatos presidenciais,
recordou que, em 1922, pela celebração dos cem anos da separação, também os
presidentes do Brasil e de Portugal estiveram reunidos a comemorar a data. E, evocando
o milhão de portugueses que vivem no Brasil e os mais de 250 mil brasileiros
que vivem em Portugal, recusou sempre o caráter eleitoralista do desfile (Uma
evidência, que não sentiu!) e disse: “Venho representar Portugal e,
ao representar Portugal, estou a representar séculos de história de Portugal no
Brasil.”
As
declarações foram recebidas com aplausos dos apoiantes de Bolsonaro presentes
no hotel em que o Presidente português se hospedou e falou aos jornalistas, mas
que se despediu e saiu rapidamente, sem ver a discussão que se seguiu entre os
mesmos defensores do Presidente brasileiro e uma jornalista portuguesa, constantemente
apupada e classificada de “comunista” devido às questões que levantara.
***
Com
o pleito eleitoral brasileiro à porta houve quem tenha escolhido ficar em casa
no feriado do Dia da Independência,
não fosse haver retorno para as opiniões expressas contra o Governo.
Bolsonaro mandou que o exército libertasse
60 camiões para o 7 de setembro, contrariando a ordem do governador do
estado, que afirmara
impedir a passagem dos veículos na Esplanada dos Ministérios onde ocorreria
o desfile comemorativo. Bolsonaro desautorizou, pois, as
forças de segurança, que não autorizaram a entrada de veículos daqueles como
medida de segurança. “A Esplanada está fechada e só vai entrar caminhão
se depender da minha ordem. Vão entrar pessoas, como estava definido.
A Polícia Federal está lá e a ordem é para não entrar ninguém.” – disse à Folha de São Paulo o governador do Distrito
Federal Ibaneis Rocha.
A
notícia de não participação neste desfile frustrou condutores de autocarro,
camiões e veículos antigos, que tentam, há dois anos, a entrada no desfile. O
desafio ao bloqueio da área não é inédito, pois, em 2021, camionistas apoiantes
de Bolsonaro romperam as barreiras de segurança na véspera do Dia da Independência e pressionaram a invasão
do Supremo Tribunal Federal (STF).
O
movimento de apoio ao Presidente e recandidato recresceu em Brasília e os seus tratores
participaram no desfile. E o chefe de Estado participou nos desfiles militares
na capital. Também no Rio de Janeiro, onde as comemorações se concentraram em
Copacabana, os ativistas pró-ditadura militar (1964-1985) tiveram
lugar marcado, com presença em grande, e pagaram para montar cartazes extra nas
imediações do desfile.
Nos 200 anos de independência, quando faltavam 24 dias para as
eleições, o Brasil vive o desafio entre autoridades. O Estado de S. Paulo
escreve que Bolsonaro chegaria ao Dia D da campanha com ataques ao STF;
o Jornal de Brasília publicou uma
“reportagem especial com os episódios que levaram D. Pedro I a proclamar a
Independência e o que deu errado no sonho de nos tornarmos uma
grande Nação”; Bolsonaro disse
que, em outubro, vencerá mais uma etapa do bem contra o mal; e houve momentos
de constrangimento num dia que deveria ter sido de comemoração.
Os
dois candidatos favoritos na corrida presidencial de outubro – Lula da Silva e
Jair Bolsonaro – comemoraram o bicentenário da Independência de forma
antagónica. Lula preferiu descansar, depois de mandar uma mensagem no
horário de propaganda sobre a importância da data, enquanto Bolsonaro, que vinha convocando a população para ocupar as ruas
desde julho, sequestrou a importância histórica do bicentenário e
transformou-o em palco eleitoral.
A
apoteose foi no Rio de Janeiro onde participou numa “motociata”, manifestação inspirada
no modelo fascista de Benito Mussolini, e exaltou manifestantes na orla de
Copacabana. O Rio é o feudo político da
família Bolsonaro, onde ele e os três filhos fizeram carreira defendendo
milícias, torturadores, mordomias para militares e porte de armas
indiscriminado. Mas o primeiro show off do dia
foi em Brasília, no pequeno-almoço, quando anunciou que na história há momentos
de rutura, aludindo ao golpe militar de 1964, e que “a história se pode repetir”.
Depois do desfile militar, quando deveria discursar, tirou
a faixa presidencial para pedir votos, defender o Governo, que segue as normas de Deus, é contra o aborto e que, em outubro vencerá, mais uma etapa do bem
contra o mal, “o mal que perdurou por 14 anos no nosso país,
que quase quebrou a nossa pátria e que agora deseja voltar à cena do crime”.
Nenhuma
palavra para os desafios de um país independente há 200 anos (combate à fome,
ao trabalho escravo, desflorestação, ação climática…). E o maior
constrangimento foi quando comparou a esposa com as outras primeiras-damas e puxou o coro dos
apoiantes a exaltar a sua potência e performance sexual, que “nunca falhou” –
espetáculo de machismo, que só confirmou que Bolsonaro é sempre Bolsonaro no atinente
a comentários sobre mulheres e sexualidade.
Nas
ruas, havia faixas a pedir o impedimento de ministros do STF, o que não cabe ao Presidente
decidir. E, na tribuna, Bolsonaro mandou um desafio a Alexandre de Moraes,
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (STE), tendo ao seu lado empresários
que estão a ser investigados pelo financiamento de atos antidemocráticos.
***
Para
vários juristas, o discurso comemorativo do Presidente fere a Constituição,
pois transformou o 7 de setembro num dia só do candidato à reeleição, mesmo que, para isso,
tenha usado a data e recursos federais e estaduais em propaganda. Estagnado nas
sondagens, atrás de Lula, tentou alavancar a popularidade numa demonstração de
força e intimidação, reunindo muita gente nas ruas das principais capitais
brasileiras – capitais onde também desfilaram os integrantes do “Grito dos
Excluídos” que, há 28 anos, se manifestam a 7 de setembro. A pergunta deles é: “200 anos de Independência para quem?” Os atos em defesa da democracia
foram organizados por movimentos sociais, igrejas e outras entidades da
sociedade civil.
Alguns
analistas consideram que esta foi a última cartada de Bolsonaro antes da
primeira volta eleitoral. É difícil saber, mas esse discurso e de ameaça à
democracia aumentará a rejeição entre os que gostariam de ter de volta um país
civilizado e um presidente que respeitasse as instituições.
Os
advogados da Coligação Brasil da Esperança entrarão com uma Ação de
Investigação Judicial Eleitoral AIJE) no TSE, apontando abuso de poder
económico e político por Bolsonaro, que usou o evento cívico-militar de 7 de
setembro, em que deveria participar como Presidente da República, para fazer um
megacomício de campanha como candidato.
Os discursos
desse comício deslavado foram transmitidos para toda a nação, inclusive pela estatal
TV Brasil, afirmam os advogados Eugênio Aragão e Cristiano Zanin Martins, que
representam a Coligação Brasil da Esperança, que tem o ex-presidente Lula como
candidato.
***
Também a
Universidade de Coimbra (UC) celebrou os 200 anos da independência do Brasil e
fê-lo, com uma exposição documental na Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra (BGUC) – inaugurada inicialmente no Recife (Pernambuco), em parceria
com a Fundação Joaquim Nabuco – e com uma conferência do presidente da mesma
fundação, Antônio Ricardo Accioly Campos. Prevê-se que a edição impressa do
catálogo da exposição saia dentro de duas semanas.
Historicamente,
como assegura Vital Moreira no blogue “Causa nossa”, há ligação profunda da independência do Brasil
com a UC, pois os principais próceres da independência – bem como
toda a elite intelectual brasileira da época – fizeram ali a sua formação académica
e intelectual. Entre eles, destaca-se José Bonifácio de Andrada e Silva, o “patriarca”
da independência e conselheiro do infante D. Pedro, e António Carlos de Andrada,
seu irmão, deputado pela província de São Paulo às Cortes Constituintes de
Lisboa, tendo sido o mais combativo expoente da “causa do Brasil”, defendendo
uma solução federal para o Reino Unido de Portugal e do Brasil, cuja rejeição
precipitou a secessão. A par disso, a UC manteve, ao longo dos séculos, boa
relação intelectual e afetiva com o Brasil, traduzida em frutífero intercâmbio
académico de professores e de investigadores e na frequência de milhares de
estudantes brasileiros, em todos os graus, desde a licenciatura ao
pós-doutoramento. A atestar tal intercâmbio, decorrem, por estes dias, só
na Faculdade de Direito (FDUC), dois eventos luso-brasileiros: um Encontro de Professores de Direito
Administrativo e um colóquio sobre
Direito à Cidade, podendo dizer-se que a UC “é tanto a maior universidade
brasileira fora do Brasil, como a universidade mais brasileira de Portugal”.
Por via da
relação com o Brasil, que vem desde o século XVI, o Arquivo e a Biblioteca
Geral da UC dispõem de valioso acervo documental, iconográfico e bibliográfico
sobre a história do Brasil, sobretudo até ao século XIX, que a Universidade se
orgulha em dar a conhecer, como sucedeu no dia do bicentenário. De resto, Vital
Moreira diz lembrar-se de que, nos últimos 25 anos, houve duas conferências
documentais e iconográficas sobre a ligação da Universidade com o Brasil, uma
em 1999, por ocasião da conferência Portugal-Brasil, Ano 2000,
organizada pela FDUC, e outra em 2012, organizada pela BGUC.
Além da BGUC, é de salientar o empenho da reitoria nesta iniciativa,
através do vice-reitor para a cooperação externa, João Calvão da Silva, que esteve na inauguração da exposição no
Recife.
***
Enfim,
a UC leva a sério a relação Portugal-Brasil; o poder político encerra-se na
partidarização!
2022.09.08 – Louro de Carvalho
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