O relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a região chinesa
de Xinjiang, publicado a 31 de agosto, indicia possíveis
“crimes contra a humanidade” e menciona “provas críveis” de tortura e de violência
sexual contra a minoria uigur e contra outros grupos
predominantemente muçulmanos, pedindo a intervenção da comunidade
internacional.
Michelle Bachelet, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, manteve
a promessa de publicar o relatório
antes de deixar o cargo a 1 de setembro, após quatro anos à frente
daquele organismo da ONU.
O documento, que não contém revelações importantes em relação ao que se
sabia da situação em Xinjiang, traz o selo da ONU às acusações feitas há muito
tempo contra as autoridades chinesas. A sua publicação
foi alvo de intensa pressão particularmente dos Estados Unidos da
América (EUA) e das principais organizações não-governamentais (ONG) de
direitos humanos, e Pequim,
inversamente, não queria a
divulgação, por considerar
o relatório uma “farsa” orquestrada pelo Ocidente e liderada por Washington.
O texto da ONU não traz a palavra “genocídio”,
mas essa foi a acusação do governo norte-americano contra Pequim. E também a Assembleia
Nacional Francesa, seguindo os passos da representação do Reino Unido, Holanda
e do Canadá, qualificou, em janeiro, como “genocídio” o tratamento dos uigures
pela China. Com efeito, Xinjiang e outras províncias da China foram atingidas
por várias décadas, em particular de 2009 a 2014, por ataques atribuídos pelo governo chinês a
islâmicos ou separatistas uigures.
O mandato de Michelle Bachelet foi
marcado pelas críticas à sua resposta ao tratamento da China aos uigures e a
outras minorias muçulmanas. No início de junho, 230 organizações de direitos humanos,
inclusive portuguesas, exigiram a sua demissão, acusando-a de branqueamento
de atrocidades numa visita ao território chinês. Porém, Bachelet defendeu-se de
ser branda com Pequim quanto aos direitos humanos, acreditando que diálogo “não significa fechar os olhos”.
Efetivamente, durante uma rara visita à China em maio passado, a primeira de
um Alto-comissário da ONU em 17 anos, Michelle Bachelet, denunciando “atos
violentos de extremismo” na região, pediu a Pequim que evitasse medidas
“arbitrárias” em Xinjiang.
Xinjiang, vasto território semidesértico no noroeste da China, tem sido
palco de violentos ataques, que Pequim atribui a separatistas e islamitas. Os
uigures, maioritariamente muçulmanos, representam um pouco
menos de metade dos 25 milhões de pessoas que vivem na região, falam,
na sua grande maioria, uma língua relacionada com o Turco e são um dos 56 grupos étnicos que
existem no território chinês. A China
é acusada de concentrar minorias étnicas chinesas de origem muçulmana em campos
de doutrinação e de reeducação política no extremo noroeste do
território chinês. As denúncias apontam para pelo menos um milhão de muçulmanos
retidos nestes campos. Todavia, Pequim rejeita sempre esse plano de “genocídio
cultural” de minorias muçulmanas na China, aduzindo que aquelas instalações são centros de formação
profissional para ajudar a encontrar trabalho e afastar do extremismo e
do terrorismo a população.
***
Já a 10 de junho, a Amnistia Internacional (AI), num
documento de 160 páginas com mais de 50 novos testemunhos angustiantes sobre o
que entende ser crime contra a Humanidade, denunciava a perseguição, a detenção
e a tortura de centenas de milhares de uigures, cazaques e outros grupos
étnicos predominantemente muçulmanos em Xinjiang, no noroeste da China. Ao
mesmo tempo, condena “as medidas extremas” tomadas “sob o disfarce do combate
ao terrorismo”, para forçar estas pessoas “a abandonar as suas tradições
religiosas, práticas culturais e línguas locais”.
Em comunicado, a organização acusava o regime de Xi
Jinping de ter construído, na região autónoma uigur de Xinjiang, “um dos
sistemas de vigilância mais avançados do mundo” e uma vasta rede de centros de
“transformação-através-da-educação”, que mais não são do que campos de
detenção, tortura e outros maus-tratos sistemáticos, para inculcar à força uma
nação chinesa homogénea e secular e os ideais do partido comunista chinês (PCC).
E refere que os enviados para tais campos não são julgados, não têm acesso a
advogados, não podem contestar a decisão, são alvo de práticas de tortura e
tratamento degradante, podem lá ficar por tempo indefinido, já que são as
autoridades que decidem quando estão prontos para sair, e são obrigados a
renegar as suas convicções religiosas e cultura e a tornarem-se em seguidores
do governo e do PCC.
Face à
situação, Agnès Callamard, secretária-geral da AI, exorta o governo chinês a
acabar com os campos de detenção e a cessar a perseguição da população
muçulmana e desafia a comunidade internacional a erguer a voz “para pôr fim a
esta abominação”, devendo a ONU abrir uma investigação independente para
responsabilizar os suspeitos de terem cometido tais crimes.
***
Entretanto, a branquear a situação, o presidente chinês visitou, na
segunda semana de julho, a região de Xinjiang, pois designou-a como
“área-chave” no projeto internacional de infraestruturas ‘Uma Faixa, Uma Rota’,
prevendo a construção de portos, linhas ferroviárias, autoestradas e centrais
elétricas, e abrindo novas rotas comerciais entre Ásia, Europa e África. Nessa
visita, Xi Jinping reuniu-se com líderes do Corpo de Produção e Construção
de Xinjiang (XPCC, na sigla inglesa), órgão supragovernamental que tem
tribunais, escolas e sistema de saúde próprios, sob o sistema militar imposto
na região, após a ascensão do PCC ao poder, em 1949.
O líder chinês diz ter aprendido a história do XPCC no cultivo e na
guarda das áreas fronteiriças. Com efeito, Xinjiang confina com a Rússia,
Afeganistão e outros países da Ásia Central, que a China quis atrair para a sua
órbita, com incentivos económicos e com pactos de segurança.
***
Recentemente, também a branquear a situação, o regime chinês
levou jornalistas de Macau a Xinjiang (só faltou o Tribuna
de Macau, alegadamente por falta de pessoal), visita que
foi acompanhada pelo governo
de Macau, representado pelo Gabinete de Comunicação Social. A maioria dos convidados não fala sobre a viagem e quase
nenhum escreveu sobre ela nos seus órgãos de comunicação, mas todos participaram
em vídeos de propaganda do regime comunista, onde só têm elogios ao que se
passa em Xinjiang, nomeadamente em termos de desenvolvimento. E, sobre os uigures, nem uma palavra dizem. Todavia, o presidente
da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) desvaloriza o
caso.
Os jornalistas não fizeram perguntas sobre as
acusações à China. Sobre a liberdade para decidir onde ir e com quem falar, um
deles referiu que “é do tamanho da Europa Ocidental”: para ir de uma cidade a
outra, tarda-se quatro a cinco horas e um distrito é do tamanho de Portugal. Além
disso, eram convidados. E não se diz a quem nos convida aonde se quer ir.
Ainda sobre a liberdade, neste caso, de expressão, alguns
garantem que, em 40 anos na Ásia, nunca foram pressionados sobre o que podiam
publicar acerca de visitas. E acusam os “brancos” (os ocidentais) de pensarem
que dominam o mundo, quando, como vincam: “Há valores asiáticos. Há valores
africanos. Há diversos valores no mundo.” Porém, outros jornalistas, que também não se sentem sem liberdade
de expressão, asseguram que tudo o que lhes mostraram é com o objetivo de
provar que está tudo bem. Referem como exemplo a exposição sobre terrorismo e
extremismo que viu em Urumqi, capital de Xinjiang: “Havia fotos
sensacionalistas e sangrentas, todas de meios chineses. O intuito de Pequim é
justificar os métodos. Não é apenas a China que tem tomado medidas para agir
contra o terrorismo e extremismo. Os Estados Unidos fazem o mesmo.”
Um jornalista diz ter feito perguntas, mas que procurou
perceber os critérios: são as autoridades que decidem quem é enviado para os
campos de educação.
A ONU estima que mais de um milhão de pessoas tenha sido
levada para “centros de reeducação”. Os campos e o fabrico de algodão serão um
dos palcos do trabalho forçado. Porém o referido grupo de jornalistas levado a
Xinjiang intervém num dos vídeos publicados nas páginas oficiais do governo
chinês, em imagens captadas entre Urumqi e Karamay, ressalvando que ali não há
propriamente pessoas, pois lhes explicaram que é tudo feito pelas máquinas. Além
disso, porfiam que aquilo que ali se vê é um reforço da identidade, consubstanciada em diversas culturas,
sendo nisso que se consubstancia o futuro do mundo, cada vez com mais partilha,
sem prejuízo de se perder cada cultura. Enfim, é o multiculturalismo. Por outro
lado, veem que há apoio do governo a todas as identidades locais e estimam que
todas as nacionalidades recebem “apoio maior do que se não houvesse um governo
central”.
Por seu turno, o
presidente da AIPIM, frisando que as visitas a convite das autoridades ao país
remontam aos tempos em que Macau era administrada por Portugal, realça que a
prática não é exclusiva da China e considera esta mais uma visita, apesar do
destino e das paragens. Como diz, é normal que os Estados convidem jornalistas
para visitarem províncias ou para acompanharem governantes ao estrangeiro. E os
jornalistas têm de “ser profissionais e saber filtrar os factos”.
***
É pena que jornalistas, detentores do quarto poder,
não denunciem as atrocidades cometidas por um Estado e cooperem no seu branqueamento.
A China é um gigante político e territorial, mas não é infalível, nem impoluta.
Se não acolhe a crítica, torna-se perigosa na sua autossuficiência.
2022.09.27 –
Louro de Carvalho
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